Uma
Presença Verdadeiramente Escondida
Procurou-se estabelecer o texto crítico deste hino a
partir dos poucos manuscritos existentes anteriores à imprensa. As variações
com respeito ao texto que conhecemos não são muitas. A principal refere-se
precisamente aos dois primeiros versos da 1ª estrofe que, segundo Wilmart,
assim dizia : Adoro devote latens veritas
/ Te qui sub his formis vere latitas, onde ‘veritas’ se referia à pessoa de Cristo e ‘formis’ seria o equivalente a ‘figuris’
no texto atual.
Mas deixando de lado essa leitura pouco segura (2), um outro motivo nos leva ao texto
tradicional. Este, como outros veneráveis hinos litúrgicos latinos do passado,
pertence à coletividade dos fiéis que o cantaram durante séculos, dele se
apropriaram e quase recriaram, não menos que o autor que o compôs,
frequentemente anônimo. O texto tradicional não tem menos valor que o texto
crítico e, de fato, é através dele que o hino continua sendo conhecido e
cantado em toda a Igreja.
Em cada estrofe do ‘Adoro
te devote’ há uma afirmação
teológica e uma resposta orante da alma ante o mistério. Na primeira estrofe a
verdade teológica evocada se refere ao modo de presença de Cristo nas espécies
eucarísticas. Na segunda linha, a expressão latina vere latitas tem um duplo sentido, quer dizer : estás escondido, mas estás
verdadeiramente (se damos mais ênfase a vere), e significa também : estás
verdadeiramente, mas escondido (quando realçamos latitas, o caráter sacramental desta presença).
Para compreender este modo de falar devemos considerar a
‘grande mudança’ ocorrida em relação
à Eucaristia na passagem da teologia simbólica dos Padres à dialética da
teologia escolástica. Sua origem encontra-se no século IX, com Pascásio
Radberto (+860 abade de Corbie) e Ratramno (+868 monge de Corbie) : o primeiro,
defendia a presença física e material de Cristo no pão e no vinho, Ratramno era
favorável a uma presença verdadeira e real, mas sacramental, não física; algum
tempo depois Berengário de Tours (1005?-1088), acentou a tal ponto o caráter
simbólico e sacramental de Cristo na Eucaristia que chegou a comprometer a fé
na realidade objetiva de tal presença.
Enquanto antes falava-se que na Eucaristia Cristo está
presente sacramentalmente, ou, de acordo com os orientais, misteriosamente,
agora, com uma linguagem emprestada de Aristóteles, diz-se que está presente
substancialmente, ou seja, segundo a substância. A palavra figura já não indica o mesmo que sacramentum, isto é, o conjunto dos sinais com que se realiza a
presença de Cristo, mas simplesmente as ‘espécies
ou aparências’ do pão e do vinho; na linguagem técnica, os acidentes (3).
Nosso hino utiliza claramente esta linguagem embora
evitando o recurso aos novos termos filosóficos, pouco apropriados para um
texto poético. No verso quae sub his
figuris vere latitas (verdadeiramente escondida sob estas aparências), figuris (= aparências) indica as ESPÉCIES do pão e do vinho, enquanto
ocultam o que contêm e contêm o que ocultam (4).
Adoro-te com
Devoção
Como vimos, cada estrofe do hino traz uma afirmação
teológica que suscita no orante uma resposta, apropriando-se da verdade
evocada. À afirmação da presença real de Cristo, se bem que escondida no pão e
no vinho, o orante responde ‘derretendo-se’,
literalmente, em devota adoração, unindo-se no mesmo movimento, a um número
incontável de almas que durante mais de meio milênio oraram com estas palavras.
ADORO : esta
palavra inicial do hino, já é por si mesma uma profissão de fé na identidade
entre o corpo eucarístico e o corpo histórico de Cristo, ‘ nascido da Virgem Maria, que verdadeiramente padeceu e foi imolado na
cruz pelo homem’. É somente graças a esta real identidade e à união em
Cristo entre humanidade e divindade (união hipostática) que podemos ficar em
adoração ante a hóstia consagrada sem cometer um ato de idolatria. Santo
Agostinho já dizia : ‘Nesta carne [o
Senhor] caminhou na terra e esta mesma carne nos deu a comer para a salvação; e
ninguém come esta carne sem tê-la adorado antes (...) Nós não pecamos
adorando-a, mas pecamos se não a adorarmos’ (5).
Em que consiste exatamente e como se manifesta a
adoração? A adoração pode ser preparada por uma prolongada meditação, mas
culmina em uma intuição e, como toda intuição, não dura muito. É como um raio
de luz dentro da noite. Porém é uma luz especial : não tanto a luz da verdade,
quanto a luz da realidade. É a percepção da grandeza, da majestade, da beleza e
da bondade de Deus e de sua presença, o que deixa a alma sem respiração. É uma
espécie de naufrágio no oceano sem margens e sem fundo da majestade de Deus.
