domingo, 22 de dezembro de 2024

Sinfonia transformativa

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Miguel Oliveira Panão,

professor

 

‘Esta manhã ponderava se Deus seria um Maestro de uma grande orquestra chamada Universo onde todos podem improvisar e gerar uma Sinfonia em vez de cacofonia. Seria a Sinfonia que emerge da liberdade de todos poderem improvisar e fruto da complexidade relacional existente e da qual fazemos parte. Na prática, devido à rede de relações que permeia o mundo, todos caminhamos juntos e tocamos notas feitas de escolhas. Na Natureza, as escolhas são biológicas, mas no ser humano deveriam ser conscientes. Em Deus, as escolhas são um Mistério como realidades escondidas que nos atraem a uma vida cada vez mais profunda. Que sinfonia quer Deus orquestrar de cada vez que celebramos o nascimento de Jesus?

As ruas enchem-se de luzes desde Novembro. O primeiro pensamento foi de alguma perplexidade porque a celebração do Natal ainda distava de mais de um mês. Seria o anseio pela festa do Emanuel, Jesus, Deus-conosco? Ou seria a habitual febre do consumo subjacente à versão mais laica desta época? Gostaria que a resposta fosse sim à primeira pergunta e não à segunda, mas no fundo sabemos ser o contrário. Por isso, o desafio diante de nós em cada ano que passa é o equilíbrio saudável entre os anseios do mundo e as razões profundas que afetam a nossa existência.

Deus, que se faz um de nós e morre, afeta a minha existência porque descobrir as razões de tal escolha parecem ser um manancial natalício de reflexão infindável. Se Jesus não tivesse nascido, o mundo não seria o mesmo. O coração humano sem o Coração de Jesus talvez fosse mais selvagem. E a mudança que a sua breve existência humana realizou na evolução da nossa espécie parece-me ser a revolução do amor que quebra todas as barreiras, mais cedo ou mais tarde. Dada a aceleração que tenho assistido neste ano de 2024 que está prestes a terminar, refletir sobre a síntese do nosso coração ao Coração de Jesus é um bálsamo de lentidão que nos ajuda a parar para estarmos mais conscientes do rumo que estamos a seguir na história humana.

O Papa Francisco tem uma expressão na carta encíclica Amou-nos (Dilexit Nos) que considero muito forte: «Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede do amor com todas as suas componentes espirituais, psíquicas e também físicas» (DN, 21).

A complexidade que existe no mundo natural nasce do facto de tudo estar relacionado com tudo, um aspecto central já presente na carta encíclica Laudato Si’, mas qual o fruto desses relacionamentos além da complexidade dos sistemas? Penso que seja a unidade em torno de um Coração que significa todo o pulsar proveniente da relacionalidade existente neste universo.

Os ritmos a que batem os nossos corações são diferentes. Por vezes, as ondas anulam-se quando os pulsares são opostos. Por vezes ampliam-se de tal forma que entram em ressonância e podem levar à ruptura.

Quando penso no nascimento de Jesus, Deus-Trindade oferece um só Coração ao mundo que inclui todos os pulsares, por mais diferentes que sejam. Coração que se revela sinfonia transformativa de unidade na diversidade.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1290/sinfonia-transformativa/

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Por que falar sobre o social na Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Frei Ricardo da Cruz, OFMConv


‘Ao contrário do que muitos pensam, a Igreja tem um papel importante na sociedade. Você já deve ter escutado alguém dizer que a Igreja só deve tratar de coisas espirituais e deixar que a política cuide daquilo que é social, ou até mesmo ouviu dizer – esta afirmação é até mais comum – que a Igreja não deve se envolver com a política. É preciso esclarecer que a Igreja é, sim, uma instituição divina que trata das coisas espirituais, mas ela está inserida dentro da sociedade, por isso, não deve ser alheia àquilo que se passa no âmbito social e político. 

A Igreja Católica, por meio do Evangelho de Jesus Cristo, oferece ao homem a possibilidade de transcender sua realidade, trazendo sentido às realidades em que está inserido. Jesus, filho de Deus encarnado, experimentou em tudo a condição humana, com exceção do pecado (cf. Hb 4,15); dessa forma, Ele se encarna em um contexto histórico, dentro de uma sociedade com suas leis, sua moral, ética e religião. 

Quando a Igreja fala sobre o social, ela quer salvaguardar, sobretudo, a dignidade humana. A sociedade é feita por pessoas e onde há pessoas há também o interesse da Igreja, que preza pela dignidade humana, promovendo a vida e condições dignas de viver. A escolha preferencial aos pobres não é mero ‘socialismo’, pois quando a Igreja escolhe os pobres é porque o próprio Filho de Deus se fez pobre, nasceu sem um lugar para ficar em terras estrangeiras. 

Assim sendo, a Igreja possui uma doutrina social que também tem valor de instrumento de evangelização porque põe a pessoa humana e a sociedade em relação com a luz do Evangelho. Os princípios dessa doutrina se apoiam sobre a lei natural, que é confirmada e valorizada na fé da Igreja pelo Evangelho de Cristo; destarte, o homem é chamado a descobrir-se como transcendente em todas as dimensões da vida, inclusive no que diz respeito ao contexto social, econômico e político. 

Um aspecto importante da doutrina social da Igreja é a família : fundada no Matrimônio, entre um homem e uma mulher que constituem a primeira e vital célula da sociedade. Além do mais, essa doutrina ressalta a importância dos valores morais fundamentadas na lei natural inscrita na consciência de todo ser humano.

Sendo assim, falar sobre o social na Igreja é promover o ser humano à sua mais alta dignidade por meio do anúncio de Jesus Cristo, Boa-Nova de salvação, promovendo o amor, a justiça e a paz. Jesus veio para que todos tenham vida em abundância (cf. Jo 10,10) desde sua concepção até a morte natural. 

