Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Bispo auxiliar de Bangassou, RCA
‘Betânia foi para Jesus um lugar de repouso, um oásis onde podia
recarregar as suas baterias humanas e espirituais. A casa de Lázaro e das suas
irmãs, Marta e Maria, tinha sabor a lar, a amizade profunda, a lugar de repouso
para o coração. O que teria sido de Jesus e dos seus discípulos se Marta não se
tivesse dado ao trabalho de os acolher, de lhes dar uma boa refeição e de lhes
proporcionar um lugar de repouso? Onde se teria expandido o coração de Jesus se
Maria não tivesse sabido escutar e acolher os segredos do Mestre? E aquele
amigo Lázaro, que Jesus tanto amava. Marta e Maria, duas faces de uma mesma
realidade, nem sempre fácil de combinar. Marta, a dona de casa que soube
extrair de Jesus palavras de vida eterna : «Eu sou a ressurreição e a vida;
quem crê em mim, ainda que morra, viverá.» Maria, que aos pés do Mestre aprende
os segredos escondidos no seu coração : «Maria escolheu a melhor parte e esta
não lhe será tirada.»
Estas reflexões sobre a vida de Jesus vêm-me à mente enquanto escrevo no
meu diário tudo o que estou a viver com o povo centro-africano da diocese de
Mbaiki, que me foi confiada como bispo. Talvez eu esteja enganado, mas tenho a
sensação de que, desde há algum tempo, nós, na Igreja, estamos a inclinar a
balança para o lado de Maria em detrimento de Marta. O fato de o Papa Francisco
ter ido viver para a Casa de Santa Marta é um símbolo que pode equilibrar a
realidade do discípulo que tem de nadar entre duas águas, a ação e a
contemplação, duas asas da mesma ave. Não se trata de escolher uma em
detrimento da outra, as duas juntas permitem-nos voar para as alturas do Reino.
Ação e contemplação
Este difícil equilíbrio deve existir também na vida religiosa e
missionária. Nos últimos tempos fui confrontado com uma situação que gera um
conflito entre as duas asas da vida do discípulo. Na diocese há 40 religiosas
pertencentes a uma dezena de congregações, entre as quais há apenas cinco
Martas com as quais posso contar incondicionalmente para qualquer missão. As
outras não são necessariamente Marias. Estas cinco Martas de que falo são
mulheres preparadas, ativas, prontas a enfrentar novos desafios, a romper com
os moldes, a misturar-se com os pigmeus Aka, a curar os doentes que ninguém se
atreve a tocar, a enveredar por caminhos até então inexplorados por uma
religiosa, a viver uma liderança feminina na Igreja... Mas o que descubro é que
o fato de agirem como Martas, mulheres do Evangelho ao serviço da diocese, as
coloca em sério conflito com as suas congregações. Várias superioras
provinciais vieram queixar-se : que as irmãs estão sempre fora da comunidade,
que viajam demasiado, que dormem nas aldeias com as pessoas, que abandonam a
comunidade da qual são por vezes superioras, que dão prioridade aos
compromissos diocesanos em detrimento dos congregacionais. A situação está a
fazer sofrer três delas.
Nalguns casos, o conflito é latente com as suas congregações e leva-as a
acentuar a sua identidade e pertença a uma Igreja diocesana, mas, outras vezes,
o conflito cheira-me a ciúme escondido, como se houvesse infidelidade à
congregação quando há grande doação à pastoral diocesana. E digo a mim mesmo :
se o carisma da congregação não está ao serviço da Igreja particular, então
corre-se o risco de «sectarismo». Como é difícil o equilíbrio entre esta Marta
e esta Maria que cada instituição, cada congregação, cada discípulo, traz
dentro de si! Durante séculos, a Igreja idealizou Maria e encerrou as freiras
nos conventos, sem se dar conta de que Marta é indispensável para as coisas de
Jesus.
Sofro quando vejo o conflito das cinco religiosas com as suas
congregações, que as censuram pelo seu afastamento. Procuro não me meter nos
assuntos internos, mas como é difícil para mim quando o que está em causa é um
estilo de missão, um estilo de Igreja. Sofro porque pressinto as ameaças que
pesam sobre algumas delas e que as destinarão a outra comunidade. Uma das
superioras disse-me que tinha feito um ultimato a uma delas. Eu disse-lhe :
«Sei que estás em vantagem, mas também te peço que revejas o teu carisma de
fundação. Tenho a certeza de que a vossa fundadora foi uma mulher que abriu
novos caminhos, que ultrapassou muitas fronteiras eclesiais e sociais. Ah, e
por favor digam às vossas superioras em Roma que o bispo está muito grato pela
vossa preciosa presença na diocese e, especialmente, pela irmã N.» Que
equilíbrio difícil!
Mais tarde, falando com uma das Marias, conhecendo a espada de Dâmocles
que paira sobre o seu destino, pedi-lhe que não rompesse com a sua congregação,
que construísse pontes, que tentasse exercer a asa das Marias que a sua
congregação lhe reclama. Eu não gostaria de a perder.
Ação e contemplação, Marta e Maria. Uma sem a outra não gera a vida de
Deus.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/1294/martas-e-marias/
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