segunda-feira, 31 de março de 2025

O coração é um símbolo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo da revista Além-mar 


 ‘Diz uma antiga tradição que o apóstolo São João, quando já era velhinho, respondia sempre da mesma maneira aos cristãos que lhe pediam «João, conta-nos alguma coisa de novo sobre esse Jesus que conheceste!» A novidade que Jesus trouxe é o «Amai-vos uns aos outros como eu vos amei», a certeza de que ele nos amou e a nossa capacidade de viver e espalhar esse amor à nossa volta. 

A última carta encíclica do Papa Francisco tem esse mesmo sabor : um velhinho que, depois de nos ensinar tanta coisa linda sobre o que significa seguir Jesus, nos vem lembrar o essencial : para conhecer e seguir Jesus, é preciso centrar-se no coração.

Logo no segundo parágrafo, Francisco diz que, neste caso, o coração é um símbolo. Todos lembramos que essa palavra – símbolo –ficou na lembrança de todos, depois dos grandes eventos da JMJ do ano passado. Os símbolos da JMJ não eram um coração, mas uma cruz de madeira, já bem surrada de tanto andar de um continente para o outro, de uma JMJ para a outra, e uma pintura em madeira – ícone com a imagem de Maria, a mãe de Jesus. Porque todos lhes chamavam símbolos? Porque ao olhar para aquela cruz e aquela tábua pintada com a imagem de Maria, não víamos só esses dois objetos, vinha-nos logo à memória os milhões de jovens na praia de Copacabana, na JMJ do Brasil, ou a grande multidão que, anos antes, se reuniu na imensa planície à saída de Roma. Esses símbolos renovam em nós experiências, fazem vibrar o coração ao lembrarmos pessoas que encontramos, momentos que vivemos nesses dias extraordinários; e agora, ao ver esses símbolos a viajar de Lisboa para Roma e de lá partir para a Coreia do Sul, olhamos com esperança para daqui a dois ou três anos quando esses símbolos irão tocar o coração de tantos e tantos jovens asiáticos e não só.

Quando o Papa Francisco diz que o coração é símbolo do amor de Cristo, aponta para algo de semelhante. Muito mais do que um desenho ou uma imagem, o coração de Cristo põe-nos de novo em contato em Ele e tudo o que ele ensinou e viveu com o seu primeiro grupo de amigos e que nós encontramos descrito nos Evangelhos. Mas isso não fica só como memória dos tempos antigos; o símbolo aponta para um coração que continuou sempre aberto a derramar amor e energia no coração de milhões de pessoas, no decorrer dos séculos. E esse coração-símbolo continua vivo hoje; ao contemplá-lo na intimidade dos nossos corações, sentimos essa mesma energia que transborda do coração de Cristo para o coração de cada um de nós, e a corrente de amor continua porque não pára em nós e vai transbordando silenciosamente para a vida daqueles com quem partilhamos o nosso caminho. 

Os símbolos da JMJ e do coração de Cristo são assim mesmo : reavivam a nossa comunhão vital com as origens, com a nascente  – a pessoa concreta de Jesus de Nazaré, fazem-nos participantes dessa imensa corrente de amor que percorreu os séculos até nós, e tornam-nos protagonistas que agora recebem e partilham esse amor sempre novo que jorra do Coração de Cristo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1325/o-coracao-e-um-simbolo/

sexta-feira, 28 de março de 2025

Teilhard de Chardin, uma das figuras mais fascinantes do século XX

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Cardeal José Tolentino de Mendonça 


Publicamos o prefácio do cardeal José Tolentino de Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, ao livro de Mercè Prats ‘Pierre Teilhard de Chardin. Uma biografia’ (Livraria Editora Vaticana, Cidade do Vaticano 2025, páginas 408), disponível nas livrarias a partir de segunda-feira, 31 de março. Resultado de um trabalho historiográfico que durou vários anos, baseado em pesquisas aprofundadas em vários arquivos, como o Arquivo do Dicastério para a Doutrina da Fé, da Província francesa da Companhia de Jesus e da Universidade de Georgetown, em Washington, o trabalho de Mercè Prats é a biografia mais completa e documentada do famoso jesuíta, teólogo e paleontólogo. Para redigir esse poderoso ensaio biográfico, a autora se baseou em muitos materiais inéditos e reconstruiu a vida de Teilhard de Chardin também graças a suas numerosas cartas : basta dizer que somente a biografia citada no texto publicado pela LEV consiste em nada menos que 63 páginas.


‘Pierre Teilhard de Chardin é uma das figuras mais fascinantes e complexas do pensamento do século XX. Sua obra, que se encontra na intersecção entre ciência, teologia e filosofia, representa uma tentativa ousada de integrar a evolução cósmica com uma visão espiritual do universo. Em sua vida e em seus escritos, surge uma síntese original que desafia as dicotomias tradicionais entre fé e razão, natureza e espírito, tempo e eternidade. Este volume se propõe a explorar o pensamento de Teilhard em profundidade, oferecendo uma perspectiva penetrante sobre seu legado intelectual e espiritual.

Mercè Prats, professora e documentarista da Fondation Teilhard de Chardin, é conhecida pelos acadêmicos por ter conseguido reconstruir a circulação clandestina dos escritos do pensador jesuíta francês. Ela consultou arquivos até então inacessíveis, reconstruindo a transmissão em estilo cíclico de seus textos. Esses escritos, que frequentemente apresentavam perspectivas teológicas inovadoras e, às vezes, controversas, foram copiados e distribuídos de forma privada durante décadas, alimentando uma rede de leitores e apoiadores.

