quinta-feira, 4 de julho de 2013

Carta Apostólica Mulieris Dignitatem (Capítulos 8 e 9 de 9)

Capítulos VIII e IX

                                  Santa Hildegard, Doutora de Igreja


MAIOR É A CARIDADE
 
Diante das transformações
 
28. « A Igreja acredita que Cristo, morto e ressuscitado para todos, pode oferecer ao homem, por seu Espírito, a luz e as forças que lhe permitirão corresponder à sua vocação suprema ». (56) Podemos aplicar estas palavras da Constituição conciliar Gaudium et Spes ao tema das presentes reflexões. O apelo particular à dignidade da mulher e à sua vocação, próprio do tempo em que vivemos, pode e deve ser acolhido na « luz e na força » que o Espírito prodigaliza ao homem: também ao homem da nossa época, rica de múltiplas transformações. A Igreja « acredita que a chave, o centro e o fim » do homem, como também « de toda a história humana se encontram no seu Senhor e Mestre » e « afirma que sob todas as transformações permanecem muitas coisas imutáveis, que tem seu fundamento último em Cristo; o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade ». (57)

Com estas palavras a Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo indica-nos o caminho a seguir na assunção dos empenhos relativos à dignidade da mulher e à sua vocação, no cenário das transformações significativas para o nosso tempo. Podemos enfrentar essas transformações de modo correto e adequado somente se retomarmos o caminho dos fundamentos que se encontram em Cristo, das verdades e dos valores « imutáveis », dos quais Ele mesmo permanece « testemunha fiel » (cf. Apoc 1, 5) e Mestre. Um modo diverso de agir conduziria a resultados duvidosos, e até mesmo errôneos e ilusórios.

A dignidade da mulher e a ordem do amor

29. A passagem já citada da Carta aos Efésios (5, 21-33), na qual a relação entre Cristo e a Igreja é apresentada como vínculo entre o Esposo e a Esposa, faz referência também à instituição do matrimônio segundo as palavras do Livro do Gênesis (cf. 2, 24). Ela une a verdade sobre o matrimônio como sacramento primordial com a criação do homem e da mulher à imagem e semelhança de Deus (cf. Gên 1, 27; 5, 1). Graças ao significativo confronto presente na Carta aos Efésios, adquire plena clareza aquilo que decide da dignidade da mulher, quer aos olhos de Deus, Criador e Redentor, quer aos olhos do homem: do homem e da mulher. No fundamento do desígnio eterno de Deus, a mulher é aquela na qual a ordem do amor no mundo criado das pessoas encontra um terreno para deitar a sua primeira raiz. A ordem do amor pertence à vida íntima do próprio Deus, à vida trinitária. Na vida íntima de Deus, o Espírito Santo é a hipóstase pessoal do amor. Mediante o Espírito, Dom incriado, o amor se torna um dom para as pessoas criadas. O amor, que vem de Deus, comunica-se às criaturas: « O amor de Deus é derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado » (cf. Rom 5, 5).
O chamamento da mulher à existência junto ao homem (« um auxiliar que lhe seja semelhante »: cf. Gên 2, 18) na « unidade dos dois » oferece, no mundo visível das criaturas, condições particulares a fim de que « o amor de Deus seja derramado nos corações » dos seres criados à sua imagem. Se o autor da Carta aos Efésios chama Cristo Esposo e a Igreja Esposa, ele confirma indiretamente, com tal analogia, a verdade sobre a mulher como esposa. O Esposo é aquele que ama. A Esposa é amada: é aquela que recebe o amor para, por sua vez, amar.

