quinta-feira, 20 de junho de 2013

Eu te adoro com afeto, Deus oculto (Capítulo 3 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 A Contemplação Eucarística
 
              Na última linha da 1ª estrofe a chama do fervor se eleva ainda :  Quia te contemplans totum déficit (literalmente = porque ao contemplar-te tudo se rende). Uma característica de certos veneráveis hinos litúrgicos latinos, como o ‘Adoro te devote’, o ‘Veni creator’ e outros, é a extraordinária densidade de significado presente em suas palavras. Cada uma delas está cheia de conteúdo.
 
     Para compreender plenamente o sentido desta frase, como, aliás, de todo o hino, é necessário considerar o ambiente e o contexto em que foi escrito. Como vidos, nosso hino surgiu quando a teologia eucarística passava por grande mudança ocasionada pela reação às teorias de Berengário de Tours. A reflexão cristã concentra-se quase exclusivamente na presença real de Cristo na Eucaristia, de tal modo que, às vezes, exagera na afirmação de uma presença física e quase material (9). Surge na Bélgica a grande onda de fervor eucarístico que, em pouco tempo, contagiará toda a cristandade e culminará com a instituição da festa de Corpus Christi em 1264, pelo Papa Urbano IV. Cresce nos fiéis o respeito pela Eucaristia e, ao mesmo tempo, o sentimento de indignidade para aproximar-se dela, por causa das condições quase impraticáveis exigidas para receber a comunhão (jejum, penitências, confissão, abstinência das relações conjugais). A comunhão dos fiéis passou a ser um fato tão raro que, em 1215 o Concílio Lateranense IV determinou a obrigação de comungar ao menos na Páscoa. Contudo, a Eucaristia continuou atraindo irresistivelmente as almas e assim, pouco a pouco, a falta do ato de ‘comer’ a comunhão levou ao desenvolvimento do ato de ‘ver’ da contemplação. No Oriente, pelas mesmas razões, os leigos não Têm também o contato visual : o rito central da Missa é realizado atrás de uma cortina, posteriormente transformado no mudo do iconóstase.
 