O que torna este volume particularmente original em comparação com outros estudos sobre Teilhard de Chardin é também a abordagem inovadora e interdisciplinar adotada pela autora. Prats não apenas examina as ideias de Teilhard em seu contexto histórico e filosófico, mas também as relê à luz dos desafios do mundo contemporâneo. Essa capacidade de dialogar com questões atuais, como a crise ecológica, a globalização e a busca de significado espiritual na era tecnológica, confere ao seu trabalho uma relevância e um frescor extraordinários.

Outra característica distintiva do texto de Prats é sua capacidade de tornar conceitos complexos do Teilhardi acessíveis a um público amplo. Por meio de um estilo claro e envolvente, a autora consegue traduzir as profundas intuições de Teilhard em uma linguagem compreensível sem sacrificar sua profundidade.

Teilhard de Chardin foi um jesuíta, um paleontólogo e um místico. Sua vida foi marcada por uma busca incessante de significado, alimentada tanto pela observação científica quanto pela contemplação espiritual. Nascido em 1881 na França, ele cresceu em um ambiente rico em estímulos culturais e espirituais. Sua formação jesuíta lhe proporcionou uma sólida base teológica, enquanto seu trabalho como cientista o colocou frente a frente com as grandes questões da evolução e da natureza do homem. A fé e a ciência moldaram seu pensamento, que se distingue por sua capacidade de integrar diferentes perspectivas em uma visão de mundo unificada.

O ponto central do pensamento de Teilhard é a ideia de que o universo está evoluindo constantemente em direção a uma maior complexidade e a uma consciência mais profunda. Essa ‘teologia da evolução’, como foi frequentemente chamada, é uma de suas percepções mais originais e provocativas. Para Teilhard, a evolução não é simplesmente um processo biológico, mas um movimento cósmico que envolve toda a criação. O universo, em sua visão, é animado por uma força interna que o conduz ao ponto ômega, um termo cunhado por Teilhard para denotar o ápice da evolução, onde a consciência humana e a divina se unem em harmonia.

O pensamento de Teilhard - como Mercè Prats ilustra muito bem - provocou muitos debates, tanto na comunidade científica quanto no âmbito teológico. Por um lado, sua visão da evolução como um processo intrinsecamente orientado para o transcendente levantou questões sobre a compatibilidade de suas ideias com a teoria darwiniana. Por outro lado, sua ousadia em reinterpretar a fé católica à luz das descobertas científicas provocou reações contrastantes dentro da Igreja. Apesar das controvérsias, ou talvez por causa delas, seu pensamento continua exercendo uma profunda influência, inspirando novas gerações de pensadores e fiéis.

O Papa Francisco recordou a figura de Teilhard em setembro de 2023, durante sua viagem à Mongólia, no vizinho deserto de Ordos, exatamente onde, cem anos antes, o jesuíta rezou sua famosa ‘Missa sobre o mundo’. Francisco pronunciou as palavras dessa oração e depois disse : ‘Esse padre, muitas vezes incompreendido, intuiu que ‘a Eucaristia é sempre celebrada, em certo sentido, no altar do mundo’ e é ‘o centro vital do universo, o centro transbordante de amor e de vida inesgotável’, mesmo em uma época como a nossa, de tensões e de guerras’. Dessa forma, Francisco quis comemorar e enaltecer a figura desse pensador cristão a quem o então Santo Ofício impôs um Monitum em 1962, mas que também foi citado por vários Pontífices ao longo do tempo.

Um aspecto particularmente significativo do pensamento de Teilhard, que Prats explora com grande sensibilidade, é seu profundo otimismo. Em uma época em que o progresso é frequentemente associado a riscos e perigos, Teilhard nos convida a ver a evolução não apenas como uma fonte de conflito, mas também como uma oportunidade de crescer como espécie e como indivíduos. Seu otimismo não é ingênuo, mas está radicado em uma profunda confiança na capacidade do homem de colaborar com as forças criativas do universo.

Outra contribuição significativa de Teilhard é sua reflexão sobre o amor como uma força cósmica. Para Teilhard, o amor não é apenas um sentimento ou uma virtude moral, mas uma força fundamental que guia a evolução em direção a uma maior união e complexidade. Esse aspecto de seu pensamento, que Prats desenvolve com grande profundidade, oferece uma nova perspectiva sobre a natureza do amor e seu papel em nossa vida pessoal e coletiva.

O volume de Mercè Prats é uma contribuição importante não apenas para os estudiosos de Teilhard de Chardin, mas também para qualquer pessoa interessada em refletir sobre as grandes questões da existência. A capacidade da autora de tornar conceitos complexos acessíveis e de entrelaçar o pensamento de Teilhard com os desafios de nosso tempo faz deste livro uma leitura desafiadora, porém importante.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2025-03/cardeal-de-mendonca-prefacio-livro-teilhard-de-chardin-lev-prats.html

quinta-feira, 27 de março de 2025

Experiência de fé por meio da liturgia

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do editorial da revista Ave Maria


 ‘Uma das mais visíveis expressões da fé cristã é a assembleia litúrgica, a Kahal, citada em Deuteronômio 9,10, e a ekklesia, como no Evangelho de Mateus (cf. 16,18). É o encontro dos chamados, convocados pelo próprio Deus, por Javé, na experiência veterotestamentária, e pelo próprio Filho de Javé no Segundo Testamento, portanto, a liturgia é a realização do encontro daqueles que ouvem o chamado de Deus e querem se encontrar para que possam assim responder melhor com a vida, celebrada e vivida, ao chamado de Deus.

