* Artigo
de Dom Mateus de Salles Penteado, OSB
Introdução
Foi-me pedido que apresentasse um breve apanhado
histórico do trabalho na tradição monástica beneditina. O adjetivo ‘beneditina’ é aqui importante porque
impõe limites bem definidos de tempo de espaço. De tempo, porque deixo de lado
a tradição monástica anterior a São Bento, e de espaço, porque não abordo o monaquismo
fora da órbita da Regra Beneditina. Nada, portanto, referente à gênese do
problema do trabalho e de sua discussão nas origens do monaquismo, e nada
também do monaquismo oriental, bem como do monaquismo ocidental não-beneditino
(como é o caso das monjas carmelitas e de outras congregações) e dos movimentos
monásticos recentes, sempre mais numerosos, situados fora do mundo beneditino
(como Taizé, Bose, Fraternidade de Jerusalém, Fraternidade Monástica de Belém,
Irmãozinhos e Irmãzinhas de Jesus, etc.).
Procurei não fazer uma mera crônica, o que seria tão
entediante quanto pouco útil, e muito menos ater-me somente ao trabalho manual.
Entendi por trabalho qualquer gênero de atividade – manual, intelectual,
artística ou apostólica.
Normalmente se diz que a Regra Beneditina é ‘pluralista’ e por isso suscitou através
dos séculos, e suscita ainda hoje, as mais variadas formas de trabalho nos
mosteiros. Propus-me a questionar esse axioma, verificando até que ponto de
fato foi e é algo aceito pacificamente e até que ponto representa as águas
calmas da superfície que escondem o mar revolto das profundezas.
I – Séculos VII-VIII
É importantíssimo o período compreendido entre São
Bento e a reforma de Bento de Aniane, isto é, os séculos VII e VIII, quando a
Regra não adquirira ainda os contornos de uma ‘Torah intocável’ (S. Hilpisch), tomada como norma absoluta e
exclusiva. A Regra, então, estava harmoniosamente inserida na tradição,
enquanto que mais tarde tornou-se a norma interpretativa da tradição. É a época
da regula mixta e do pluralismo de
observâncias, pluralismo este assumido muito mais sob o aspecto de comunhão do
que de alternativa. Há o mosteiro-solidão, o mosteiro-escola, o mosteiro-missionário,
o mosteiro-basílica, cada um com suas atividades específicas, sem a discussão
se um é ‘mais monástico’ do que os
outros. Tal maneira de conceber o monaquismo e a observância da Regra
obviamente não deixou de influir também no trabalho. Assim, já São Gregório
Magno demonstra grande liberdade em relação à Regra Beneditina. Ao mesmo tempo
em que considera a contemplação o único fim da vida monástica, encarrega os
monges de diversos serviços eclesiásticos e atividades missionárias. Ao fazer
isso, não estava interpretando a ‘Regra’
e sim a tradição, que incluía também a Regra. Num tempo em que o fim de Roma
era considerado como o fim do mundo, o monaquismo de Gregório surgia como uma
esperança, tendo os monges o trabalho de lutar contra o paganismo, evangelizar
e formar uma nova polis. Os monges
romanos foram para a Inglaterra com esse objetivo e, por isso, o
mosteiro-escola está na raiz do monaquismo inglês. É significativo que para a
obra de conversão dos anglos São Gregório não tenha recorrido aos monges que
fugiram de Monte Cassino, certamente mais ligados à Regra de São Bento e de tradição
mais solitária, e sim aos monges formados no ambiente monástico de Santo André.
Não se pode falar aqui de trabalho manual, já que, enraizados no já tradicional
aristocratismo do cenobitismo ocidental, os monges eram geralmente sustentados
pelos fiéis. O trabalho dos monges era acima de tudo evangelizador e formador
de uma cultura religiosa, apesar de certa tensão causada pela tentativa de conjugar
o apostolado com a solidão. Expoente típico desse ideal monástico cultural é
São Beda, o Venerável, enquanto que o aspecto apostólico e missionário é bem
representado por São Bonifácio. Para um e outro não havia contradição entre
suas atividades e o ideal monástico. São Beda inseria seu estudo e ensinamento
num quadro de vida regular e litúrgica, ao passo que o monge-missionário São
Bonifácio, originário de um mosteiro-escola, fundou o mosteiro-solidão de
Fulda, onde os monges deviam levar vida de silêncio e contemplação.
Quanto às monjas, a clausura sempre lhes limitou o
campo de trabalho, embora não fosse ainda absoluta nessa época. Outro limite
onipresente ao longo da história é o da própria condição submissa da mulher na
sociedade. O trabalho manual, entre as monjas, ao contrário dos homens, era
praticado por todas, compreendendo a manutenção da casa, cozinha, padaria,
alfaiataria, etc. Geralmente os serviços eram realizados em turnos semanais, se
não exigiam especial competência. Outros serviços como costura, bordados e
tecelagem eram feitos em sala comum, acompanhados com o canto de Salmos.
Frequentemente as monjas não trabalhavam somente para suprir as próprias
necessidades, mas também para os mosteiros masculinos e para as igrejas. Além
disso, não descuidavam da ajuda aos pobres e doentes. Muitas abadias dirigiram
hospitais. Outras mantiveram pequenas escolas para crianças de ambos os sexos.
II – A reforma de São Bento de Aniane
No início do século IX a situação do monaquismo ocidental
era de confusão e relaxamento, quando muitos mosteiros tinham sido entregues a
abades comendatários (1). Ao mesmo tempo, Carlos Magno tentava unificar
seu império, incluindo nesse projeto a unificação dos mosteiros, vendo na Regra
de São Bento um bom instrumento para realizar tal empresa. Para tanto, o
imperador encontrou em São Bento de Aniane um ótimo colaborador. Desse modo,
diante da inegável necessidade de reforma dos mosteiros, aplicou-se um remédio
por demais simplista : impor a Regra Beneditina em toda parte, com exclusão das
demais.