            Por conseguinte, a elevação da hóstia e do cálice no momento da consagração – até esta época era desconhecida (o primeiro testemunho escrito de sua instituição é de 1196) – transforma-se para os fiéis na ocasião mais importante da Missa. É quando irrompem os sentimentos de devoção e eles esperam receber graças. Os sinos repicam nesse instante para advertir os ausentes, e algumas pessoas correm de uma Missa para outra, a fim de assistir a várias ‘elevações’. Muitos hinos eucarísticos, entre eles o ‘Ave verum’, foram compostos para acompanhar este ato; são hinos para a ‘elevação’. Entre eles encontra-se também nosso ‘Adoro te devote’. Do começo ao fim sua linguagem é a de ver, contemplar : te contemplo; não vejo; agora vejo; feliz contemplando.
            Hoje, já não agimos assim em relação à Eucaristia; há tempos que a comunhão se insere na participação inteira na Missa; as conquistas da teologia (movimento bíblico, litúrgico, ecumênico), que confluíram no Concílio Vaticano II e na reforma litúrgica, restituíram junto à fé na presença real o devido valor a outros aspectos da Eucaristia : o banquete, o sacrifício, o memorial, a dimensão comunitária e eclesial.
            Poder-se-ia pensar que neste novo clima já não há lugar para o ‘Adoro te devote’ e as práticas eucarísticas nascidas naquele período da Idade Média. Ao contrário, é precisamente agora que se tornam mais úteis e necessárias, para não perdermos, por causa das conquistas de hoje, as de ontem. Não podemos reduzir a Eucaristia somente à contemplação da presença real da Hóstia consagrada, mas seria igualmente uma grande perda renunciar a ela. O Papa João Paulo II não faz senão recomendá-la desde sua primeira carta, ‘O ministério e o culto da Santíssima Eucaristia’, da Quinta-Feira Santa de 1980 :
            A adoração a Cristo neste sacramento de amor deve encontrar sua expressão em diversas formas de devoção eucarística : oração pessoal ante o Santíssimo, oras de adoração, exposições breves, prolongadas, anuais (...) Jesus nos espera neste Sacramento de Amor. Não economizemos tempo para ir encontrá-lo na adoração e na contemplação cheia de fé’.
            Nossos irmãos ortodoxos não compartilham este aspecto da piedade católica; alguns deles assinalam amavelmente  que o pão é para ser comido, não para ser visto. Outros, também entre os católicos, observam que essa prática se desenvolver em um tempo de grave ofuscamento da vida litúrgica e sacramental.
            A favor da riqueza da contemplação eucarística não encontramos especiais explicações teológicas e teóricas, mas sim o imponente testemunho dos fatos, literalmente ‘uma nuvem de testemunhas’. Bastante recente é o de Carlos de Foucauld, que fez da adoração da Eucaristia um dos pontos fortes de sua espiritualidade e da de seus seguidores. Inumeráveis almas alcançaram a santidade praticando a adoração eucarística e já foi demonstrada sua contribuição decisiva para a experiência mística (10). A Eucaristia, dentro e fora da Missa, foi para a Igreja católica o que na família era até há pouco o fogo doméstico durante o inverno : o lugar em torno do qual a família reencontrava sua própria unidade e intimidade, o centro ideal de tudo.
            Isto não quer dizer que não existam igualmente razões teológicas na base da contemplação eucarística. A primeira decorre da palavra de Cristo : ‘Fazei isto em memória de mim’. Na noção de memorial há um aspecto objetivo e sacramental que consiste em repetir o rito realizado por Cristo recordando e tornando presente seu sacrifício. Todavia, existe também um aspecto subjetivo e existencial, cultivar a lembrança de Cristo, ‘ter constanttetemente na memória pensamentos que se referem a Cristo e a seu amor’ (11). Esta ‘doce memória de Jesus’ (‘Jesu dulcis memoria’) não está limitada ao tempo que se passa ante o sacrário; pode ser alimentada com outros meios, como a contemplação dos ícones; é certo porém, que a adoração ao Santíssimo é um meio privilegiado para fazê-lo.
            Os dois aspectos do memorial – celebração e contemplação da eucaristia – não se excluem reciprocamente, mas se completam. A contemplação, de fato, é o meio com o qual nós ‘recebemos’, em sentido forte, os mistérios, com o qual os interiorizamos e nos abrimos a sua ação; é o equivalente dos mistérios no plano existencial e subjetivo; é um modo para permitir à graça, recebida nos sacramentos, plasmar nosso universo interior, isto é, os pensamentos, os afetos, a vontade, a memória.
            Há uma grande afinidade entre Eucaristia e Encarnação. Na Encarnação – diz Santo Agostinho – ‘Maria concebeu o Verbo antes com a mente que com o corpo’ (Prius concepit mente quam corpore). E mais, acrescenta, de nada lhe valeria levar Cristo em seu ventre se não o tivesse levado com amor também em seu coração (12). Igualmente o cristão deve acolher a Cristo em sua mente antes de acolhê-lo e tê-lo em seu corpo. E acolher a Cristo na mente significa, concretamente, pensar nele, ter o olhar posto nele, fazer memória dele, contemplando o sinal que ele mesmo escolheu para permanecer entre nós. 
 

Esqueço de Tudo 
            Ao te contemplar’ (Te contemplans), diz nosso hino. Que encerra o pronome ‘te’? Decerto refere-se a Cristo realmente presente na hóstia, não uma presença estática e inerte; indica todo o mistério de Cristo, a pessoa e a obra; é importante escutar silenciosamente o Evangelho ou um versículo na presença do próprio autor do Evangelho, que traz à palavra uma força imediata particular.