Os seres humanos somos mediados pelas palavras, sons, símbolos e desse modo conseguimos compreender a nós mesmos e o que nos rodeia e ser compreendidos, dotados de corpo, mente e espírito, imagem e semelhança de Deus, como nos ensina e recorda o livro do Gênesis 1,26, entramos em comunicação e relação com o mundo e a partir de Deus temos a missão de resgatar, construir e fortalecer a comunhão. A experiência de celebrar tem o valiosíssimo tesouro de nos permitir todos os dias, ou ao menos no domingo, o dia do Senhor, não perder de vista esse edificante propósito.

O ser humano, ser de comunicação por diversos meios, especialmente pelos rituais e símbolos, é um ser litúrgico, em sua individualidade e especialmente na dimensão comunitária, junto com os outros, fortalecendo laços constituídos e conquistados; temos rituais cotidianos e em todas as culturas há os grandes ritos e rituais.

A experiência da vida cristã, da liturgia dos discípulos e discípulas de Jesus, é originária e originante, tem a sua origem em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito humano, é a Última Ceia participada por Jesus com seus discípulos, que fez alargar a ceia judaica e dar-lhe um sentido pleno que atravessou o tempo e o espaço, da Jerusalém no século primeiro aos nossos tempos e onde vivemos; originante da Igreja e de todos os outros sacramentos e atos litúrgicos, apontou num tríduo para o nascimento de um novo tempo, a começar pelo primeiro dia da semana, o dia do Senhor, o domingo, aproximando passado, presente e futuro, memória, realidade e plenitude. Participar da liturgia, de modo consciente e cada vez mais amadurecido é alcançar ‘(…) o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força’ (Sacrosanctum Concilium,10).

A fé, vivida e celebrada na liturgia, permite-nos compreender o que cremos e mais em quem cremos, por isso celebramos a Eucaristia, por excelência, e todos os outros sacramentos, sacramentais e rituais, dando-nos a iluminação, a sabedoria e o entendimento para vivermos crentes, discípulos e discípulas de Jesus, filhos e filhas de um Deus Pai e acolhedores do Espírito Santo; assim dialogamos com Deus todos os segundos, minutos, horas e dias, a cada mês e a cada ano, fazendo um percurso existencial, na forma da espiral, cada vez mais próximos da meta, o Céu.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/experiencia-de-fe-por-meio-da-liturgia.html


terça-feira, 25 de março de 2025

Inteligência artificial e a consciência humana

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Miguel Oliveira Panão


 ‘Num mundo em que a tecnologia e a consciência coexistem, a inteligência artificial (IA) impõe desafios e oportunidades que se interligam e nos mostram em que nos tornamos com a tecnologia que desenvolvemos. Quando estive recentemente com um grupo de professores de Educação Moral e Religiosa Católica a refletir sobre como a IA reconfigura a nossa relação com o tempo e com a própria existência, lembrei-me da ideia de atualizarmos a experiência que temos de tempo para a versão Tempo 3.0, título do livro que escrevi sobre o assunto. O novo paradigma da experiência de tempo propõe a vivência do tempo profundo como dimensão mais profunda e transformadora, na qual o ser humano encontra o seu potencial de autoconhecimento e evolução através do desenvolvimento da sua consciência. Qual o impacto da IA nesse desenvolvimento?

A evolução da IA orientou-se para interpretar e produzir linguagem natural humana. Hoje, a IA atua mais como uma co-inteligência do que um simples motor de busca avançado, abrindo horizontes na extensão da capacidade humana de pensar. Estarmos cientes disso deveria convidar-nos à introspecção e à redescoberta da dimensão espiritual que nos torna verdadeiramente humanos.

Incorporar a IA na nossa vida quotidiana implica reconhecer tanto as suas potencialidades como os desafios éticos que emergem. Podemos automatizar tarefas burocráticas, traduzir e refinar ideias, mas o pensamento crítico humano será sempre insubstituível. Em contextos educativos, o risco reside na uniformização do saber e na dependência excessiva de respostas prontas, levando à perda da autonomia intelectual. Por isso, torna-se imperativo que os educadores promovam um equilíbrio que permita à tecnologia ser uma aliada no aprofundamento do conhecimento, sem prejudicar o diálogo e a criatividade inerentes ao processo formativo, sobretudo da nossa consciência.

O desenvolvimento da nossa consciência plena, ou noofulness, como um estado de atenção e reflexão que aprofunda a percepção consciente de nós, dos outros e do mundo que nos rodeia encontra desafios provenientes da saturação de informação onde vivemos imersos. Só uma ponderação entre o valor que a co-inteligência traz ao modo de aprendermos seja o que for pode evitar um regresso à dormência da consciência, em vez do despertar que devia acontecer com cada vez maior intensidade, num mundo que cresce em complexidade. Nessa linha, para onde tende o mundo? O mundo tende para a unidade onde o pensamento se revela um ato de amor.