Podemos com muita propriedade chamar São Bento de
Aniane de ‘o primeiro beneditino’ :
com ele termina o tempo da diversidade de observâncias; a Regra de São Bento
passa a ser absoluta e sacralizada. Basta lembrar que datam dessa época os
primeiros comentários da Regra, enquanto que até então somente a Bíblia era
objeto de estudo. A Regra continua sendo lida à luz da tradição monástica, mas
o critério agora não é mais a pluralismo e sim a própria Regra. A legislação de
Aix-la-Chapelle (817) estabeleceu a distinção entre monges e cônegos. Todos os
mosteiros deviam fazer a escolha por um dos estados de vida e somente os que
optassem pela Regra de São Bento poderiam continuar a ser considerados monges,
estabelecendo-se até mesmo inspetores imperiais para controlar a observância e
a interpretação da Regra. Em outras palavras, excluiu-se do mundo monástico ocidental
tudo o que não fosse atinente à Regra de São Bento. Foi o fim do pluralismo
mais genuíno e a própria Regra passou a ter somente uma única interpretação considerada
‘autêntica’. Tudo isso foi decisivo
para o futuro do monaquismo ocidental e, consequentemente, para o trabalho dos
monges. Nessa visão redutiva, o trabalho cresceu em importância para a
auto-compreensão do monaquismo, na consideração de seu próprio significado na
Igreja, mas isto muito mais por exclusão, isto é, trabalhos que os monges não poderiam fazer se quisessem
continuar a ser monges. Mais do que no passado, o trabalho passou a ser
critério de avaliação do ser-monge. O que o monge faz, ou melhor ainda, o que ele não
faz é agora fundamental.
Bento de Aniane tinha uma idéia bem determinada do
que deveria ser um mosteiro beneditino. Para ele, o beneditino é o monge consagrado
à oração e ao trabalho, vivendo na completa separação do mundo. Por isso,
recusou outros tipos de mosteiro que exigiam contato com o mundo, como o
mosteiro-basílica (quase sempre um mosteiro de peregrinação) e o
mosteiro-escola (desejava a instrução somente para os oblatos e não mais para
as crianças seculares). Mantém a trilogia Ofício-‘lectio’-trabalho manual, mas o equilíbrio começa a ser rompido em
prejuízo tanto da ‘lectio’ como do
trabalho, dando início à tendência de fazer do Ofício divino não apenas a
primeira ocupação do monge, mas a única. Embora pretendendo seguir literalmente
a Regra, Bento de Aniane estabeleceu um Ofício exageradamente alongado, com
Salmos suplementares e visitas a altares. Os documentos sobre a reforma franca
tratam sobretudo do Ofício e suas prescrições. O tempo restante devia ser
dividido entre ‘lectio’ divina e
trabalho manual. O trabalho era dirigido principalmente para a manutenção do
mosteiro, incluindo cozinha, padaria, lavanderia, confecção de calçados e de
vestes, cultura dos campos ao redor e colheita de frutos. Em suma, somente
trabalhos que não impedissem a estrita observância da clausura.
Após a morte de Bento de Aniane (821), os efeitos da
reforma em parte desapareceram, permanecendo, porém, o realce dado à liturgia,
bem como a tendência à centralização, que foi num crescendo até nossos dias.
Muitos mosteiros, entre os quais as célebres abadias de Fulda, Reichenau e
Saint-Gall, pouco conservaram da reforma, subsistindo como centros agrícolas,
culturais e de hospitalidade. Além disso, embora o gosto pelos estudos não
fosse novidade entre os monges, o renascimento carolíngio trouxe-lhe novo impulso.
Todo mosteiro importante deverá possuir seu scriptorium
e seu ateliê de copistas, cujas atividades desenvolveram-se bastante no século
IX. Em Saint-Gall, por exemplo, de seus 120 monges, cerca de 90 trabalhavam no scriptorium. Demonstrando largueza de
espírito, os monges não distinguiam as obras pagãs das cristãs no trabalho de
cópia, preservando-se, assim, muitíssimas obras da Antiguidade clássica e da
Patrística. A própria complexidade administrativa das abadias, sempre
crescente, exigiu também uma ampla diversificação nos estudos. Daí a existência
de monges juristas, geômetras, médicos, engenheiros, músicos, botânicos,
escultores, poetas, historiadores, etc. Assim, um monge como Rabano Mauro
(+856), discípulo do grande Alcuíno, pode escrever uma obra como a De Universo, que compreendia todo o saber
de seu tempo em seus 22 livros. Apesar da tentativa em contrário por parte de
São Bento de Aniane, as escolas monásticas proliferaram e a abadia carolíngia
adquiriu um acentuado caráter de centro cultural e universitário.
Fonte
:
* Dom
Mateus de Salles Penteado, OSB, é monge do Mosteiro da
Ressurreição, Ponta Grossa, Paraná – Conferência pronunciada em 1988 – CIMBRA -
RJ
Revista Beneditina nrº 17, Julho/Agosto de 2006, editado
pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas
Gerais.
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Notas
:
(1) De acordo com a Regra Beneditina, a comunidade elege o seu abade.
Mas, a partir do século VIII, visando mais o seu próprio interesse do que o da
vida monástica, reis e bispos, como recompensa a alguns leigos pelos serviços
prestados, entregavam-lhes uma abadia, nomeando-os abades. Estes abades
comendatários geralmente eram dóceis auxiliares dos reis, causando grande
prejuízo à vida monástica.
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