Que o Senhor vos dê a paz!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/por-que-falar-sobre-o-social-na-igreja.html


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Como anda sua relação com Deus?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Rosa Maria Dilelli Cruvinel

 

‘Essa pergunta precisa estar sempre perto de nós, afinal de contas, precisamos sempre avaliar nossas prioridades e como gastamos nosso tempo. Sobretudo no tempo do Advento somos chamados a avaliar mais intensamente como anda nossa relação com Deus.

Muitas vezes passamos por tempos fortes, marcados por enfermidades, acidentes, perdas de familiares ou de amigos próximos, dificuldades financeiras e outras situações que nos fazem parar e automaticamente nos levam a refletir sobre nossa relação com Deus. Esses momentos de dor são oportunidades que a providência divina permite para voltarmos a Deus e conhecê-lo mais. 

Por que voltar? Jesus apresenta na maravilhosa parábola do filho pródigo (cf. Lc 15,11-32) a verdadeira motivação que deve reger nosso retorno para Deus : a bondade do Pai. Ao narrar a história do filho mais novo que abandona a casa paterna e sofre a dor do fracasso de uma busca de felicidade frustrada, Jesus aponta um caminho aberto para a volta para o Pai do Céu : foi na reflexão interior que o filho obteve o reconhecimento da ‘bondade do pai’. Com efeito é na reflexão, na atitude de ‘entrar em si’ que o filho faz memória da generosidade do pai e, ao mesmo tempo, lembra quem ele é : filho. O fruto dessa experiência de fé no amor do pai o faz renovar sua identidade, sua filiação; assim, movido pelo arrependimento e com confiança filial retorna a casa paterna, diz a Escritura : ‘Entrou então em si e refletiu : ‘Quantos empregados há na casa de meu pai que têm pão em abundância… e eu, aqui, estou a morrer de fome. Vou me levantar e irei a meu pai, e lhe direi : Meu pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados’. Levantou-se, pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda longe, quando seu pai o viu e, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, o abraçou e o beijou (Lc 15,17-19)’.

Santo Inácio de Loyola, mestre em espiritualidade, é um grande exemplo do fruto que se alcança ao fazermos uma reflexão, especialmente no momento de dor, de como anda nossa relação com Deus. Inácio era militar antes de se converter ao Senhor; certa vez, estando em batalha na cidade de Pamplona, Espanha, foi atingido por um canhão que quase destruiu sua perna. No tempo de sua recuperação, interessou-se pela leitura da vida de santos e, pouco a pouco, foi contagiado pelos nobres testemunhos de santidade, a ponto de abrir-se à vontade de Deus a respeito de sua própria vida e a mudar o rumo que iria tomar a partir daquele momento. A partir dessa experiência, abandonou-se confiantemente nas mãos de Deus e ao processo de cumprir o fantástico sonho do Senhor para sua vida.

A graça e o perdão de Deus nunca se esgotam, mas, cabe a nós aproveitarmos as oportunidades e nos avaliarmos : buscamos o Senhor somente quando nossa situação ‘aperta’? Vamos à Igreja somente quando precisamos de algo? Buscamos a Deus por amor? Com o mesmo amor com que Ele nos ama? Podemos dizer como o salmista : ‘Com o que poderei retribuir todo o bem que o Senhor me fez?’ (Sl 116,12). Deus nos amou por primeiro (cf. 1Jo 4,19), o Pai nos deu seu próprio filho, Jesus, para nossa salvação. Jesus é o maior sinal do amor que o Pai deu à humanidade. Jesus, por sua vez, prova seu amor para conosco pelo fato de ter morrido por nós, sendo nós ainda pecadores (cf. Rm 5,6-12). 

Aproveitemos, portanto, o tempo oportuno para retornar a Deus! Façamos memória da bondade do Altíssimo, isso nos eleva em dignidade, faz-nos experimentar o mesmo que o filho pródigo no retorno à casa paterna : tenho um pai generoso, sou filho muito amado!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/como-anda-sua-relacao-com-deus.html

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Musicalidade e Esperança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Ricardo Abrahão 


‘A arte da escuta atravessa a história humana e desloca o homem a elaborar seus instintos auditivos de sobrevivência, transformando a mesma escuta na mais sublime capacidade interior, o sentimento. Foi numa noite silenciosa, calma, que pessoas simples ouviram um coro angélico cantar ‘Gloria in excelsis Deo et in Terra pax hominibus bonae voluntatis’. A música celestial só pode ser ouvida por aqueles que, de um modo ou de outro, aproximam-se da humildade. Não foi difícil aos pastores o encontro com o Menino Jesus, bastou a eles seguir a melodia dos anjos para reconhecerem a grande esperança acolhida pela manjedoura na gruta de Belém.

Noite silenciosa! Noite santa! O encontro sublime entre a maior humildade e o maior louvor! A criação parou para escutar a esperança. Quem se propõe a músico litúrgico se coloca à disposição de trabalhar com os sons em função da esperança. Um músico narcisista não oferece nada além do que sua incapacidade de sentir esperança. Não é uma simples questão de entendimento. O ponto central da melodia cristã é o sentimento, uma experiência delicada com o Espírito Santo. Temos testemunhado muitos ‘entendidos’ no Evangelho que mais criam conflitos do que esperanças.

A musicalidade da esperança é infalível e inconfundível porque conforta o coração, acalenta sonhos, toca a oração profunda e transforma tudo em caridade. A esperança é uma melodia interior que transcende tempo e espaço e, como a Estrela Guia, leva-nos à manjedoura da humildade onde o Amor incarnatus est nos aguarda para abraçar-nos para sempre. 

Que o Natal de Jesus seja a melodia que nunca cessa de cantar o amor em nossos corações! Feliz Natal!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/musicalidade-e-esperanca.html

sábado, 14 de dezembro de 2024

A Ética do Cuidado

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Robson Ribeiro de Oliveira Castro Chaves

 

O cuidado com a vida surge da consciência de sua fragilidade, constituindo-se em um imperativo ético essencial para a preservação e promoção da existência humana. Sem o cuidado, a vida não se desdobra plenamente em seu potencial, tampouco alcança sua missão. O cuidado, portanto, não pode ser visto apenas como uma prática isolada, mas como parte de uma ética integral que se preocupa com a preservação da dignidade e da humanidade em sua totalidade.

