Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Este artigo pertence à palestra inaugural do III
ENOB ( Encontro Nacional dos Oblatos Seculares da Congregação Beneditina do
Brasil ), proferida pelo Exmo. Sr. Bispo Dom Gregório Paixão,
da Arquidiocese de São Salvador e monge beneditino do Mosteiro de São
Bento da Bahia ( http://www.saobento.org/ ).
O evento, que ocorre a cada quatro anos, teve como
tema 'Oblação, oferta a Deus e aos irmãos' e foi realizado de 25
a 30 de outubro de 2011, no Centro de Treinamento de Líderes, na praia de
Itapuã.
'Quando pisei pela primeira vez o solo
sagrado do Mosteiro de São Bento da Bahia, há cerca de trinta anos atrás, não
imaginava que estava ingressando em uma história que ultrapassava os mais de
quatrocentos anos da vetusca abadia da cidade de Salvador. Ele era testemunha
viva – pela presença de seus monges – dos mil e quinhentos anos de história da
Ordem Beneditina, cuja maturidade se impunha naquelas paredes seculares.
Encontrei ali o lugar da plena realização.
Imagino ter sido diametralmente oposto
o que sentira São Bento quando, no final do século VI, chegou a Roma. Ele
pisou, sim, o solo sagrado onde foram martirizados os apóstolos Pedro e Paulo,
assim como uma incontável multidão de cristãos. Imaginava, no vigor de sua
juventude, que encontraria ali sua plena realização. Mas encontrou, ao
contrário, frustração e decepção, em meio aos caos de um mundo em ruínas.
Para que outros não passassem a mesma
decepção que sentira, Bento resolve construir uma outra cidade eterna, a fim de
que os vocacionados à vida monástica encontrassem o que buscavam, a partir de
um espaço que ele próprio construirá como sagrado. Nasce, assim, o mosteiro
beneditino.
Creio, porém, que vale a pena percorrer
resumidamente o itinerário dos primeiros anos da vida monástica vivida por São
Bento. Na sua busca incessante, logramos a riqueza da vida monástica beneditina
vivida por um incontável número de monges, monjas e oblatos seculares, todos
seguidores da Regra do Patriarca do Ocidente. Se entendermos o mundo onde São
Bento viveu e as opções que ele fez, entenderemos, também o nosso e faremos
escolhas para a plena realização.
O universo onde viveu São Bento tinha
uma capital, e o seu nome era Roma. Ela se tornara o coração do mundo antigo e
seu primeiro imperador disse uma frase que se tornou célebre: “encontrei-a
feita de tijolos e a deixei coberta por mármores”. Não há dúvida: Roma
era a mais formosa dentre todas as cidades conhecidas, sendo embelezada ao
extremo durante décadas seguidas. O espanto era tão grande para os que a
visitavam, que um imperador persa, ao contemplá-la no ano 357 de nossa era,
extasiado com a beleza de seus monumentos e cidadãos, perguntou atônito a um
general romano: “As pessoas daqui são mortais?”.
Roma, porém, não conseguia esconder, à
luz do dia, que o corpo de aço do império tinha pés de barro. A riqueza,
conseguida pela soma dos pesados impostos, não chegava a todos. As suas 1.800
magníficas mansões não conseguiam esconder os 46.600 cortiços que imperavam na
capital. Poucos possuíam quase tudo e a grande massa da população tinha quase
nada. Uma elite esbanjadora mantinha-se sobre o peso da carga que era colocada
nos ombros do povo, que insistia em contentar-se com as migalhas imperiais do
proverbial “pão e circo”.
A partir do século V começam a aparecer fortes
indícios de uma possível decadência. O gênio dos grandes imperadores começa a
ser substituído pelo uso excessivo da força, da tortura e mesmo do
aniquilamento do povo que sustentava o império. A burocracia começa a
enfraquecer a base social, tornando quase impossível a ascensão do trabalhador
comum às classes superiores.
A escravidão, baseada no trabalho
forçado de prisioneiros de guerra, atingiu proporções quase inacreditáveis nos
tempos imperiais. Enquanto os traficantes de escravos vasculhavam continentes
distantes na busca de mercadoria humana. Mercados, como da Ilha de Delos,
movimentavam diariamente dezenas de milhares de escravos estrangeiros.
O Império morria à míngua. As soluções
encontradas não passavam senão de meros paliativos. O povo não mais suportava a
idéia de ver-se sem visão. E a religião, que impulsionava o império sobre o
escudo e a espada de Júpiter, Juno e Minerva, mostrava-se decorativa e vazia de
respostas.
Vindos do oriente, povos
semi-selvagens, como os godos, os hunos e os vândalos colocam o agonizante
império sob os pés. Por três vezes a Cidade Eterna será saqueada. Odoacro entra
na cidade, numa espécie de parusia infernal, faz-se coroar primeiro rei bárbaro
da Itália, derrubando o último imperador de Roma, Rômulo Augusto. Era o dia 4
de setembro de 476. Acabava de expirar o maior império do mundo.[1]
É nesse mundo destroçado que São Bento vai ser
inserido. E vendo a corrupção vigente, afasta-se, medita e volta para uma nova
proposta. Não há nele revolta ou barbarismo. Há, unicamente, o desejo de fazer
conhecida a Verdade que ele mesmo experimentava, transformando o mundo ao seu
redor a partir de Cristo.
Quatro anos depois da queda do Império Romano, em
476, nasce Bento[2], legislador
do monaquismo ocidental, cuja vida e obra contribuirá para a reconstrução de
uma nova civilização, alicerçada sobre a rocha que é Jesus Cristo. São Gregório
Magno, seu biógrafo, o situa no tempo e no espaço, ao nos dizer que “houve
um homem de vida venerável, Bento pela graça e pelo nome, que desde a infância
possuía um coração maduro. Jamais entregou seu espírito ao prazer, e desprezou
como murchas as flores do mundo. Nascido numa rica família da província de
Núrsia, foi enviado a Roma para cursar os estudos das ciências liberais. Vendo
porém, muitos nesses estudos rolarem para o abismo dos vícios, retirou o pé que
quase pusera na estrada do mundo, temendo ele também cair no fatal precipício.
Desprezando os estudos iniciados, deixou a casa os bens paternos e, querendo
agradar somente a Deus, buscou o hábito da vida monástica.”[3].
Deixando Roma, o jovem Bento se recolhe
numa gruta em Subíaco, vivendo ali todas as experiências de uma vida monástica
incipiente. Embora recluso em sua cela monástica, Bento foi descoberto por
aldeões das montanhas de Subíaco, que encontraram nele um testemunho vigoroso
daquela vida cristã dos primeiros tempos, tornando-se o homem de Deus um
catequista autorizado pela vida e pela palavra. São Gregório nos narra com
detalhes esse encontro: “Também alguns pastores vieram a descobrir Bento,
escondido numa gruta. Quando o avistaram por entre as folhagens, coberto de peles,
acreditaram terem visto um animal, mas após terem conhecido o servo de Deus,
muitos deles passaram de uma condição de vida bestial à graça de uma vida
santa. De tal maneira o seu nome passou a ser conhecido por todos os habitantes
das localidades vizinhas que, desde então, começaram a visitá-lo. Esses, que
lhe levaram sustento para o corpo, de sua boca recebia, em seus corações, o
alimento para o sustento para a alma”[4].
Vejo, nesse contato de São Bento com os
aldeões de Subíaco, os primeiros indícios daquilo que vamos chamar, séculos
depois, de oblatos seculares. Como os primeiros aldeões, os oblatos são leigos
inseridos no mundo, sem se deixar corromper por ele, encontrando no exemplo e
na doutrina de São Bento um novo impulso para viverem integralmente a vida
cristã.
Embora saibamos que os primeiros
indícios de uma organização de oblatos seculares beneditinos aparecerá no
século VII, como constatamos pelos anais da Abadia de Lerins, assim como os
inúmeros cristãos que vemos associados à Abadia de Cluny, entre os séculos X e
XI, constatamos que o início da busca pela vida beneditina se estabelece na
própria fonte, que é São Bento. São Gregório Magno nos narra, no Segundo Livro
dos Diálogos, os inúmeros contatos que São Bento fez com as pessoas que
visitavam seu mosteiro e, ainda mais, o apoio que recebia dos incontáveis
colaboradores que rondavam os pilares da Abadia de Montecassino.[5] Nasce,
desse modo, as primeiras aldeias e vilas ao lado dos mosteiros espalhados por
toda a Europa, associadas à força espiritual e material das Abadias.'
[1] VETUSCI, Paulo. Queda e Ascensão dos Grandes
Impérios. Textos seletos: Roma. Rio de Janeiro, 2010, p.37
Nenhum comentário:
Postar um comentário