quinta-feira, 6 de junho de 2013

Eu te adoro com afeto, Deus oculto (Capítulo 2 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


            Uma Presença Verdadeiramente Escondida
            Procurou-se estabelecer o texto crítico deste hino a partir dos poucos manuscritos existentes anteriores à imprensa. As variações com respeito ao texto que conhecemos não são muitas. A principal refere-se precisamente aos dois primeiros versos da 1ª estrofe que, segundo Wilmart, assim dizia : Adoro devote latens veritas / Te qui sub his formis vere latitas, onde ‘veritas’ se referia à pessoa de Cristo e ‘formis’ seria o equivalente a ‘figuris’ no texto atual.
            Mas deixando de lado essa leitura pouco segura (2), um outro motivo nos leva ao texto tradicional. Este, como outros veneráveis hinos litúrgicos latinos do passado, pertence à coletividade dos fiéis que o cantaram durante séculos, dele se apropriaram e quase recriaram, não menos que o autor que o compôs, frequentemente anônimo. O texto tradicional não tem menos valor que o texto crítico e, de fato, é através dele que o hino continua sendo conhecido e cantado em toda a Igreja.
            Em cada estrofe do ‘Adoro te devote há uma afirmação teológica e uma resposta orante da alma ante o mistério. Na primeira estrofe a verdade teológica evocada se refere ao modo de presença de Cristo nas espécies eucarísticas. Na segunda linha, a expressão latina vere latitas tem um duplo sentido, quer dizer : estás escondido, mas estás verdadeiramente (se damos mais ênfase a vere), e significa também : estás verdadeiramente, mas escondido (quando realçamos latitas, o caráter sacramental desta presença).
            Para compreender este modo de falar devemos considerar a ‘grande mudança’ ocorrida em relação à Eucaristia na passagem da teologia simbólica dos Padres à dialética da teologia escolástica. Sua origem encontra-se no século IX, com Pascásio Radberto (+860 abade de Corbie) e Ratramno (+868 monge de Corbie) : o primeiro, defendia a presença física e material de Cristo no pão e no vinho, Ratramno era favorável a uma presença verdadeira e real, mas sacramental, não física; algum tempo depois Berengário de Tours (1005?-1088), acentou a tal ponto o caráter simbólico e sacramental de Cristo na Eucaristia que chegou a comprometer a fé na realidade objetiva de tal presença.
            Enquanto antes falava-se que na Eucaristia Cristo está presente sacramentalmente, ou, de acordo com os orientais, misteriosamente, agora, com uma linguagem emprestada de Aristóteles, diz-se que está presente substancialmente, ou seja, segundo a substância. A palavra figura já não indica o mesmo que sacramentum, isto é, o conjunto dos sinais com que se realiza a presença de Cristo, mas simplesmente as ‘espécies ou aparências’ do pão e do vinho; na linguagem técnica, os acidentes (3).
            Nosso hino utiliza claramente esta linguagem embora evitando o recurso aos novos termos filosóficos, pouco apropriados para um texto poético. No verso quae sub his figuris vere latitas (verdadeiramente escondida sob estas aparências), figuris (= aparências) indica as ESPÉCIES do pão e do vinho, enquanto ocultam o que contêm e contêm o que ocultam (4). 