A citação do Gênesis — relida à luz do símbolo esponsal da Carta aos Efésios — permite-nos intuir uma verdade que parece decidir essencialmente a questão da dignidade da mulher e, em seguida, também a da sua vocação: a dignidade da mulher é medida pela ordem do amor, que é essencialmente ordem de justiça e de caridade. (58)
Só a pessoa pode amar e só a pessoa pode ser amada. Esta é uma afirmação, em primeiro lugar, de natureza ontológica, da qual emerge depois uma afirmação de natureza ética. O amor é uma exigência ontológica e ética da pessoa. A pessoa deve ser amada, pois só o amor corresponde àquilo que é a pessoa. Assim se explica o mandamento do amor, conhecido já no Antigo Testamento (cf. Dt 6, 5; Lev 19, 18) e colocado por Cristo no próprio centro do « ethos » evangélico (cf. Mt 22, 36-40; Mc 12, 28-34). Assim se explica também o primado do amor expresso nas palavras de São Paulo na Carta aos Coríntios: « maior é a caridade » (cf. 1 Cor 13, 13).

Se não se recorre a essa ordem e a esse primado, não se pode dar uma resposta completa e adequada à interrogação sobre a dignidade da mulher e sobre a sua vocação. Quando dizemos que a mulher é aquela que recebe amor para, por sua vez, amar, não entendemos só ou antes de tudo a relação esponsal específica do matrimônio. Entendemos algo mais universal, fundado no próprio fato de ser mulher no conjunto das relações interpessoais, que nas formas mais diversas estruturam a convivência e a colaboração entre as pessoas, homens e mulheres. Neste contexto, amplo e diversificado, a mulher representa um valor particular como pessoa humana e, ao mesmo tempo, como pessoa concreta, pelo fato da sua feminilidade. Isto se refere a todas as mulheres e a cada uma delas, independentemente do contexto cultural em que cada uma se encontra e das suas características espirituais, psíquicas e corporais, como, por exemplo, a idade, a instrução, a saúde, o trabalho, o fato de ser casada ou solteira.

A citação da Carta aos Efésios, que consideramos, leva-nos a pensar numa espécie de « profetismo » particular da mulher na sua feminilidade. A analogia do Esposo e da Esposa fala do amor com que todo homem é amado por Deus em Cristo, todo homem e toda mulher. Todavia, no contexto da analogia bíblica e na base da lógica interna do texto, é precisamente a mulher aquela que manifesta a todos esta verdade: a esposa. Esta característica « profética » da mulher na sua feminilidade encontra a sua mais alta expressão na Virgem Mãe de Deus. É em relação a ela que se coloca em relevo, do modo mais pleno e direto, o elo íntimo que une a ordem do amor — que entra no âmbito do mundo das pessoas humanas através de uma Mulher — com o Espírito Santo. Maria escuta na Anunciação: « Virá sobre ti o Espírito Santo » (Lc 1, 35).
Consciência de uma missão

30. A dignidade da mulher está intimamente ligada com o amor que ela recebe pelo próprio fato da sua feminilidade e também com o amor que ela, por sua vez, doa. Confirma-se assim a verdade sobre a pessoa e sobre o amor. Acerca da verdade da pessoa, deve-se uma vez mais recorrer ao Concílio Vaticano II: « O homem, a única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode se encontrar plenamente senão por um dom sincero de si mesmo ». (59) Isto se refere a todo homem, como pessoa criada à imagem de Deus, quer homem quer mulher. A afirmação de natureza ontológica aqui contida está a indicar também a dimensão ética da vocação da pessoa. A mulher não pode se encontrar a si mesma senão doando amor aos outros.