Uma expressão de adoração, mais eficaz que qualquer palavra, é o silêncio.
Adorar, segundo a estupenda expressão de São Gregório Nazianzeno, significa
elevar a Deus um ‘hino de silêncio’.
Houve um tempo em que para entrar em um clima de adoração
ante o Santíssimo, bastava-me repetir as primeiras palavras de um hino de
Gerhard Tersteegen, místico alemão do século XVII, que ainda hoje é cantado nas
igrejas protestantes e católicas da Alemanha : ‘Deus está aqui presente; venha, adoremos! / Com santa reverência,
entremos em sua presença. / Deus está aqui em meio : tudo cala em nós / E o
íntimo do peito se prostra em sua presença’ (6).
Talvez porque as palavras de uma língua estrangeira
estejam menos vazias pelo uso e a banalização, o certo é que provocavam em mim
um estremecimento interior : ‘Gott ist
gegenwärtig!’ Deus está presente, Deus está aqui! As palavras se
desvaneciam rapidamente, ficando somente a verdade que haviam transmitido, o ‘vivo sentimento da presença de Deus’.
Em nosso hino, o sentido da adoração é reforçado pelo
vocábulo DEVOÇÃO : ‘adoro te devote’ (adoro-te com devoção,
com afeto). Na antiguidade pagã e cristã, ‘devoção’
indicava a adesão a uma pessoa e se manifestava por um serviço fiel que, para
os cristãos, incluía toda forma de serviço divino, sobretudo o serviço
litúrgico da recitação dos salmos e das orações.
Nos grandes autores espirituais da Idade Média, ‘devoção’ adquiriu um novo sentido, a
palavra se interioriza, passa a significar não mais as práticas exteriores, mas
as disposições profundas do coração. Para São Bernardo, indica ‘o fervor interior da alma inflamada pelo
fogo da caridade’ (7). Com São
Boaventura e sua escola, a pessoa de Cristo ocupa o centro da ‘devoção’, entendida como o amor e
comovida gratidão suscitada pela recordação de benefícios recebidos. Dois
artigos inteiros da ‘Suma’ são
dedicados pelo Doutor Angélico à devoção,
considerada o primeiro e mais importante ato da virtude da religião (8). Para ele, a ‘devoção’ consiste na prontidão e disponibilidade da vontade para
oferecer-se a si mesma a Deus e se manifesta por um serviço sem reservas e pleno
de fervor.
Lamentavelmente este rico e profundo conteúdo se perdeu
em grande parte quando algum tempo depois, ao significado de ‘devoção’, se acrescentou o de ‘devoções’, ou seja, as práticas
exteriores e particulares, dirigidas não só a Deus, mas frequentemente a santos
ou a lugares determinados, oratórios e imagens. E assim, na prática, voltou-se
ao antigo significado do termo.
Em nosso hino o advérbio devote (literalmente = com devoção, devotamente) conserva intacta
toda a força teológica e espiritual que o próprio autor (Tomás de Aquino) quis
dar ao termo. A melhor explicação do que se entende aqui por devoção (devotio) está nas palavras seguintes da
segunda parte da estrofe : ‘A ti se
sujeita-se o meu coração por inteiro’ (Tibi
se cor meum totum subiicit). Disponibilidade total e amorosa para fazer a
vontade de Deus.
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(2) A expressão
‘latens veritas ’encontra-se em
Isidoro de Sevilha, Sent. III, col. 688 (PL), mas não se refere a Cristo. A
favor de ‘latens Deitas’ está o
paralelismo com ‘latens humanitas’ da
terceira estrofe e também a possível alusão a Is 45,15 : ‘Vere tu es Deus absconditus’ (Na verdade tu és um Deus oculto).
(3) Cf. de Lubac, op. cit., p.287.
(4) Cf. São Tomás de Aquino, Comentário ao
Evangelho de João, VI : ‘O maná só
prefigurava, enquanto que este pão contém aquilo que representa’ (contenet quod figurat).
(5) Santo Agostinho, in Os. 98,9 (PL 37,1264).
(6) G. Tersteengen, Geistliches Blumengartlein
11, Stuttgart 1969, p.340s. : ‘Gott ist
gegenwartig; lasset uns anbeten, / Und in hrfucht vor ihn treten! / got ist in
der Mitte; alles in uns schwiege / Und sich innigst vor ihm beuge!’
(7) Cf. J. Charillon, art. Devotio, in Dict. Spir. 3, col. 715.
(8) São Tomás, S. Th. II. IIae, q. 82 a. 1-2; cf. J.W. Curran, art. Dévotion, Fondement théologique, in Dict. Spir. III, coll. 716 ss.
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