 
            Adoro-te com Devoção
            Como vimos, cada estrofe do hino traz uma afirmação teológica que suscita no orante uma resposta, apropriando-se da verdade evocada. À afirmação da presença real de Cristo, se bem que escondida no pão e no vinho, o orante responde ‘derretendo-se’, literalmente, em devota adoração, unindo-se no mesmo movimento, a um número incontável de almas que durante mais de meio milênio oraram com estas palavras.
            ADORO : esta palavra inicial do hino, já é por si mesma uma profissão de fé na identidade entre o corpo eucarístico e o corpo histórico de Cristo, ‘ nascido da Virgem Maria, que verdadeiramente padeceu e foi imolado na cruz pelo homem’. É somente graças a esta real identidade e à união em Cristo entre humanidade e divindade (união hipostática) que podemos ficar em adoração ante a hóstia consagrada sem cometer um ato de idolatria. Santo Agostinho já dizia : ‘Nesta carne [o Senhor] caminhou na terra e esta mesma carne nos deu a comer para a salvação; e ninguém come esta carne sem tê-la adorado antes (...) Nós não pecamos adorando-a, mas pecamos se não a adorarmos(5).
            Em que consiste exatamente e como se manifesta a adoração? A adoração pode ser preparada por uma prolongada meditação, mas culmina em uma intuição e, como toda intuição, não dura muito. É como um raio de luz dentro da noite. Porém é uma luz especial : não tanto a luz da verdade, quanto a luz da realidade. É a percepção da grandeza, da majestade, da beleza e da bondade de Deus e de sua presença, o que deixa a alma sem respiração. É uma espécie de naufrágio no oceano sem margens e sem fundo da majestade de Deus. Uma expressão de adoração, mais eficaz que qualquer palavra, é o silêncio. Adorar, segundo a estupenda expressão de São Gregório Nazianzeno, significa elevar a Deus um ‘hino de silêncio’.
            Houve um tempo em que para entrar em um clima de adoração ante o Santíssimo, bastava-me repetir as primeiras palavras de um hino de Gerhard Tersteegen, místico alemão do século XVII, que ainda hoje é cantado nas igrejas protestantes e católicas da Alemanha : ‘Deus está aqui presente; venha, adoremos! / Com santa reverência, entremos em sua presença. / Deus está aqui em meio : tudo cala em nós / E o íntimo do peito se prostra em sua presença(6).
            Talvez porque as palavras de uma língua estrangeira estejam menos vazias pelo uso e a banalização, o certo é que provocavam em mim um estremecimento interior : ‘Gott ist gegenwärtig!’ Deus está presente, Deus está aqui! As palavras se desvaneciam rapidamente, ficando somente a verdade que haviam transmitido, o ‘vivo sentimento da presença de Deus’.
            Em nosso hino, o sentido da adoração é reforçado pelo vocábulo DEVOÇÃO : ‘adoro te devote’ (adoro-te com devoção, com afeto). Na antiguidade pagã e cristã, ‘devoção’ indicava a adesão a uma pessoa e se manifestava por um serviço fiel que, para os cristãos, incluía toda forma de serviço divino, sobretudo o serviço litúrgico da recitação dos salmos e das orações.
            Nos grandes autores espirituais da Idade Média, ‘devoção’ adquiriu um novo sentido, a palavra se interioriza, passa a significar não mais as práticas exteriores, mas as disposições profundas do coração. Para São Bernardo, indica ‘o fervor interior da alma inflamada pelo fogo da caridade(7). Com São Boaventura e sua escola, a pessoa de Cristo ocupa o centro da ‘devoção’, entendida como o amor e comovida gratidão suscitada pela recordação de benefícios recebidos. Dois artigos inteiros da ‘Suma’ são dedicados pelo Doutor Angélico à devoção, considerada o primeiro e mais importante ato da virtude da religião (8). Para ele, a ‘devoção’ consiste na prontidão e disponibilidade da vontade para oferecer-se a si mesma a Deus e se manifesta por um serviço sem reservas e pleno de fervor.
            Lamentavelmente este rico e profundo conteúdo se perdeu em grande parte quando algum tempo depois, ao significado de ‘devoção’, se acrescentou o de ‘devoções’, ou seja, as práticas exteriores e particulares, dirigidas não só a Deus, mas frequentemente a santos ou a lugares determinados, oratórios e imagens. E assim, na prática, voltou-se ao antigo significado do termo.
            Em nosso hino o advérbio devote (literalmente = com devoção, devotamente) conserva intacta toda a força teológica e espiritual que o próprio autor (Tomás de Aquino) quis dar ao termo. A melhor explicação do que se entende aqui por devoção (devotio) está nas palavras seguintes da segunda parte da estrofe : ‘A ti se sujeita-se o meu coração por inteiro’ (Tibi se cor meum totum subiicit). Disponibilidade total e amorosa para fazer a vontade de Deus.

-----------------------------------------
(2) A expressão ‘latens veritas ’encontra-se em Isidoro de Sevilha, Sent. III, col. 688 (PL), mas não se refere a Cristo. A favor de ‘latens Deitas’ está o paralelismo com ‘latens humanitas’ da terceira estrofe e também a possível alusão a Is 45,15 : ‘Vere tu es Deus absconditus’ (Na verdade tu és um Deus oculto). 

(3) Cf. de Lubac, op. cit., p.287.  

(4) Cf. São Tomás de Aquino, Comentário ao Evangelho de João, VI : ‘O maná só prefigurava, enquanto que este pão contém aquilo que representa’ (contenet quod figurat).  

(5) Santo Agostinho, in Os. 98,9 (PL 37,1264).  

(6) G. Tersteengen, Geistliches Blumengartlein 11, Stuttgart 1969, p.340s. : ‘Gott ist gegenwartig; lasset uns anbeten, / Und in hrfucht vor ihn treten! / got ist in der Mitte; alles in uns schwiege / Und sich innigst vor ihm beuge! 

(7) Cf. J. Charillon, art. Devotio, in Dict. Spir. 3, col. 715. 

(8) São Tomás, S. Th. II. IIae, q. 82 a. 1-2; cf. J.W. Curran, art. Dévotion, Fondement théologique, in Dict. Spir. III, coll. 716 ss.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário