sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A contribuição e participação do oblato beneditino na vida da igreja local (Capítulo 1 de 3)

  Por Maria Vanda (Ir. Maria Silvia, Obl. OSB) e
           Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)   


Este artigo pertence à palestra inaugural do III ENOB ( Encontro Nacional dos Oblatos Seculares da Congregação Beneditina do Brasil ), proferida pelo Exmo. Sr. Bispo Dom Gregório Paixão, da Arquidiocese de São Salvador e monge beneditino do Mosteiro de São Bento da Bahia ( http://www.saobento.org/  ).  

O evento, que ocorre a cada quatro anos, teve como tema 'Oblação, oferta a Deus e aos irmãos' e foi realizado de 25 a 30 de outubro de 2011, no Centro de Treinamento de Líderes, na praia de Itapuã.                
           

'Quando pisei pela primeira vez o solo sagrado do Mosteiro de São Bento da Bahia, há cerca de trinta anos atrás, não imaginava que estava ingressando em uma história que ultrapassava os mais de quatrocentos anos da vetusca abadia da cidade de Salvador. Ele era testemunha viva – pela presença de seus monges – dos mil e quinhentos anos de história da Ordem Beneditina, cuja maturidade se impunha naquelas paredes seculares. Encontrei ali o lugar da plena realização.

Imagino ter sido diametralmente oposto o que sentira São Bento quando, no final do século VI, chegou a Roma. Ele pisou, sim, o solo sagrado onde foram martirizados os apóstolos Pedro e Paulo, assim como uma incontável multidão de cristãos. Imaginava, no vigor de sua juventude, que encontraria ali sua plena realização. Mas encontrou, ao contrário, frustração e decepção, em meio aos caos de um mundo em ruínas.

Para que outros não passassem a mesma decepção que sentira, Bento resolve construir uma outra cidade eterna, a fim de que os vocacionados à vida monástica encontrassem o que buscavam, a partir de um espaço que ele próprio construirá como sagrado. Nasce, assim, o mosteiro beneditino.

Creio, porém, que vale a pena percorrer resumidamente o itinerário dos primeiros anos da vida monástica vivida por São Bento. Na sua busca incessante, logramos a riqueza da vida monástica beneditina vivida por um incontável número de monges, monjas e oblatos seculares, todos seguidores da Regra do Patriarca do Ocidente. Se entendermos o mundo onde São Bento viveu e as opções que ele fez, entenderemos, também o nosso e faremos escolhas para a plena realização.

O universo onde viveu São Bento tinha uma capital, e o seu nome era Roma. Ela se tornara o coração do mundo antigo e seu primeiro imperador disse uma frase que se tornou célebre: “encontrei-a feita de tijolos e a deixei coberta por mármores”. Não há dúvida: Roma era a mais formosa dentre todas as cidades conhecidas, sendo embelezada ao extremo durante décadas seguidas. O espanto era tão grande para os que a visitavam, que um imperador persa, ao contemplá-la no ano 357 de nossa era, extasiado com a beleza de seus monumentos e cidadãos, perguntou atônito a um general romano: “As pessoas daqui são mortais?”.

Roma, porém, não conseguia esconder, à luz do dia, que o corpo de aço do império tinha pés de barro. A riqueza, conseguida pela soma dos pesados impostos, não chegava a todos. As suas 1.800 magníficas mansões não conseguiam esconder os 46.600 cortiços que imperavam na capital. Poucos possuíam quase tudo e a grande massa da população tinha quase nada. Uma elite esbanjadora mantinha-se sobre o peso da carga que era colocada nos ombros do povo, que insistia em contentar-se com as migalhas imperiais do proverbial “pão e circo”.
  
A partir do século V começam a aparecer fortes indícios de uma possível decadência. O gênio dos grandes imperadores começa a ser substituído pelo uso excessivo da força, da tortura e mesmo do aniquilamento do povo que sustentava o império. A burocracia começa a enfraquecer a base social, tornando quase impossível a ascensão do trabalhador comum às classes superiores.

A escravidão, baseada no trabalho forçado de prisioneiros de guerra, atingiu proporções quase inacreditáveis nos tempos imperiais. Enquanto os traficantes de escravos vasculhavam continentes distantes na busca de mercadoria humana. Mercados, como da Ilha de Delos, movimentavam diariamente dezenas de milhares de escravos estrangeiros.

O Império morria à míngua. As soluções encontradas não passavam senão de meros paliativos. O povo não mais suportava a idéia de ver-se sem visão. E a religião, que impulsionava o império sobre o escudo e a espada de Júpiter, Juno e Minerva, mostrava-se decorativa e vazia de respostas.

Vindos do oriente, povos semi-selvagens, como os godos, os hunos e os vândalos colocam o agonizante império sob os pés. Por três vezes a Cidade Eterna será saqueada. Odoacro entra na cidade, numa espécie de parusia infernal, faz-se coroar primeiro rei bárbaro da Itália, derrubando o último imperador de Roma, Rômulo Augusto. Era o dia 4 de setembro de 476. Acabava de expirar o maior império do mundo.[1]

É nesse mundo destroçado que São Bento vai ser inserido. E vendo a corrupção vigente, afasta-se, medita e volta para uma nova proposta. Não há nele revolta ou barbarismo. Há, unicamente, o desejo de fazer conhecida a Verdade que ele mesmo experimentava, transformando o mundo ao seu redor a partir de Cristo.

Quatro anos depois da queda do Império Romano, em 476, nasce Bento[2], legislador do monaquismo ocidental, cuja vida e obra contribuirá para a reconstrução de uma nova civilização, alicerçada sobre a rocha que é Jesus Cristo. São Gregório Magno, seu biógrafo, o situa no tempo e no espaço, ao nos dizer que “houve um homem de vida venerável, Bento pela graça e pelo nome, que desde a infância possuía um coração maduro. Jamais entregou seu espírito ao prazer, e desprezou como murchas as flores do mundo. Nascido numa rica família da província de Núrsia, foi enviado a Roma para cursar os estudos das ciências liberais. Vendo porém, muitos nesses estudos rolarem para o abismo dos vícios, retirou o pé que quase pusera na estrada do mundo, temendo ele também cair no fatal precipício. Desprezando os estudos iniciados, deixou a casa os bens paternos e, querendo agradar somente a Deus, buscou o hábito da vida monástica.”[3].

Deixando Roma, o jovem Bento se recolhe numa gruta em Subíaco, vivendo ali todas as experiências de uma vida monástica incipiente. Embora recluso em sua cela monástica, Bento foi descoberto por aldeões das montanhas de Subíaco, que encontraram nele um testemunho vigoroso daquela vida cristã dos primeiros tempos, tornando-se o homem de Deus um catequista autorizado pela vida e pela palavra. São Gregório nos narra com detalhes esse encontro: “Também alguns pastores vieram a descobrir Bento, escondido numa gruta. Quando o avistaram por entre as folhagens, coberto de peles, acreditaram terem visto um animal, mas após terem conhecido o servo de Deus, muitos deles passaram de uma condição de vida bestial à graça de uma vida santa. De tal maneira o seu nome passou a ser conhecido por todos os habitantes das localidades vizinhas que, desde então, começaram a visitá-lo. Esses, que lhe levaram sustento para o corpo, de sua boca recebia, em seus corações, o alimento para o sustento para a alma”[4].

Vejo, nesse contato de São Bento com os aldeões de Subíaco, os primeiros indícios daquilo que vamos chamar, séculos depois, de oblatos seculares. Como os primeiros aldeões, os oblatos são leigos inseridos no mundo, sem se deixar corromper por ele, encontrando no exemplo e na doutrina de São Bento um novo impulso para viverem integralmente a vida cristã.

Embora saibamos que os primeiros indícios de uma organização de oblatos seculares beneditinos aparecerá no século VII, como constatamos pelos anais da Abadia de Lerins, assim como os inúmeros cristãos que vemos associados à Abadia de Cluny, entre os séculos X e XI, constatamos que o início da busca pela vida beneditina se estabelece na própria fonte, que é São Bento. São Gregório Magno nos narra, no Segundo Livro dos Diálogos, os inúmeros contatos que São Bento fez com as pessoas que visitavam seu mosteiro e, ainda mais, o apoio que recebia dos incontáveis colaboradores que rondavam os pilares da Abadia de Montecassino.[5] Nasce, desse modo, as primeiras aldeias e vilas ao lado dos mosteiros espalhados por toda a Europa, associadas à força espiritual e material das Abadias.'



[1] VETUSCI, Paulo. Queda e Ascensão dos Grandes Impérios. Textos seletos: Roma. Rio de Janeiro, 2010, p.37
[2] São Bento nasceu em Núrsia (Itália), no ano 480 e morreu em Montecassino, em 547.
[3] SÃO GREGÓRIO MAGNO. São Bento. Vida e Milagres. Salvador, Edições São Bento, 2002, p.9
[4] SÃO GREGÓRIO MAGNO, Idem, p.15
[5] SÃO GREGÓRIO MAGNO, Idem, os. 31,87,90,97.


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