Nesta realidade encontra-se a necessidade de se debater racionalmente sobre as formas mais eficazes de proteger e amparar a vida. A ética, como campo da filosofia, oferece as bases para essa discussão, que se desenvolve por meio de princípios racionais, mas que também perpassa a dimensão afetiva e espiritual. Assim, o cuidado pode ser compreendido não apenas como um ato, mas como uma virtude que deve orientar as ações humanas em direção ao bem comum.

A ética cristã, especialmente, desempenha um papel crucial na formação dos sistemas de vida no Ocidente, alicerçando-se em fontes como a Bíblia, a Tradição, e o magistério da Igreja. Ela é parte de uma construção histórica e comunitária, que tem como centro a pessoa de Jesus Cristo e seu evangelho. Este evangelho, ao mesmo tempo que oferece uma visão escatológica da vida, também oferece diretrizes práticas de conduta que se desdobram em formas concretas de comportamento moral e espiritual.

Nesse sentido, a ética cristã coloca a vida no centro de sua preocupação, inspirada no mandamento do amor, que exige que se cuide do próximo como de si mesmo (Mt 22,39). O amor ao próximo, expressão máxima do cuidado, não é apenas um sentimento, mas uma ação concreta que visa a salvaguarda da vida em todas as suas expressões. A partir dessa inspiração, a ética cristã propõe uma conduta de solidariedade, de justiça e de cuidado integral, em que a vida é defendida em todas as suas fases, desde a concepção até a morte natural.

A construção de uma conduta autêntica, que leve à humanização do ser, requer um compromisso ético com o cuidado, mas também com a transformação das estruturas sociais que geram injustiça, desigualdade e exclusão. A ética cristã não é uma ética de mera conformidade com regras morais abstratas, mas um compromisso dinâmico com a promoção da dignidade humana, refletida na ação em prol dos mais vulneráveis e marginalizados.

Diante dos desafios, somos chamados a participar do processo de reinvenção do cotidiano. Para tanto, é necessário ter cuidado com a vida, respeitar o próximo e, principalmente, as gerações.

Para tanto, só será possível uma real mudança se mudarmos a nossa conduta ética e moral, pois uma conduta moral duvidosa, sem apreço à vida, nos leva a deixar de vivenciar os melhores momentos e, acima de tudo, desrespeitar aqueles que sofrem com algum problema e não darmos a devida importância ao sofrimento das pessoas.  Por isso, ter esperança, ou esperançar, é ter iniciativa, é ir ao encontro, é buscar ouvir os que mais precisam.

É preciso, urgentemente, se fazer ouvir e articular o maior crescimento da consciência humana sobre o que é ser humano. A forma como se trata o tema ainda é um tabu. Durante séculos de nossa história, por razões religiosas, morais e culturais, falar do tema do suicídio era algo proibido e, principalmente, um pecado, por esta razão, ainda temos medo e/ou certa vergonha de comentar sobre o assunto.

De fato, ao falar desta realidade, estamos inseridos na sociedade que vive o problema de forma global e não se deixa abrir ao debate consciente. O tabu sobre a questão do suicídio perdeu a força diante dos inúmeros casos de problemas oriundos da pandemia. Hoje, frente à realidade, é urgente refletir sobre o bem-estar do próximo e não apenas o nosso. É a partir desta concepção que devemos observar a realidade sem receios e entender como tratar o outro, principalmente na escuta enquanto membro da sociedade e no período pandêmico que vivemos e estamos, ainda vivendo.

É preciso cultivar o caminho ético, sem preconceitos e comentários maldosos. Que a nossa conduta moral seja pautada por regras que devem ser respeitadas por cada um. Para tanto, é preciso se comprometer com a cultura do encontro e do diálogo para que possamos nos comprometer com a vida de cada um e ser mais solidários com a dor e a realidade do outro.

Assim, dotados dessa responsabilidade é urgente pensar que os projetos de formação da educação para o humanismo solidário têm por foco principal a ação consciente de cada um na construção de uma Educação para o humanismo solidário e que haja uma verdadeira inclusão de todos nesta realidade. O tema do mês de setembro é uma forma de falar com respeito diante da realidade do suicídio.

Nesse contexto, precisamos observar o caminho que seguimos e os exemplos que podemos dar em nossa realidade. Entre eles temos que alimentar o desejo de uma sociedade mais humana e exercitar o amor ao próximo por meio de gestos de solidariedade.

Devemos seguir o exemplo de Jesus : sua ética, seu comportamento, seu caráter, seu modo de ser e de agir. Ele assumiu uma conduta autêntica em uma sociedade contrária a tudo que ele pregava. Ele veio transformar o mundo, a começar pela sociedade de sua época. Assim, tratar o próximo com respeito é fazer valer o amor criador de Deus e sua proposta para o ser humano : ’O que fizer ao menor dos meus irmãos, a mim o fazeis’. (Mt 25,40). Por isso, cuidar do outro, escutá-lo e fazer um processo de encontro é a base das nossas relações.

Por fim, o caminho para uma conduta mais autêntica passa pela integração entre o cuidado e a ética. A consciência da fragilidade da vida leva à necessidade de uma responsabilidade maior com o outro e com o meio em que vivemos. Assim, propõe-se uma ética do cuidado que não apenas responde às urgências imediatas, mas que se alicerça em valores perenes de respeito, empatia e justiça, construindo, assim, uma sociedade mais humana e compassiva.