Inspirado por ideias de Teilhard de Chardin, penso que a IA pode ser um instrumento para a emergência do espírito, através da partilha do conhecimento e da construção de uma noosfera (esfera do pensamento humano) que abraça a diversidade cultural e religiosa. O mundo está em constante movimento e as consciências sistematicamente moldadas pelos avanços tecnológicos. Se preservarmos a essência do ser humano como amor, permanecerá o diálogo com o transcendente.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1331/inteligencia-artificial-e-a-consciencia-humana/


 

domingo, 23 de março de 2025

No fio da história “Maria conservava estas coisas no seu coração” (Lc 2, 19)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Ruberval Monteiro, OSB

Mosteiro da Ressurreição, Ponta Grossa (Brasil) [1] 


Uma imagem que fala sempre

‘Frequentemente se pensa que as imagens sejam ‘decoração’ de uma igreja, um mosteiro, de uma casa, de qualquer espaço. Ao contrário, todos os elementos são uma continua comunicação : nada é neutro! Mesmo o vazio das paredes brancas provoca um efeito, nem sempre positivo, sobre nós, filhos do ‘menos é mais’. Os primeiros cristãos usaram abundantemente imagens para comunicar seus conteúdos simbólicos intraduzíveis em conceitos. Uma falsa teoria muito difusa fez crer que os preceitos anicônicos da tradição hebraica teriam impedido os primeiros cristãos de usar imagens. Ao contrário, estudos sérios [2] e descobertas arqueológicas mostraram como, no período grego romano dos primeiros séculos de nossa era, onde a comunicação era feita por imagens, sejam hebreus como cristãos, influenciados pelos primeiros, usaram-nas a serviço de sua fé e culto [3], e transmitiram um acesso experiencial, não teórico, ao mistério inefável. Neste pequeno artigo veremos um modulo iconográfico usado por todo o primeiro milênio e ainda bastante válido.

O sarcófago Pignatta (s. V), que se encontra em Ravena, traz em seu lado mais curto a figura primitiva de uma esplêndida anunciação : Maria é retratada sentada em um tipo de trono à esquerda, quase completamente envolvida por um manto amplo, e está engajada na arte de tecer um fio levantado na vertical. Diante dela, à direita, o anjo chega ligeiramente inclinado em pé na direção do centro, com asas majestosas que lhe criam como que uma mandala; sua mão direita parece ter portado um rolo de pergaminho ou um bastão de viajante (as figuras são muito deterioradas) e aponta na direção da mão levantada de Maria, enquanto sua esquerda vai na direção do amplo cesto de vime que contém a lã tingida de púrpura. O braço direito da Virgem foi perdido, mas restou o sinal da mão em movimento horizontal na direção do anjo.


A Virgem que fia a lã

Esta iconografia inspira-se na tradição apócrifa onde Maria, à chegada do anjo Gabriel, estava fiando lã para tecer o novo véu do Templo de Jerusalém :

Algum tempo depois, houve um concílio de sacerdotes e eles disseram : ‘Devemos fazer uma tenda para o templo do Senhor’. E o sumo sacerdote ordenou : ‘Chamem-me donzelas imaculadas da tribo de Davi’. (...) Mas o sumo sacerdote lembrou-se da jovem Maria, que também era da tribo de Davi e era impecável aos olhos de Deus. Os criados foram buscá-la também. Deixaram-nos todos entrar no Templo do Senhor, e o sumo sacerdote lhes falou : «Lançai a sorte sobre quem girará o ouro e amianto, linho fino, seda, jacinto, escarlate e púrpura». Maria foi tocada com a púrpura e escarlate, e ela os tomou e voltou para sua casa. (...) Enquanto isso, Maria, tomando a lã escarlate, girava e fazia o fio.

Um dia Maria pegou o cântaro e saiu para tirar água, e eis que uma voz disse : ‘Salve, ó cheia de graça! O Senhor está convosco, benditas sois vós entre as mulheres’. Ela olhou ao redor, à esquerda e à direita, de onde vinha a voz. E quando ela ficou toda trêmula, ela foi para casa, abaixou o jarro e pegou a lã purpura, sentou-se em seu banquinho e o fiou. (...) Maria terminou de trabalhar a púrpura e escarlate e lá trouxe para o padre. E o sacerdote a abençoou com estas palavras : ‘Maria, o Senhor Deus glorificou o teu nome, e serás abençoada por todas as gerações da terra’ [4].

Este fio aparece com muita frequência na arte bizantina ocidental e oriental, e somente após a Idade Média esse detalhe desaparecerá da iconografia ocidental enquanto permanece na bizantina. A pergunta que vem à mente é sobre as razões desse detalhe não bíblico e qual é o significado de sua repetição. A referência ao texto dos apócrifos não é suficiente para justificar a representação, uma vez que a arte cristã primitiva não tenta mostrar como as coisas foram no passado (visão histórica), mas seu significado no presente.


Igreja de Santa Maria Maior, Roma, século V

Havia muito conteúdo em torno a este pequeno sinal. A lã fiada é um gesto muito antigo para a humanidade : as diferentes fibras de lã se unem em um único fio, graças ao fuso e ao gesto delicado de dedos que controlam a quantidade de fibras para criar uniformidade, e que, pouco a pouco, será enrolado no rolo. Esta atividade, muito comum às mulheres do antigo mundo pré-industrial, tem sido entendida desde os primeiros séculos pelos cristãos como um estupendo símbolo do mistério da Encarnação, no qual, no sagrado movimento redondo do giro do fuso, a matéria humana, no ventre da Virgem Maria, torna-se Verbo de Deus, feito carne. Ela segura na mão o fio púrpura imperial que teceu : seu trabalho agora será tornar-se «o tear da carne de Deus», de acordo com a metáfora de São Proclo de Constantinopla (+447). Sobre o Mistério da Encarnação podemos expressar-nos somente com símbolos, pois as palavras e os conceitos humanos são incapazes. Sobre este fato, papa Bento XVI bem se expressou :

O evangelista Lucas repete várias vezes que Nossa Senhora meditava silenciosamente sobre esses acontecimentos extraordinários em que Deus a havia envolvido. «Maria guardou estas coisas, ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). O verbo grego usado symbállousa significa literalmente «montar» e sugere um grande mistério a ser descoberto aos poucos [5].

A iconografia do fiar, na Idade Média ocidental, dará lugar a uma outra imagem muito semelhante ao gesto artesanal de criar um fio : a salmodia! Maria tem o saltério em suas mãos e «une» Palavra e vida. Esta «junção» faz-nos compreender que o mistério da Encarnação não é apenas algo que aconteceu uma vez no tempo, mas continua na duração da vida, tanto a da Virgem Maria, da Igreja, quanto da nossa, ao longo do ano litúrgico que nos ensina a juntar - sem excluir nada - todas as fibras da nossa história pessoal, comunitária e eclesial, para criar um fio que entrará na peça única diante do Sancta Sanctorum. A cortina ou véu simboliza a revelação de um mistério oculto [6], o limiar da eternidade.


Anunciação a Maria, Fra Angelico, 1431, Instituto de Artes, Detroit (EUA)

O trabalho artesanal de fiar «simbolicamente» os eventos históricos com os salmos, profetas, evangelho, continua o trabalho que fizeram os Padres da Igreja, tecendo com sua contribuição, a história da Salvação, nos confins entre o já/agora e o ainda não.

O giro do tempo litúrgico nos unifica em seres humanos integrados em si mesmos e com os outros, na urdidura de uma história que supera nosso entendimento, à medida que o tempo avança. Celebrar as festas litúrgicas com atenção, cuidado e amor é sempre uma forma de sair de nós mesmos e nos deixarmos levar para fora de nós mesmos, para contextualizar nosso próprio caminho pessoal em um contexto mais amplo e, portanto, ainda mais verdadeiro. Toda vez que celebramos uma festa ou uma simples hora litúrgica, bem como a recitação de orações que marcam a virada dos dias em nossas vidas, experimentamos fazer parte de um projeto superior aos nossos sentimentos, emoções, desejos e frustrações. ‘A liturgia tem um valor terapêutico para tudo que, em nós, corre o risco de nos fazer-nos voltar para nós mesmos, fechando para a vida possibilidades de expansão e crescimento’ [7].

A iconografia da anunciação primitiva e medieval revela-se, na luz da grande Tradição, um símbolo eficaz para contemplar o Mistério cristológico em si mesmo, assim como um método para uma participação ativa na celebração litúrgica, verdadeiro serviço divino à nossa unificação, como e com o Corpo de Cristo. Afinal, seguindo a imagem simbólica, o divino fiador é Ele mesmo!’

 

[1]   Professor de linguagem simbólica, arte e liturgia no Pontifício Instituto Litúrgico de Santo Anselmo, em Roma.

 [2]   A. GRABAR, «Recherches sur les sources juives de l’art paléochrétien I», Cahiers Archéologiques XI, Paris, 1969, 58-71 ; A. GRABAR, Le vie della creazione nell’iconografia cristiana. Milan 1983, 5.

 [3]   Cf. P. PRIGENT, L’image dans le judaïsme du IIe au VIe siècles, Labour et Fides, Genève, 1991, 23-42.

[4]   « Protovangelo di Giacomo » (X-XII), in Apocrifi del Nuovo Testamento, a cura di MORALDI, L., Unione Tipografico, Torino, 1971, 77-78.

[5]   Benoît XVI, Homilia para a Missa na Solenidade de Maria SS.ma Mãe de Deus e no 41º Dia Mundial da Paz, 01.01.2008.

 [6]   H. PAPASTAVROUP, Le voile, symbole de l’Incarnation - Contribution à une étude sémantique, Cahiers archéologiques 41, Paris 1993, 141-168.

[7]   M. SEMERARO, La messa quotidiana, julho, EDB, Bolonha, 2015, 308.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/125

sexta-feira, 21 de março de 2025

Música e paz

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Ricardo Abrahão 

 

‘Um dos maiores poderes que a música tem é a possibilidade de amenizar as dificuldades da vida. Os arqueólogos sempre fizeram descobertas muito valiosas sobre instrumentos musicais e sonoros e suas respectivas funções. A música sempre esteve presente nas mais variadas situações humanas, nos rituais, nas danças, na organização social, nos diversos trabalhos no campo e mais do que tudo nas formas de expressão da espiritualidade; no entanto, a paz ganha de todas as outras situações : música que cura e pacifica o espírito.

Temos vivido momentos incertos, confusos e uma enorme onda de ausência da paz, desde a interior até entre fronteiras. Algumas pessoas não possuem nem mesmo algum momento de paz. Quero recordar um homem que não fez outra coisa pela Igreja e pelo mundo a não ser promover a paz : o Papa João XXIII. Angelo Giuseppe Roncalli desde menino queria ser ‘apenas um padre do campo’  e sua luta por ver um mundo melhor foi incansável. O menino que um dia se tornou Papa legou a todos o Sacrosantum Concilium e uma das mais belas e necessárias encíclicas, a Pacem in Terris. Todo músico católico tem a mais profunda obrigação de estudar o documento sobre música contido no Concílio Vaticano II e também entender as relações entre paz e manifestações sonoras.

A igreja é um espaço físico que promove a paz e a união. Todos os sons dentro dela devem permanecer mergulhados nos propósitos da paz. Os músicos podem emitir sons que pacificam os corações dos que procuram uma espiritualidade saudável e equilibrada. Não há encontro de amor sem a paz, ela deve chegar primeiro e os primeiros dentro das funções litúrgicas que devem meditar sobre a própria paz de espírito são os músicos. Uma pergunta que sempre guia o coração do músico é : o que estou fazendo aqui? É sempre necessário recordar, ou seja, fazer o coração sentir novamente. Que São João XXIII seja uma excelente referência aos que desejam promover a paz no mundo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/musica-e-paz.html


quarta-feira, 19 de março de 2025

Correntes das mãos e do coração

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Agnaldo José 


‘No santuário dedicado a Nossa Senhora Aparecida, onde estou agora em missão por ocasião da beatificação do Padre Donizetti, em 2019 foi construída uma capela em sua homenagem. Diariamente somos surpreendidos por testemunhos de graças alcançadas pelos muitos peregrinos que passam por nossa terra. No mês passado, meu coração foi muito tocado por ouvir uma pessoa que participou de um dos fatos mais conhecidos pelos devotos, o ‘milagre da corrente’.

Depois da Missa, veio ao meu encontro um homem da cidade de Santo Antônio da Alegria (SP) chamado Deolindo Xavier Honório, 88 anos, acompanhado de sua esposa, a italiana Liberata, do filho caçula, Eduardo, e da nora, Alessandra. Coloquei cadeiras perto do altar e chamei o jornalista Francisco Donizetti Sartori, que faz parte de nossa comunidade, para escrever as palavras daquele senhor : ‘Em 1954, eu tinha 21 anos. Vim aqui para Tambaú [SP] com mais 39 pessoas na carroceria de um caminhão ‘pau de arara’. Sinceramente estava desconfiado dos milagres que o Padre Donizetti realizava. Quando cheguei, fiquei surpreendido ao ver uma multidão de pessoas que se aglomerava em frente à casa paroquial esperando sua bênção. Havia muita gente na enorme fila que se formava, em sua maioria doentes. Não entrei na fila porque estava bem de saúde, porém, permaneci próximo à porta de entrada da casa. De repente, presenciei uma cena que nunca mais saiu da minha memória : chegou uma jovem acorrentada com as mãos para trás, conduzida por dois homens, seus irmãos. Eles pediram minha ajuda porque ela estava visivelmente transtornada. Entrei com os três e nos aproximamos do padre. Inexplicavelmente ela foi se acalmando. O padre disse para que tirássemos a corrente de suas mãos. Os irmãos falaram que era melhor não fazer isso porque ela agia com violência. Diante da insistência do Padre Donizetti, eles disseram que não se responsabilizariam por qualquer coisa de anormal que ocorresse e a soltaram. Sem a corrente, ela recebeu a bênção, então, ajoelhou-se e, beijando seus pés, pediu : ‘Pelo amor de Deus, me perdoa!’. O padre respondeu : ‘Quem sou eu, minha filha, para a perdoar? Também sou um pecador. Todos somos pecadores! Vai em paz e que Deus a acompanhe’. Depois ele colocou as mãos na minha cabeça e me abençoou, bem como os irmãos da moça. Saí da casa paroquial um pouco assustado com tudo aquilo que havia acontecido. No fim da tarde, retornei para minha cidade com muito mais fé. A partir daquele dia, teve início a minha conversão’.

Quando lemos os evangelhos, vemos Jesus realizando grandes milagres e sinais. Essa jovem acorrentada nos faz lembrar da mulher pecadora que quebrou o frasco de perfume perto do Senhor, chorou seus pecados e beijou-lhe os pés. Ela foi perdoada por ter se humilhado diante dele, arrependida de todo erro que havia cometido, contudo, a história do senhor Deolindo nos recorda também da importância de mudarmos de vida depois que somos curados por Jesus.

Por intermédio do seu servo, Padre Donizetti, Jesus libertou aquela jovem que chegou presa por uma corrente, como também curou a incredulidade daquele jovem que viera em peregrinação, cheio de dúvidas no coração. A perseverança do senhor Deolindo nos ajuda a entender que todo dia é tempo de recomeçar. Façamos nossas as palavras de Santo Agostinho : ‘Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro e eu, fora. Estavas comigo e eu não contigo. Provei-te e tenho fome e sede. Tocaste-me e ardi por tua paz’.’ 


Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/correntes-das-maos-e-do-coracao.html

segunda-feira, 17 de março de 2025

Ide a São José

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Rosa Maria Dilelli Cruvinel


 ‘São José nos inspira a sermos bons cristãos e a almejar as virtudes cristãs. Como podemos nos espelhar nele? Primeiro é preciso conhecê-lo; segundo as Escrituras, José é um homem justo, escolhido por Deus para ser esposo da Virgem Maria, pai adotivo de Jesus e modelo de santidade por seu exemplo de humildade, fidelidade e obediência à vontade de Deus. 

São José ‘constitui a dobradiça que une o Antigo e o Novo Testamento’, afirmou o Papa Francisco na Carta Apostólica Patris Corde; nela, o Santo Padre, grande devoto do Padroeiro da Igreja Católica, faz um paralelo entre José de Nazaré e José, filho de Jacó, chamado de ‘sonhador’ no Antigo Testamento, ambos tiveram sonhos proféticos. Assim explica Francisco : ‘A confiança do povo em São José está contida na expressão ‘ite ad Joseph’, que faz referência ao período de carestia no Egito, quando o povo pedia pão ao Faraó e ele respondia ‘Ide ter com José; fazei o que ele vos disser’ (Gn 41,55). Tratava-se de José, filho de Jacó, que se tornou vice-rei do Egito (cf. Gn 41,41-44)’ (2020, 1). Esse José, com sua sabedoria, deu pão a uma multidão de famintos. O José, esposo de Maria, com seu serviço nos deu Jesus, o Pão do Céu (cf. Jo 6,51). 