Desde o « princípio » a mulher — como o homem — foi criada e «colocada» por Deus precisamente nesta ordem de amor. O pecado das origens não anulou esta ordem, não a apagou de modo irreversível. Provam-no as palavras bíblicas do Proto-Evangelho (cf. Gen 3, 15). Nas presentes reflexões observamos o lugar singular da « mulher » nesse texto chave da Revelação. Além disso, é preciso observar como a própria mulher, que chega a ser « paradigma » bíblico, se encontra também na perspectiva escatológica do mundo e do homem, expressa no Apocalipse. (60) é « uma mulher vestida de sol », com a lua debaixo dos pés e uma coroa de estrelas sobre a cabeça (cf. Apoc 12, 1). Pode-se dizer: uma mulher à medida do cosmos, à medida de toda a obra da criação. Ao mesmo tempo, ela sofre « as dores e o tormento do parto » (Apoc 12, 2), como Eva « mãe de todos os viventes » (Gen 3, 20). Sofre também porque, « diante da mulher que está para dar à luz » (cf. Apoc 12, 4), se põe o « grande dragão, a serpente antiga » (Apoc 12, 9), conhecido já no Proto-Evangelho: o Maligno, « pai da mentira » e do pecado (cf. Jo 8, 44). De fato, a « serpente antiga » quer devorar « o filho ». Se vemos neste texto o reflexo do Evangelho da infância (cf. Mt 2, 13. 16), podemos pensar que no paradigma bíblico da « mulher » está inscrita, desde o início a até ao fim da história, a luta contra o mal e contra o Maligno. Esta é também a luta pelo homem, pelo seu verdadeiro bem, pela sua salvação. Não quererá a Bíblia dizer-nos que precisamente na « mulher », Eva-Maria, a história registra uma luta dramática em favor de todo homem, a luta pelo seu fundamental « sim » ou « não » a Deus e ao seu desígnio eterno sobre o homem?

Se a dignidade da mulher testemunha o amor que ela recebe para, por sua vez, amar, o paradigma bíblico da « mulher » parece desvelar também qual seja a verdadeira ordem do amor que constitui a vocação da mesma mulher. Trata-se aqui da vocação no seu significado fundamental, pode-se dizer universal, que depois se concretiza e se exprime nas múltiplas « vocações » da mulher na Igreja e no mundo.

A força moral da mulher, a sua força espiritual une-se à consciência de que Deus lhe confia de uma maneira especial o bomem, o ser humano. Naturalmente, Deus confia todo homem a todos e a cada um. Todavia, este ato de confiar refere-se de modo especial à mulher — precisamente pelo fato da sua feminilidade — e isso decide particularmente da sua vocação.

Inspirando-se nesta consciência e neste ato de confiança, a força moral da mulher exprime-se em numerosíssimas figuras femininas do Antigo Testamento, do tempo de Cristo, das épocas sucessivas, até aos nossos dias.
A mulher é forte pela consciência dessa missão, forte pelo fato de que Deus « lhe confia o homem », sempre e em todos os casos, até nas condições de discriminação social em que ela se possa encontrar. Esta consciência e esta vocação fundamental falam à mulher da dignidade que ela recebe de Deus mesmo, e isto a torna « forte » e consolida a sua vocação. Deste modo, a « mulher perfeita » (cf. Prov 31, 10) torna-se um amparo insubstituível e uma fonte de força espiritual para os outros, que percebem as grandes energias do seu espírito. A estas « mulheres perfeitas » muito devem as suas famílias e, por vezes, inteiras Nações.
Na nossa época, os sucessos da ciência e da técnica consentem alcançar, num grau até agora desconhecido, um bem-estar material que, enquanto favorece alguns, conduz outros à marginalização. Desse modo, este progresso unilateral pode comportar também um gradual desaparecimento da sensibilidade pelo homem, por aquilo que é essencialmente humano. Neste sentido, sobretudo os nossos dias aguardam a manifestação daquele « gênio » da mulher que assegure a sensibilidade pelo homem em toda circunstância: pelo fato de ser homem! E porque a maior é a caridade » (cf. 1 Cor 13, 13).
Portanto, uma leitura atenta do paradigma bíblico da « mulher » — desde o Livro do Gênesis até ao Apocalipse — confirma em que consistem a dignidade e a vocação da mulher e o que nelas é imutável e não se desatualiza, tendo o seu « fundamento último em Cristo, o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade ». (61) Se o homem é por Deus confiado de modo especial à mulher, isto não significará talvez que Cristo espera dela a realização do « sacerdócio real » (1 Pdr 2, 9), que é a riqueza que ele deu aos homens? Esta mesma herança Cristo, sumo e único sacerdote da nova e eterna Aliança e Esposo da Igreja, não cessa de submeter ao Pai, mediante o Espírito Santo, para que Deus seja « tudo em todos » (1 Cor 15, 28). (62)

Então chegará ao cumprimento definitivo a verdade que « maior é a caridade » (cf. 1 Cor 13, 13).