Essa ética do cuidado, inspirada no cristianismo, se expande para abarcar todas as dimensões da existência humana, desde as relações interpessoais até as preocupações globais com a ecologia e a justiça social. É um chamado à conversão ética, na qual o ser humano é convidado a assumir um papel ativo na construção de um mundo mais justo e solidário, onde o cuidado pela vida, em todas as suas formas, seja o princípio norteador das ações individuais e coletivas.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2024-12/etica-cuidado.html

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Índia: religiosas cuidam de vítimas de violência e abuso no sul do país

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Anne Preckel


‘As sobreviventes de abusos «dizem com frequência para mim : não sei porque as pessoas me rejeitam e porque agora olham para mim de maneira diferente. Não sou aceita. Não fiz nada!», comenta a religiosa indiana Johncy Nambikairaj durante entrevista ao Vatican News. Muitas vezes, quando as pessoas descobrem os abusos, estigmatizam as vítimas e as suas famílias.

A Ir. Johncy é assistente social e trabalha com meninos e meninas provenientes de contextos pobres da comunidade de Gudalur, numa região montanhosa do Estado de Tamil Nadu, na Índia. «Algumas dessas crianças sofreram várias formas de abuso físico, mental, sexual. Dispomos de um lar para cuidarmos delas, prestando-lhes os primeiros socorros. Quando nos procuram, oferecemos-lhes aconselhamento em várias fases», explicou a religiosa das ‘Irmãs da Caridade de Maria Menina’ (ICMM), ordem fundada em Lovere (Itália), em 1832.

A pobreza e o abandono constituem o terreno fértil para os abusos, referiu a Ir. Johncy a propósito das circunstâncias sociais. «Estas meninas não gozam da necessária privacidade em casa, e além disso há a pobreza. Os pais deixam-nas sozinhas porque devem trabalhar. As menores são vítimas de abusos, por exemplo, por parte de vizinhos ou de pessoas que conhecem a família». Tamil Nadu é um dos Estados mais industrializados da Índia e relativamente próspero. No entanto, existem desigualdades sociais e problemas como o trabalho infantil, a subalimentação, o desemprego e os abusos.

«As crianças vítimas de abusos sentem-se intimamente destruídas», diz a assistente social. «Por fora, parece que está tudo bem. Mas quando nos aproximamos delas, damo-nos conta de que se sentem profundamente feridas». Atualmente, a Ir. Johncy cuida de 50 meninas, muitas das quais são órfãs ou semi-órfãs. A congregação não pode oferecer ajuda terapêutica, mas consegue proporcionar abrigo e educação. Outras, infelizmente, são mandadas para casa, onde muitas vezes não vivem em segurança. Para chegar às vítimas, a congregação colabora também com a ‘ChildLine 1098’, onde as vítimas e os cidadãos de ‘bom coração’ podem denunciar os casos de abuso.

A Ir. Johncy explicou que o abuso ainda é um tabu social na Índia, representando um dos maiores desafios no seu trabalho em benefício das vítimas. Se falar de sexualidade é uma vergonha, para muitos é ainda mais difícil falar de violência sexual que, portanto, não é denunciada : «na nossa cultura, não se fala desses assuntos», resumiu. Isto torna mais difícil a prevenção, levando as vítimas e as suas famílias a sofrer ainda mais, sobretudo quando a injustiça não é mencionada nem punida, mas tende a ser ocultada.

A violência contra as jovens e as mulheres constitui um problema enorme na Índia, como demonstram as estatísticas. A maior parte dos casos ocorre em casa, onde o número de crimes não denunciados é ainda mais elevado. Para debelar esta situação, no verão de 2024 entrou em vigor um novo código penal que prevê, entre outras coisas, um tratamento mais rápido dos casos por parte da polícia e dos tribunais.

A Igreja católica na Índia envia cada vez mais esforços a fim de sensibilizar para este tema e combater os abusos. No outono de 2023, a Ir. Johncy foi enviada a Roma para receber formação sobre o tema da tutela, no Instituto IADC da Pontifícia Universidade Gregoriana. Agora, inseriu o que aprendeu na sua atividade na Índia.

A missão junto aos refugiados

A religiosa trabalha também para sensibilizar as escolas e os refugiados, que estão expostos a riscos elevados. Disse-nos que já foram alcançados alguns progressos : «desde que demos início à obra de sensibilização, mais pais decidiram falar sobre o problema, não em toda a parte, mas em certos casos, lentamente, começam a enfrentar mais esta questão. Ensinamos as crianças a falar e os pais a ouvir. Ainda há muito a fazer, mas nota-se um lento progresso».

Embora a Igreja católica na Índia seja uma minoria (menos de 2% da população), a sua influência nos setores social, educativo e da saúde é importante. Através da sua rede, a Igreja tem um enorme potencial na área da tutela, não só no país mais populoso do mundo, a Índia, mas no mundo inteiro.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-12/projeto-sisters-irma-johncy-nambikairaj-cuidado-prevencao-mulher.html

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Melodiar a esperança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Bernardino Frutuoso,

jornalista

 

‘Vivemos uma época complexa, marcada por incertezas, sofrimentos e medos. Os ventos fortes da guerra e da violência continuam a soprar em muitas regiões do mundo. A cultura do descarte e do consumismo, as desigualdades, o crescente paradigma tecnocrático difundem-se e condicionam muitos dos nossos comportamentos diários. Enfrentamos, igualmente, uma grave crise climática global : a atmosfera aquece, o nível dos mares sobe, a riqueza da biodiversidade perde-se, as secas e as inundações são mais frequentes e severas. Apesar da procura de soluções e consensos multilaterais para enfrentar as alterações climáticas, as medidas assumidas não são aplicadas – como lembra o papa na exortação Laudate Deum. Esta crise, como explica o Papa Francisco na encíclica Laudate Si’, está ligada a uma crise socio-economica, que afecta sobretudo os mais vulneráveis. Por isso, o papa pede o perdão das dívidas dos países pobres, que nunca poderão pagá-las, que é uma verdadeira «dívida ecológica» – apelo que renova para o jubileu que vamos viver em 2025.