     Porém, não estamos ainda no cume da contemplação. Os grandes mestres espirituais definiram a contemplação como ‘Um olhar livre, penetrante e imóvel’ (Hugo de São Vitor), ou : ‘Um olhar afetivo em Deus’ ( São Boaventura). Estar em contemplação eucarística significa, portanto, concretamente, estabelecer um contato de coração a coração com Jesus presente realmente na Hóstia. A contemplação tende sempre à pessoa, ao todo e não às partes. Contemplação eucarística é olhar para quem me olha. 
     Esta fase da contemplação é a descrita pelo autor do ‘Adoro te devote’ quando afirma : quia te contemplans totum déficit (literalmente = porque ao contemplar-te tudo se rende). São palavras nascidas certamente da experiência. ‘Tudo se rende’, que ‘tudo’? Não só o mundo exterior, as pessoas, as coisas, mas também o mundo interior dos pensamentos, das imagens, das preocupações. ‘Esqueço tudo, exceto Deus’, escrevia Pascal, referindo-se a uma experiência semelhante. E Francisco de Assis advertia seus irmãos : ‘Seria grande miséria e terrível mal se, tendo a Ele assim presente, se ocuparem de qualquer outra coisa existente em todo o universo!(13).
            Pela mesma época em que se compunha nosso hino, ou seja, no final do século XIII, Roger Bacon, um grande enamorado da Eucaristia, escrevia estas palavras que parecem um comentário à primeira estrofe do ‘Adoro te devote’ é uma confirmação da experiência que dela se transluz : ‘Se a majestade divina se tivesse manifestado sensivelmente, não poderíamos suportá-la e nos teríamos rendido (deficeremus!) de todo pela reverência, a devoção e o assombro... A experiência o demonstra. Os que se exercitam na fé e no amor deste sacramento não conseguem suportar a devoção que nasce de uma pura fé, sem desfazer-se em lágrimas e sem que sua alma, saindo de si mesma, se espraie pela doçura da devoção, até a ponto de não saber já onde se encontra, nem por quê(14).
            A contemplação eucarística é tudo menos indulgência ao quietismo. Já foi observado como o homem reflete em si, às vezes também fisicamente, o que contempla. Não se fica por muito tempo exposto ao sol sem que se note na face. Permanecendo prolongadamente e com fé, não necessariamente com fervor sensível, ante o Santíssimo, assimilamos os pensamentos e os sentimentos de Cristo, por via não discursiva, mas intuitiva; quase ‘ex opere operato’.
            É o que se verifica no processo de fotossíntese das plantas. Na primavera brotam as folhas verdes; estas absorvem da atmosfera certos elementos que, sob a ação da luz solar, ‘se fixam’, sendo transformados em alimento da planta. Precisamos ser como estas folhas verdes! Elas simbolizam as almas eucarísticas que, contemplando Cristo, ‘o sol de justiça’, ‘fixam’ o alimento – o próprio Espírito Santo – em benefício de toda a grande árvore, ou seja, a Igreja. Em outras palavras é o que diz o apóstolo Paulo : ‘Todos nós, porém, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor, e, segundo esta imagem, somos transformados com uma glória cada vez maior, pelo Espírito do Senhor’ (2 Cor 3,18).
            Se agora, após termos vislumbrado esses raios de luz que o autor do hino nos fez entrever, voltarmos com o pensamento à nossa realidade e ao nosso pobre modo de estar ante a Eucaristia, e nos sentirmos abatidos e desanimados, isto seria completamente errado. É já um alento e um consolo saber que estas experiências são possíveis; que o que nós mesmos talvez tenhamos experimentado nos momentos de maior fervor de nossa vida e depois perdido poderá ser reacendido (...).
            A única coisa que o Espírito Santo requer de nós é que lhe demos nosso tempo, ainda que no início possa parecer tempo perdido. Nunca esquecerei a lição que um dia recebi a esse respeito. Eu dizia a Deus : ‘Senhor, dá-me o fervor e eu te darei todo o tempo que queiras para a oração’. Em meu coração, encontrei a resposta : ‘Raniero, dá-me teu tempo e eu te darei todo o fervor que queres na oração’. Esta recordação poderá ser útil a alguém como a mim.

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(9) A primeira formula de fé que se seguiu a Berengário sustentava que, na comunhão, o corpo e o sangue de Cristo estavam presentes no altar ‘sensivelmente e eram em verdade tocados e partidos pelas mãos do sacerdote e mastigados pelos dentes dos fiéis’ (Denzinger – Schnmetzer, Enchiridion symbolorum, 690). São Tomás de Aquino corrige esta afirmação, dizendo que o corpo de Cristo ‘não é partido, nem quebrado, nem dividido por quem o recebe’ (cf. S. Th. III, q. LXXVII, a. 7). 

(10) Cf. E. Longpré, Eucharistie et expérience mystique, in Dic. Spir. IV, coll. 1586-1621.

(11) N. Cabasilas, Vita in Cristo, VI, 4 (PG 150, 653). 

(12) Cf. Agostinho, Sulla santa verginità, 3 (PL40, 398). 

(13) S. Francisco, Lettera a tutti I frati, 2 (FF 220). 

(14) Roger Bacon, De sacramento altaris, in Moralis Philosophia, ed. E. Massa, Zurigo 1953, pp. 231 s.

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