IX
CONCLUSÃO

« Se tu conhecesses o dom de Deus »

31. « Se tu conhecesses o dom de Deus » (Jo 4, 10), diz Jesus à Samaritana num daqueles admiráveis colóquios, nos quais ele mostra quanta estima tem pela dignidade de cada mulher e pela vocação que lhe consente participar na sua missão de Messias.
As presentes reflexões, que agora chegam ao fim, são orientadas a reconhecer, no interior do « dom de Deus », aquilo que Ele, criador e redentor, confia à mulher, a toda mulher. No Espírito de Cristo, com efeito, ela pode descobrir o significado completo da sua feminilidade e dispor-se desse modo ao « dom sincero de si mesma » aos outros, e assim « encontrar-se ».

No Ano Mariano, a Igreja deseja render graças à Santíssima Trindade pelo « mistério da mulher » — por toda mulher — e por aquilo que constitui a eterna medida da sua dignidade feminina, pelas « grandes obras de Deus » que na história das gerações humanas nela e por seu meio se realizaram. Em última análise, não foi nela e por seu meio que se operou o que há de maior na história do homem sobre a terra: o evento pelo qual Deus mesmo se fez homem?
Igreja, portanto, rende graças por todas e cada uma das mulheres: pelas mães, pelas irmãs, pelas esposas; pelas mulheres consagradas a Deus na virgindade; pelas mulheres que se dedicam a tantos e tantos seres humanos, que esperam o amor gratuito de outra pessoa; pelas mulheres que cuidam do ser humano na família, que é o sinal fundamental da sociedade humana; pelas mulheres que trabalham profissionalmente, mulheres que, às vezes, carregam uma grande responsabilidade social; pelas mulheres « perfeitas » e pelas mulheres « fracas » — por todas: tal como saíram do coração de Deus, com toda a beleza e riqueza da sua feminilidade; tal como foram abraçadas pelo seu amor eterno; tal como, juntamente com o homem, são peregrinas sobre a terra, que é, no tempo, a « pátria » dos homens e se transforma, às vezes, num « vale de lágrimas »; tal como assumem, juntamente com o homem, uma comum responsabilidade pela sorte da humanidade, segundo as necessidades cotidianas e segundo os destinos definitivos que a família humana tem no próprio Deus, no seio da inefável Trindade.

A Igreja agradece todas as manifestações do « gênio » feminino surgidas no curso da história, no meio de todos os povos e Nações; agradece todos os carismas que o Espírito Santo concede às mulheres na história do Povo de Deus, todas as vitórias que deve à fé, à esperança e caridade das mesmas: agradece todos os frutos de santidade feminina.

A Igreja pede, ao mesmo tempo, que estas inestimáveis « manifestações do Espírito » (cf. 1 Cor 12, 4 ss), com grande generosidade concedidas às « filhas » da Jerusalém eterna, sejam atentamente reconhecidas e valorizadas, para que redundem em vantagem comum para a Igreja e para a humanidade, especialmente em nosso tempo. Meditando o mistério bíblico da « mulher », a Igreja reza, a fim de que todas as mulheres encontrem neste mistério a si mesmas e a sua « suprema vocação ».

Maria, que « precede toda a Igreja no caminho da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo », (63) obtenha para todos nós também este « fruto », no Ano que lhe dedicamos, no limiar do terceiro milênio da vinda de Cristo.

Com estes votos, dou a todos os fiéis e de maneira especial às mulheres, irmãs em Cristo, a Bênção Apostólica.
Dado em Roma, junto a São Pedro, no dia 15 de Agosto — Solenidade da Assunção de Maria Santíssima — do ano de 1988, décimo de Pontificado.

JOÃO PAULO II

© Copyright 1988 - Libreria Editrice Vaticana

 

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