Neste cenário, podemos cair no pessimismo, no desânimo e na passividade. No entanto, como crentes, estamos chamados, como proclama o lema do jubileu de 2025, a ser peregrinos da esperança. Na bula de proclamação do Ano Santo, que iniciamos no dia 24 deste mês, o Papa Francisco pede-nos que descubramos a esperança nos sinais dos tempos. «Para não cair na tentação de nos considerarmos subjugados pelo mal e pela violência, é necessário prestar atenção a tanto bem que existe no mundo. Porém, os sinais dos tempos, que contêm o anélito do coração humano, carecido da presença salvífica de Deus, pedem para ser transformados em sinais de esperança», sublinha o pontífice. 

Os cristãos devemos olhar para o futuro com esperança, tendo «uma visão da vida carregada de entusiasmo para transmitir» e apoiando «uma aliança social em prol da esperança, que seja inclusiva e não ideológica». 

Francisco convida-nos, ainda, a ser signos tangíveis de esperança para todos aqueles que não a têm, nomeadamente os doentes, os presos, os migrantes, os pobres, os anciãos.  Cada discípulo missionário de Jesus, portanto, tem um papel essencial na construção da cultura da vida e da esperança, como aponta o papa : «Com os gestos, as palavras, as opções de cada dia, a paciência de semear um pouco de encanto e gentileza onde quer que estejamos, queremos cantar a esperança, para que a sua melodia faça vibrar as cordas da Humanidade e desperte nos corações a alegria e a coragem de abraçar a vida».

O Natal é um tempo oportuno para reforçar a esperança e a utopia cristã. Celebramos com alegria que o nosso Deus não está longe, mas vive no meio de nós, porque Ele é o Emanuel, o Deus conosco. O Menino que nasce em Belém é a fonte da nossa esperança; é a alegria para os nossos corações e a força que nos permite lutar por um mundo melhor, fraterno, solidário e justo. Ele é o Messias prometido, capaz de gerar nos nossos corações a liberdade e a paz, a audácia e o compromisso. Ele faz-nos acreditar que o mundo pode ser uma casa para todos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1289/melodiar-a-esperanca/

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Ucrânia: preparar-se ao sacerdócio na escola da guerra

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Svitlana Dukhovych 

 

‘Estamos tentando fazer com que os nossos seminaristas entendam que enquanto esta guerra continuar, ou mesmo quando terminar, eles terão que exercer a sua missão pastoral entre as pessoas feridas pela guerra’. Padre Ihor Boyko, reitor do seminário greco-católico de Lviv, em entrevista aos meios de comunicação do Vaticano, fala sobre as atividades que os seminaristas já estão realizando para apoiar aqueles que sofreram traumas e lutos, preparando-se assim para o futuro ministério sacerdotal.

‘Como posso voltar à vida normal’ 

‘Infelizmente a guerra continua - diz Pe. Boyko com amargura - mas embora seja uma situação realmente difícil, também vemos muitas iniciativas positivas. No início, a Igreja concentrou-se muito no apoio às pessoas deslocadas. Com o tempo vimos que deste ponto de vista a situação foi melhorando e muitas pessoas conseguiram regressar às suas casas. Hoje, porém, temos muitas situações de pessoas feridas quer no corpo – há muitos feridos entre os militares, mas também entre civis – e na alma. A Igreja procura ajudar a todos. Por exemplo, os seminaristas dos últimos anos do nosso seminário vão aos hospitais para visitar os militares, para falar com eles ou simplesmente para estar perto deles. Porque os médicos podem prestar cuidados médicos - hoje, com o desenvolvimento da medicina, podemos ter próteses modernas - mas muitos jovens, homens e mulheres, que sofreram ferimentos graves ou mutilações, trazem muitos questionamentos em seus corações : ‘Como posso continuar a viver? Qual é o significado de tudo isso que aconteceu comigo? Como posso voltar à vida normal, à minha família?’.

Pe. Ihor observa que em situações assim difíceis, o desespero pode levar ao abuso de álcool ou a algum outro comportamento autodestrutivo, ou até mesmo a pensamentos suicidas. Por isso a presença da Igreja, do clero e dos seminaristas é extremamente necessária neste período.

O tempo de estar próximos 

O reitor do seminário greco-católico de Lviv também fala de outra iniciativa que envolve seminaristas. Às vezes, durante a semana, vão ao cemitério militar de Lviv, onde sempre há algum familiar dos soldados que morreram na guerra. ‘Por exemplo - relata padre Bayko - ali encontrei recentemente uma mãe que junto com seus quatro filhos estava ao lado do túmulo de seu marido. Quando começamos a conversar, ela me disse : ‘Eu também tenho uma quinta filha, ela já é adulta e tem família própria’. Em momentos como esse, te dás conta que a tua presença como sacerdote, e também como homem, ao lado desta mãe e de seus filhos é muito importante. Porque as crianças ficam felizes em compartilhar tudo o que, talvez, gostariam de contar ao papai : os seus sucessos na escola, os primeiros passos na universidade, os seus sonhos, as suas esperanças. E então esse tempo que passamos juntos, estar próximos, ouvindo, acredito que seja muito necessário hoje.’

O sacerdote acrescenta que cada história que ouvem sobre os sepultados naquele cemitério fica gravada nas suas mentes e nos seus corações. ‘Porque ali - explica - estão sepultados muitos jovens que eram personalidades brilhantes. Muitos deles não eram militares antes da guerra. Alguns trabalhavam no exterior e quando começou a invasão russa deixaram tudo e regressaram à Ucrânia para defender a sua terra dizendo : ‘Se eu não defender a minha família, os meus filhos, quem o fará?’. Nenhum deles queria morrer, mas queriam voltar para casa para continuar vivendo felizes em seu país. Aqui, hoje temos estes novos heróis que dão a vida pela verdade, pela dignidade, com grande amor e dedicação ao seu povo’.

Curar as feridas 

Muitas vezes sacerdotes, capelães e até mesmo bispos ucranianos afirmam nas entrevistas : ‘Ninguém nos ensinou em como realizar a pastoral durante a guerra’. Eles recebem esta formação pelas experiências difíceis e muitas vezes dolorosas que vivem, quer como pastores, quer como habitantes de um país em guerra.

‘Notamos – observa Don Boyko – que os jovens que agora estudam no seminário às vezes manifestam ansiedade, medo, alguns até mesmo ataques de pânico, porque muitos têm parentes, amigos, pais, irmãos ou irmãs que estão na guerra. Recentemente houve o funeral do pai de um dos nossos seminaristas, morto na guerra. Toda a comunidade do seminário está tentando apoiar ele e sua família durante este período de luto. Neste contexto, procuramos, em primeiro lugar, fazer compreender aos nossos seminaristas que, enquanto esta guerra continuar, ou mesmo quando terminar, eles deverão exercer a sua missão pastoral entre as pessoas feridas pela guerra. Porque as pessoas vão falar sobre isso em confissões e em conversas individuais. Muitas vezes encontrarão algum soldado que lutou no front e os seminaristas terão que saber como falar com ele, o que perguntar e o que não perguntar. Terão que celebrar os funerais e também aí terão que saber comportar-se em conformidade, sabendo que temas abordar e quando, por outro, permanecer em silêncio’.

Prontos para tudo 

A Igreja na Ucrânia tornou-se um verdadeiro ‘hospital de campanha’ que tenta curar as feridas das pessoas. Uma dessas feridas é sofrida pelos pequenos, as crianças órfãs que perderam um ou os dois pais na guerra. Padre Ihor diz que seus seminaristas também estão empenhados neste campo, visitando orfanatos e organizando acampamentos de verão para crianças e adolescentes que ficaram sem mãe e pai.

Os seminaristas greco-católicos, afirma o reitor, organizam frequentemente encontros com os militares para lhes ensinar catequese, rezar juntos ou simplesmente para conversar. ‘O que mais motiva os seminaristas – sublinha Pe. Boyko – é o exemplo dos outros. Quando veem o exemplo dos sacerdotes que vão para áreas próximas da frente para servir como capelães, muitas vezes vêm até nós e dizem que também gostariam de fazê-lo. No início pensamos que poderia ser perigoso, mas hoje lhes dizemos : ‘Vocês são adultos, podem fazer suas próprias escolhas’. E há muitos seminaristas que estão felizes em exercer tal ministério para dar apoio espiritual aos nossos militares, para estar perto deles, para apoiar também os nossos capelães militares’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-12/ucrania-preparacao-sacerdocio-guerra-ihor-boyko.html

sábado, 7 de dezembro de 2024

Irã terá seu primeiro cardeal. Saiba quem é o franciscano e astrônomo Dominique Joseph Mathieu

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Gianni Valente


‘O Papa Francisco chamou-o para guiar a antiga sede episcopal de Ispahan, ereta já em 1629, depois de ter mudado o  nome para Arquidiocese de Teerão-Isfahan dos Latinos. Depois decidiu criá-lo cardeal, no Consistório de sábado, 7 de dezembro.

Padre Dominique Joseph Mathieu, 61 anos, franciscano conventual, será o primeiro cardeal titular de uma sé episcopal em solo iraniano. Ele não ostenta ‘títulos’ específicos que de alguma forma o predestinaram para tal posição. Não estudou e não se preparou toda a vida para assumir aquela singular missão, tão delicada.

No entanto, se agora olhar para trás, tudo se recompõe e se realinha em sua vida repleta de coisas. No fluxo das recordações, detalhes à primeira vista secundários aparecem para ele agora como peças-chave do percurso. E cada passo – confidencia hoje – ‘parece ter-me preparado de alguma forma para a condição que estou vivendo agora’.

Abadias, mosteiros e terras de fronteiras 

Dominique Joseph nasceu em Arlon, na Bélgica francófona, e cresceu na região flamenga de Bruges, a ‘Veneza do Norte’. Das terras da sua infância e adolescência recorda também os mosteiros e as grandes abadias, como as de Orval e Zevenkerken, frequentemente visitadas com a família. E se depara imediatamente com as modulações invisíveis, linguísticas e culturais, que também dividem pessoas e classes colocadas pela história para partilhar o mesmo recanto do mundo.

Aos domingos, em Bruges, Dominique serve na Missa como coroinha até os 20 anos, também na catedral. Participa da Missa diária, junto com alguns amigos da escola. No início são cerca de dez, e no final dos seus cursos dois. A certa altura, por falta de participantes, a Missa deixou de ser celebrada. «Eu tinha 13 ou 14 anos», recorda hoje o arcebispo Mathieu, «e fui ao diretor da escola para perguntar se a celebração diária poderia ser retomada. O sacerdote voltava propositalmente à tarde, quando as aulas terminavam, para celebrar uma Missa especialmente para os estudantes. Ele fez isso durante vários anos, e muitas vezes o único presente na Missa era eu. Quando penso nisso, me toca mesmo agora. Foi um testemunho muito forte. Agora acontece também comigo de celebrar sozinho. E então penso naquele padre, que durante muitos anos celebrou Missa para uma só pessoa, e fez isso por mim. Repito para mim mesmo que nem ele nem eu celebramos nunca sozinhos, porque a Missa é sempre celebrada em comunhão com toda a Igreja universal. E esta é a Igreja».

Jesus e as estrelas

 Em Bruges, desde muito jovem, o futuro arcebispo de Teerã entrelaça o seu caminho cristão com a sua paixão pela astronomia. O seu primeiro telescópio chegou quando ele tinha 12 anos. À noite, perscruta o céu e as estrelas. «Mas eram como dois paralelos que seguiam separadamente. Até o dia em que percebi que mesmo perscrutando o espaço estava cheio de estupor e gratidão pelas maravilhas de Deus.’

Desde que é bispo, o padre Mathieu deixou um pouco de lado a astronomia. Muito pouco tempo e muito complicado para levar consigo os instrumentos para observar e fotografar as estrelas. Mas o surpreende o destino de viver hoje na terra onde os antigos sacerdotes perscrutavam o céu do alto dos Zigurates. E para os batizados que agora estão com ele, compartilha a sua outra paixão, a gastronomia, preparando doces e coisas boas para comer.

A Ordem franciscana 

«Nasci no dia 13 de junho, dia de Santo Antônio de Pádua», recorda padre Dominique. E para ele é somente o primeiro sinal com que o Santo de Assis quis atrair a sua vocação para a grande família dos filhos de São Francisco. Mosteiros, encontros com histórias e epopeias franciscanas, como a dos Frades Capuchinhos que em Arlon, sua cidade natal, e em outros lugares escolheram viver nas colinas para vigiar e dar o alarme em caso de incêndios. No quarto da casa do avô encontra os livros de um parente distante que foi missionário capuchinho no Congo.

«Lia com paixão as histórias dos Oblatos de Maria Imaculada no Canadá e aquelas dos missionários jesuítas na China. Mas o livro que mais me impressionou foi um livro antigo sobre São Francisco, com páginas amareladas.’

Um padre de origem holandesa envia a ele material informativo sobre o franciscano conventual Maximiliano Kolbe, martirizado pelos nazistas. Assim, aos 16 anos, Dominique passou a Semana Santa no Convento dos Franciscanos Conventuais de Lovaina.

São os anos que se seguem ao Concílio Vaticano II, quando também a vida religiosa está buscando uma nova identidade. Há também tensões e dialéticas acaloradas. «No refeitório, vi padres discutindo entre si, e isso não me escandalizou, pelo contrário : significava que estávamos com os pés no chão, e os padres se mostravam pelo que eram, não querem oferecer de si mesmos e de sua vida no convento uma imagem adocicada.’

Ao entrar na comunidade, padre Mathieu escolhe precisamente os franciscanos conventuais. Durante o período de formação passado na Bélgica, não faltam problemas. Na Flandres de então, havia uma hostilidade crescente em relação aos flamengos de língua francesa, identificados como uma aristocracia que no passado tinha feito sofrer os seus outros compatriotas. «Com o tempo - acrescenta o arcebispo de Teerã - conciliei-me também com aquele período cheio de tensões, o que me ajudou a tomar consciência da diversidade e também dos conflitos, sem cultivar preconceitos em relação aos povos e às culturas».

Dominique Joseph é o primogênito e tem duas irmãs. «Os meus pais diziam-me que estavam felizes com a minha vocação, nunca me bloquearam, mas repetiam-me : se vires que as coisas não vão bem, lembra-te que podes sempre voltar para casa. Isso me incomodou um pouco no começo. Então entendi que o maior sinal do amor deles era justamente deixarem sempre a porta aberta».

Depois do Noviciado na Alemanha, do período de estudos vivido em Roma, padre Dominique recorda também o tempo passado na prisão Regina Coeli, onde era capelão o seu confrade Vittorio Trani, há 50 anos grande testemunha da missão entre os presos. «Havia vários prisioneiros muçulmanos - recorda o arcebispo Mathieu - e queríamos fazer algo para lhes permitir ter um lugar para rezar na prisão. Era um problema novo. Encontramos os tapetes e o Alcorão oferecidos pela Mesquita dos etíopes. Funcionou por algumas semanas, então começaram as discussões. Na época, quem tinha que administrar logisticamente a iniciativa não sabia a diferença entre xiitas e sunitas... Voltando à Bélgica, também lá me interessei pela prática religiosa dos prisioneiros muçulmanos, mas lá o problema já era enfrentado há algum tempo, tudo já estava rigorosamente regulamentado e nós, cristãos, não podíamos sequer ter contato com os muçulmanos para os ajudar. Foi então que fui estudar árabe literário na Mesquita...’.

A missão em tempos de secularização  

Ordenado sacerdote, padre Mathieu regressa à Bélgica e vive mais de 20 anos a conotação missionária da sua vocação religiosa em terras de secularização, onde se sente fortemente o ‘desmatamento da memória cristã’, como dizia o cardeal belga Godfried Danneels. Hoje ele recorda : «Há tempos que não existiam vocações e havia um grande abismo entre mim e a geração anterior. Naquela situação, eu sabia que nunca receberia incentivo para partir em missão. A missão era ali».

Trata-se de. aceitar a realidade das coisas. As circunstâncias dadas. Padre Dominique torna-se Vigário Provincial e depois Provincial, enquanto o número de frades diminui. Sucedem-se fusões, movimentos e fechamentos de casas religiosas. Decide-se concentrar os franciscanos conventuais na casa de Bruxelas, onde têm o convento imerso nos bairros de imigração. Para não fechar a Província Belga, pede-se o apoio das outras Províncias conventuais da Europa. «Buscávamos os caminhos em meio às consequências da secularização e da globalização com que nos deparávamos». Leigos e leigas agregavam-se em torno ao padre Dominique. Uma comunidade que já então ‘mostrava ter necessidade da sua liberdade’ para continuar a crescer ao longo do caminho.

A surpresa libanesa 

Em 1993, o futuro arcebispo de Teerã viaja ao Líbano para a ordenação sacerdotal de César Essayan, seu colega de estudos, atual Vigário Apostólico de Beirute para os católicos de rito latino. Depois da guerra civil, Beirute ainda está tomada por escombros, com tanques por toda parte. No entanto, ele fica impressionado com a força de recomeçar das pessoas mais pobres, que permaneceram no país sofrendo sem poder partir, e com a fé das pessoas que encontra nos santuários. Dez anos mais tarde, e depois de um longo tempo de trabalho na Bélgica, a sua vida vira uma nova página, quando se torna disponível para ir para o País dos Cedros.

