Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Dom Ruberval Monteiro, OSB
Mosteiro da Ressurreição, Ponta Grossa (Brasil) [1]
Uma imagem que fala sempre
‘Frequentemente se pensa que as imagens sejam ‘decoração’ de uma igreja,
um mosteiro, de uma casa, de qualquer espaço. Ao contrário, todos os elementos
são uma continua comunicação : nada é neutro! Mesmo o vazio das paredes brancas
provoca um efeito, nem sempre positivo, sobre nós, filhos do ‘menos é mais’. Os
primeiros cristãos usaram abundantemente imagens para comunicar seus conteúdos
simbólicos intraduzíveis em conceitos. Uma falsa teoria muito difusa fez crer
que os preceitos anicônicos da tradição hebraica teriam impedido os primeiros
cristãos de usar imagens. Ao contrário, estudos sérios [2] e descobertas arqueológicas mostraram como, no período grego
romano dos primeiros séculos de nossa era, onde a comunicação era feita por
imagens, sejam hebreus como cristãos, influenciados pelos primeiros, usaram-nas
a serviço de sua fé e culto [3], e
transmitiram um acesso experiencial, não teórico, ao mistério inefável. Neste
pequeno artigo veremos um modulo iconográfico usado por todo o primeiro milênio
e ainda bastante válido.
O sarcófago Pignatta (s. V), que se encontra em Ravena, traz em seu lado
mais curto a figura primitiva de uma esplêndida anunciação : Maria é retratada
sentada em um tipo de trono à esquerda, quase completamente envolvida por um
manto amplo, e está engajada na arte de tecer um fio levantado na vertical.
Diante dela, à direita, o anjo chega ligeiramente inclinado em pé na direção do
centro, com asas majestosas que lhe criam como que uma mandala; sua mão direita
parece ter portado um rolo de pergaminho ou um bastão de viajante (as figuras
são muito deterioradas) e aponta na direção da mão levantada de Maria, enquanto
sua esquerda vai na direção do amplo cesto de vime que contém a lã tingida de
púrpura. O braço direito da Virgem foi perdido, mas restou o sinal da mão em
movimento horizontal na direção do anjo.
A Virgem que fia a lã
Esta iconografia inspira-se na tradição apócrifa onde Maria, à chegada
do anjo Gabriel, estava fiando lã para tecer o novo véu do Templo de Jerusalém :
Algum tempo depois, houve um concílio de sacerdotes e eles disseram :
‘Devemos fazer uma tenda para o templo do Senhor’. E o sumo sacerdote ordenou :
‘Chamem-me donzelas imaculadas da tribo de Davi’. (...) Mas o sumo sacerdote
lembrou-se da jovem Maria, que também era da tribo de Davi e era impecável aos
olhos de Deus. Os criados foram buscá-la também. Deixaram-nos todos entrar no
Templo do Senhor, e o sumo sacerdote lhes falou : «Lançai a sorte sobre quem
girará o ouro e amianto, linho fino, seda, jacinto, escarlate e púrpura». Maria
foi tocada com a púrpura e escarlate, e ela os tomou e voltou para sua casa.
(...) Enquanto isso, Maria, tomando a lã escarlate, girava e fazia o fio.
Um dia Maria pegou o cântaro e saiu para tirar água, e eis que uma voz
disse : ‘Salve, ó cheia de graça! O Senhor está convosco, benditas sois vós
entre as mulheres’. Ela olhou ao redor, à esquerda e à direita, de onde vinha a
voz. E quando ela ficou toda trêmula, ela foi para casa, abaixou o jarro e
pegou a lã purpura, sentou-se em seu banquinho e o fiou. (...) Maria terminou
de trabalhar a púrpura e escarlate e lá trouxe para o padre. E o sacerdote a
abençoou com estas palavras : ‘Maria, o Senhor Deus glorificou o teu nome, e
serás abençoada por todas as gerações da terra’ [4].
Este fio aparece com muita frequência na arte bizantina ocidental e
oriental, e somente após a Idade Média esse detalhe desaparecerá da iconografia
ocidental enquanto permanece na bizantina. A pergunta que vem à mente é sobre
as razões desse detalhe não bíblico e qual é o significado de sua repetição. A
referência ao texto dos apócrifos não é suficiente para justificar a
representação, uma vez que a arte cristã primitiva não tenta mostrar como as
coisas foram no passado (visão histórica), mas seu significado no presente.