Na audiência-geral de 29 de Janeiro de 2025, Francisco apresentou São José como homem do silêncio, um ‘sonhador’ : ‘Mas o que sonha José? Sonha com o milagre que Deus realiza na vida de Maria e também com o milagre que ele realiza na sua própria vida : assumir uma paternidade capaz de guardar, proteger e transmitir uma herança material e espiritual’. 

O Santo Padre ressaltou que o ventre de Maria trazia a promessa de Deus que garantiria a salvação a todos, Jesus. No seu sonho, José ouviu a mensagem do anjo que mudou o rumo de sua vida, ‘José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo’, e o Papa completou : ‘Perante essa revelação, José não pediu mais provas, confiou em Deus, aceitou o sonho de Deus para a sua vida e a da sua esposa prometida. Assim, ele entrou na graça daqueles que sabem viver a promessa divina com fé, esperança e amor’.

São José é um exemplo de fé silenciosa, não pronunciou uma só palavra nas Escrituras, mas suas atitudes testemunharam sua fé, observou o saudoso Papa Bento XVI. José pertence à linhagem dos que, segundo São Tiago, ‘põem em prática a Palavra’, transformando-a em obras e em vida. O Papa nos convida a seguirmos o exemplo de São José, cultivando o silêncio, a escuta e obedecendo à Palavra de Deus : ‘Irmãs e irmãos, peçamos nós também ao Senhor a graça de ouvirmos mais de quanto falamos, de sonhar os sonhos de Deus e de acolher com responsabilidade o Cristo que, desde o momento do Batismo vive e cresce na nossa vida’ (Bento XVI, homilia durante a concelebração eucarística com os membros da Comissão Teológica Internacional, 6 de outubro de 2006).

Ide a São José, assim aconselhou Santa Teresa de Ávila : ‘Pela grande experiência que tenho dos favores obtidos de São José, quisera que todos se persuadissem de lhe ser devotos. Não conheci pessoa que lhe fosse verdadeiramente devota e lhe prestasse particular serviço sem fazer progressos na virtude. Ele ajuda muitíssimo quem a ele se recomenda’ (Vida de Santa Teresa, VI, 5-8).

Assumindo as palavras do Papa Francisco na carta acima citada, dirijamos a São José a nossa oração :

Salve, guardião do Redentor

e esposo da Virgem Maria!

A vós, Deus confiou o seu Filho;

em vós, Maria depositou a sua confiança;

convosco, Cristo tornou-se homem.

Ó Bem-aventurado José, mostrai-vos pai também para nós

e guiai-nos no caminho da vida.

Alcançai-nos graça, misericórdia e coragem

e defendei-nos de todo o mal. Amém.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/ide-a-sao-jose.html


domingo, 16 de março de 2025

São Patrício

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

17 de março – O apóstolo da ilha verde (385-461)

*Artigo da redação da revista Ave Maria


 ‘Patrício não nasceu na Irlanda; pelo contrário, o primeiro encontro com aquela belíssima terra foi para ele muito desagradável. Tinha apenas 16 anos quando os piratas o levaram da Grã-Bretanha, sua terra, e o venderam como escravo nas costas nórdicas da Ilha Verde a um desconhecido, talvez um chefe de tribo.

Um sonho desfeito

Foi o período mais duro de sua vida. O seu pensamento retornava continuamente à casa paterna, à mãe, uma cristã autêntica, e ao pai, diácono da comunidade de Bannhaven Taberniae, onde Patrício nasceu em 385 e onde tinha recebido uma educação muito esmerada.

Talvez naquele período tivesse pensado em dirigir uma comunidade cristã como o pai ou de se tornar monge para difundir o Evangelho, mas então o tempo dos sonhos tinha tragicamente acabado! Sim, encontrava-se em terra estrangeira, no meio de um povo que até o momento não era cristão, do qual não entendia uma palavra e passava o dia todo cuidando dos animais, coisa que jamais tinha feito em toda a sua vida.

Por duas vezes tentou fugir, mas, inutilmente. Terá duvidado de que talvez Deus o quisesse naquelas terras e no meio daquele povo? À medida que se adaptava aos costumes de seus patrões e aprendia sua língua, descobria com surpresa que não eram assim tão rudes como lhe parecera no início. Também a organização tribal revelava qualquer coisa de nobre e os relacionamentos entre as famílias e entre as tribos eram fundamentados no respeito recíproco.

Certamente que lhes faltava a fé cristã, adoravam ainda os ídolos, mas o que ele poderia ter feito sozinho e sem nenhuma experiência nesse campo? E ele não era sempre um pobre escravo? Que sentido tinha a sua permanência nesse país estrangeiro? Precisava fugir a todo custo.

Organizou pela terceira vez um plano de fuga e dessa vez conseguiu perfeitamente. Havia seis anos que estava longe de casa. 

À escola de São Germano

Não sabemos se o navio o repatriou ou se o deixou nas costas francesas. Sabe-se com certeza que em determinado momento Patrício apareceu em Auxerre, junto ao bispo São Germano (†448), homem de profundo conhecimento de ciência e de grande santidade que, por sua vez, estivera na Inglaterra para restabelecer a paz naquela Igreja perturbada pela heresia pelagiana.

São Germano acolheu com muita satisfação o jovem britânico e ouviu com interesse a descrição das suas peripécias. Ali descobriu o dedo da providência. Quem melhor do que ele, que conhecia por experiência pessoal a língua e os costumes dos celtas e dos escoceses – como eram chamados os irlandeses –, poderia levá-los à fé cristã? É verdade que o Papa Celestino já tinha mandado um bispo para a Irlanda, mas este não tinha conseguido entrar no coração daquela gente.

A ideia não desgostou a Patrício, que, depois de ter completado em Auxerre a sua formação cristã e cultural sob a direção do santo bispo, esteve por um tempo em Lérins, centro monástico de fama europeia, defronte à Provença, onde mergulhou com todas as suas forças na vida monástica, convencido de que só com esse carisma poderia plantar a Igreja de maneira duradoura entre os povos da Irlanda.

Tendo vivido com eles por seis anos, tinha notado que havia uma grande diferença entre a psicologia dos habitantes das ilhas juntos em uma mesma cultura mais familiar e mais estática e a dos habitantes do continente, continuamente imersos em acontecimentos históricos e mais movimentados e com mais fôlego, por isso quis visitar os numerosos pequenos mosteiros das ilhas do mar Tirreno, em frente à atual Toscana, e ver com os próprios olhos o método adotado pelos monges para cristianizar os habitantes das ilhas.

O evangelizador da ilha

Naquele período, teria visitado Roma e falado com o Papa? É possível, mas, não o sabemos com certeza; ao contrário, sabemos com segurança que no ano de 432, com a morte de Palladio, o primeiro bispo da Irlanda, Patrício foi nomeado seu sucessor e partiu o mais rápido possível com um grupo de monges rumo à sua missão. Estabelecendo-se em Armagh, começou a preparar seus planos. A Irlanda, de modo diverso da Inglaterra, não tinha conhecido o domínio romano e, portanto, não havia naquela ilha nenhuma estrutura social sobre a qual basear-se para iniciar a evangelização. Seus habitantes eram subdivididos em clãs, bem unidos internamente e bem diferentes entre si. Tinham cultura e organização tribal próprias, às quais eram muito apegados.

Patrício aproximou pessoalmente os chefes dos clãs, favorecido pelo fato de que conhecia bem sua língua e costumes. Mostrou-lhes a sua primeira abadia e propôs-lhes construir outras para servir sua gente. Fez-se ajudar por eles na construção e os fez corresponsáveis também pela manutenção. Não lhe foi difícil enchê-las de jovens irlandeses, educando-os com a ajuda de seus monges.

Os chefes, respeitados nos seus cargos, foram os primeiros a abraçar a fé, arrastando consigo os próprios clãs. As abadias se multiplicavam e ao redor surgiam as habitações dos chefes e do povo, embriões das futuras cidades. Os monges, sob a sábia direção de Patrício, conseguiram englobar na fé cristã tudo o que a religiosidade anterior continha de positivo, deixando de lado o que por sua vez era inconciliável. Essa capacidade genial de Patrício de se identificar com a alma irlandesa e de compreendê-la até o fundo explica por que a pregação da nova fé não teve nenhum mártir naquela terra, mesmo que seus habitantes fossem um povo de guerreiros e frequentemente em luta entre si. Assim, a cultura monástica conseguiu encarnar-se na vida daquele povo generoso e altivo sem provocar traumas com o seu passado.

Patrício escolhia entre os jovens do lugar seus monges e padres. Entre eles não havia muita diferença, pois os monges sacerdotes exerciam com empenho o ministério pastoral e os padres diocesanos viviam com prazer com os monges ao redor do seu bispo que, por sua vez, ou era o abade ou o monge escolhido pelo mesmo abade e, portanto, entregue à sua responsabilidade. Sobre todos estava a figura paterna e carismática de Patrício. Ele percorria a ilha em todas as direções para visitar os mosteiros e as dioceses sob sua responsabilidade e para que fossem sempre o centro da vida evangélica à altura de seu carisma e missão.

Nos últimos dias de sua vida, contemplando a obra que Deus tinha realizado na ilha, exclamava comovido : ‘De onde me veio essa sabedoria que antes eu não tinha? Eu não sabia nem mesmo contar os dias, nem era capaz de amar a Deus. Como então me foi dado um dom assim tão grande e salutar como este de conhecer a Deus e de amá-lo? Quem me deu forças para abandonar a pátria e os meus pais e rejeitar as honras que me foram oferecidas e vir a pregar o Evangelho para o povo da Irlanda, suportando os ultrajes dos incrédulos e a infâmia do exílio, sem contar as numerosas perseguições e até mesmo as correntes da prisão e o cárcere? Assim, eu sacrifiquei minha liberdade pela salvação dos outros. Se não sou digno estou pronto também para oferecer, sem hesitar e com muito prazer, minha vida pelo seu nome. Se o Senhor me der a graça, desejo consagrar as minhas forças a essa causa’.

Patrício terminou sua vida em paz em Ulster em 461, em Down, cidade que se chamaria Downpatrick (cidade de Patrício). Sua missão já se podia dizer cumprida, pois ninguém até hoje conseguiu arrancar o cristianismo do coração dos habitantes da Ilha Verde.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/author/da-redacao