«Na minha viagem em 1993 vi que no Líbano havia um potencial de jovens a serem acompanhados em seu crescimento. Em Beirute, encontrei-me trabalhando em uma paróquia de língua francesa, onde pude imediatamente envolver-me em trabalhos pastorais’. No Líbano assumiu também a função de Mestre de Noviços. E experimenta a alegria de poder retomar os ritmos de vida comunitária, aos quais teve que renunciar durante os anos de missão na Bélgica.

No Líbano testemunhou as tensões entre o país, em particular o Hezbollah-Amal, e Israel (‘Via no Bekaa o drone que sempre sobrevoava o país e, fazendo astronomia, calculei que passava cada minuto e 52 segundos’). Ainda no Líbano, pela primeira vez soube que nos Palácios Vaticanos começavam a avaliar a possibilidade de convidar um franciscano para ir como bispo ao Irã.

Um nome para o Irã 

Em 2019, o Geral dos Franciscanos Conventuais pede ao padre Mathieu para retornar a Roma, à Cúria Geral na Basílica dos Santos XII Apóstolos, como Assistente Geral.

Naqueles anos, depois que diminuiu a presença de religiosos de rito latino no Irã entre 2015 e 2018, permaneceu sobre a mesa a proposta da Santa Sé aos Franciscanos Conventuais de indicar um dos frades a serem enviados ao Irã, até que o Padre Geral dos Conventuais o comunica  de ter indicado o seu nome em resposta ao pedido da Santa Sé. Mas são os primeiros meses da pandemia de Covid 19 e o padre Dominique Joseph é atingido por uma grave infecção pulmonar. Hoje ele diz : «Tinha comigo uma relíquia de São Charbel trazida do Líbano. Disse a mim mesmo : se eu morrer e o Senhor me acolher, não precisarei mais pensar em tudo isso. Então, em qualquer caso, não sou eu quem decide».

Em vez disso, o padre Joseph Dominique se recupera. Ainda em mau estado, dirige-se à Congregação para as Igrejas Orientais, onde os superiores lhe agradecem e lhe dizem que ‘o Santo Padre está muito feliz’ com a sua disponibilidade para ir ao Irã. «Para dizer a verdade - confidencia hoje o arcebispo de Teerã–Isfahan - eu não havia comunicado oficialmente qualquer aceitação da minha parte. Não havia dito sim e não havia dito não. Havia somente aquele pensamento quando imaginei que poderia morrer, e havia colocado todas as decisões nas mãos do Senhor».

Fora dos conformismos

 Dominique Joseph Mathieu é nomeado arcebispo de Teerã-Isfahan dos Latinos em 8 de janeiro de 2023. Em sua nova aventura, ele percebe que atrás de si, a apoiá-o, está a fraternidade dos Franciscanos Conventuais : «Muitas vezes - reconhece o padre Mathieu - quando se fala de Frades Menores Conventuais, dá-se maior importância à ‘pequenez’ e à pobreza. Na realidade, deveríamos também colocar a ênfase na fraternidade. Antes de tudo, somos uma fraternidade.’ Em Teerã, agora, não há nenhum sacerdote que o auxilie no seu trabalho pastoral. E diferentemente das Igrejas católicas de outros ritos, aquela de rito latino não tem nenhum reconhecimento legal nem status jurídico definido. É também por isso que os encontros com funcionários de departamentos governamentais podem por vezes tornar-se cansativos.

Para constituir uma associação legalmente reconhecida, são necessários pelo menos 15 iranianos católicos latinos, e agora os membros da comunidade católica de rito latino presentes no Irã são principalmente estrangeiros, funcionários de embaixadas, mulheres provenientes das Filipinas, Coreia e outros países.

Por isso, hoje, o padre Dominique Joseph faz votos que o cardinalato recebido seja útil sobretudo para abrir portas e intensificar a sua consideração por parte dos aparatos iranianos, aumentando as relações e os contatos também por meio dos canais entre o Irã e a Santa Sé, que sempre permaneceram abertos após a revolução de Khomeini.

Existe uma continuidade específica na relação entre a República Islâmica do Irã e a Santa Sé que resiste a todas as campanhas anti-iranianas e à propaganda desenfreada no Ocidente.

«Ao longo da minha vida - sublinha o arcebispo de Teerã - aprendi a viver em situações de fronteira, a reconhecer a diversidade e a libertar-me dos estereótipos e dos clichês no olhar pessoas e povos. Certamente – continua padre Dominique – a população do Irã é muito acolhedora e percebo que é um país cheio de contrastes, longe das caricaturas que circulam’.

As portas fechadas podem se abrir

No Irã, os católicos de rito latino são realmente um pequeno rebanho. Cerca de 2.000 pessoas, das quais pelo menos 1.300 são provenientes das Filipinas. Pequenas realidades, que abrem questões sobre o sentido e o horizonte da missão, sobre a escolha de manter uma presença e também uma diocese naquela situação. O arcebispo de Teerã-Isfahan não hesita. Ele diz : «Um confrade irmão me contou sobre uma pessoa que antes de se tornar cristã rezou durante mais de 10 anos diante da porta fechada de uma igreja armênia no norte do Irã. Rezar diante de uma porta faz entender a importância de estar ali. Uma porta é uma porta, mesmo que permaneça fechada, e mais cedo ou mais tarde poderá abrir-se para mostrar o amor de Cristo por todos, com os gestos mais do que com as palavras, como sugeria São Francisco’.

No entanto, o trabalho ao qual dedicar tempo e energia está todo contido nas dinâmicas elementares da vida eclesial : as Missas, o catecismo, a celebração dos sacramentos, as obras de caridade. As mesmas dinâmicas que na ordinariedade dos dias eram vividas e partilhadas nos mosteiros e beguinários da Bélgica, entre os quais cresceu o padre Dominique.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-12/primeiro-cardeal-ira-franciscano-dominique-joseph-mathieu.html