Igreja de Santa Maria Maior, Roma, século V
Havia muito conteúdo em torno a este pequeno sinal. A lã fiada é um
gesto muito antigo para a humanidade : as diferentes fibras de lã se unem em um
único fio, graças ao fuso e ao gesto delicado de dedos que controlam a
quantidade de fibras para criar uniformidade, e que, pouco a pouco, será
enrolado no rolo. Esta atividade, muito comum às mulheres do antigo mundo
pré-industrial, tem sido entendida desde os primeiros séculos pelos cristãos
como um estupendo símbolo do mistério da Encarnação, no qual, no sagrado
movimento redondo do giro do fuso, a matéria humana, no ventre da Virgem Maria,
torna-se Verbo de Deus, feito carne. Ela segura na mão o fio púrpura imperial
que teceu : seu trabalho agora será tornar-se «o tear da carne de Deus», de
acordo com a metáfora de São Proclo de Constantinopla (+447). Sobre o
Mistério da Encarnação podemos expressar-nos somente com símbolos, pois as
palavras e os conceitos humanos são incapazes. Sobre este fato, papa Bento XVI
bem se expressou :
O evangelista Lucas repete várias vezes que Nossa Senhora meditava
silenciosamente sobre esses acontecimentos extraordinários em que Deus a havia
envolvido. «Maria guardou estas coisas, ponderando-as no seu coração» (Lc 2,
19). O verbo grego usado symbállousa significa literalmente
«montar» e sugere um grande mistério a ser descoberto aos poucos [5].
A iconografia do fiar, na Idade Média ocidental, dará lugar a uma outra
imagem muito semelhante ao gesto artesanal de criar um fio : a salmodia! Maria
tem o saltério em suas mãos e «une» Palavra e vida. Esta «junção» faz-nos
compreender que o mistério da Encarnação não é apenas algo que aconteceu uma
vez no tempo, mas continua na duração da vida, tanto a da Virgem Maria, da
Igreja, quanto da nossa, ao longo do ano litúrgico que nos ensina a juntar -
sem excluir nada - todas as fibras da nossa história pessoal, comunitária e
eclesial, para criar um fio que entrará na peça única diante do Sancta
Sanctorum. A cortina ou véu simboliza a revelação de um mistério oculto [6], o limiar da eternidade.
Anunciação a Maria, Fra Angelico, 1431, Instituto de Artes, Detroit (EUA)
O trabalho artesanal de fiar «simbolicamente» os eventos históricos com
os salmos, profetas, evangelho, continua o trabalho que fizeram os Padres da Igreja,
tecendo com sua contribuição, a história da Salvação, nos confins entre o
já/agora e o ainda não.
O giro do tempo litúrgico nos unifica em seres humanos integrados em si
mesmos e com os outros, na urdidura de uma história que supera nosso entendimento,
à medida que o tempo avança. Celebrar as festas litúrgicas com atenção, cuidado
e amor é sempre uma forma de sair de nós mesmos e nos deixarmos levar para fora
de nós mesmos, para contextualizar nosso próprio caminho pessoal em um contexto
mais amplo e, portanto, ainda mais verdadeiro. Toda vez que celebramos uma
festa ou uma simples hora litúrgica, bem como a recitação de orações que marcam
a virada dos dias em nossas vidas, experimentamos fazer parte de um projeto
superior aos nossos sentimentos, emoções, desejos e frustrações. ‘A liturgia
tem um valor terapêutico para tudo que, em nós, corre o risco de nos fazer-nos
voltar para nós mesmos, fechando para a vida possibilidades de expansão e
crescimento’ [7].
A iconografia da anunciação primitiva e medieval revela-se, na luz da
grande Tradição, um símbolo eficaz para contemplar o Mistério cristológico em
si mesmo, assim como um método para uma participação ativa na celebração
litúrgica, verdadeiro serviço divino à nossa unificação, como e com o Corpo de
Cristo. Afinal, seguindo a imagem simbólica, o divino fiador é Ele mesmo!’
[1] Professor de linguagem simbólica, arte e liturgia no
Pontifício Instituto Litúrgico de Santo Anselmo, em Roma.
[2] A. GRABAR, « Recherches
sur les sources juives de l’art paléochrétien I », Cahiers Archéologiques XI, Paris, 1969,
58-71 ; A. GRABAR, Le vie della creazione nell’iconografia cristiana. Milan 1983, 5.
[3] Cf.
P. PRIGENT, L’image dans le judaïsme du IIe au VIe siècles, Labour
et Fides, Genève, 1991, 23-42.
[4] « Protovangelo di Giacomo » (X-XII), in Apocrifi del
Nuovo Testamento, a cura di MORALDI, L., Unione Tipografico, Torino, 1971,
77-78.
[5] Benoît XVI, Homilia para a Missa na Solenidade de Maria SS.ma Mãe de Deus e no 41º Dia Mundial
da Paz, 01.01.2008.
[6] H.
PAPASTAVROUP, Le voile, symbole de l’Incarnation - Contribution à une
étude sémantique, Cahiers archéologiques 41, Paris 1993, 141-168.
[7] M. SEMERARO, La messa quotidiana, julho, EDB,
Bolonha, 2015, 308.
Fonte : *Artigo na íntegra
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