O período situado entre os séculos X e XII foi de
intensa discussão sobre o que seria a verdadeira forma do monaquismo beneditino.
Herdeira da tradição de Bento de Aniane, a abadia de Cluny assumiu posição de
destaque na questão. Em Cluny o mosteiro de oração tornou-se
mosteiro-litúrgico, monaquismo e liturgia formando uma única e inseparável
unidade. O Ofício divino passou a ser considerado a principal e logo a única
tarefa do monge, que tinha diante de si o ideal dos serafins. Ora, os serafins
não trabalham e por isso o equilíbrio entre oração e trabalho desapareceu
completamente. O lugar do monge é o coro e todas as demais atividades são
relegadas a segundo plano. Além das artes plásticas, valorizadas por causa de
seu importante papel no desenvolvimento da liturgia, o trabalho manual
resumia-se somente a algumas atividades domésticas, como limpeza e cozinha, e
mesmo estas muitas vezes eram exercidas por servidores leigos. A terra já não
era trabalhada diretamente pelos monges e a própria atividade intelectual
também não gozava de muita estima, o que é bem demonstrado pelo fato de Cluny
não possuir muitos escritores importantes. Não se estudava por falta de tempo.
A reação não tardou. Monte Cassino recusou o ideal beneditino
cluniacense como contrário à Regra; os mosteiros imperiais germânicos, por sua
vez, onde era forte o ideal de mosteiro-escola e mosteiro-cultura,
consideravam-se muito mais conformes à Regra do que os cluniacenses, que eram
acusados de responsáveis pelo nascimento de um espírito bárbaro por não
permitirem aos jovens que estudassem nos mosteiros. Por outro lado, as abadias,
de modo geral, tinham-se transformado em verdadeiras fortalezas feudais e os
abades em senhores. A reforma da Igreja ocorrida a partir do século XI trouxe
consigo o desejo de maior pobreza, não apenas individual, mas também coletiva.
É a época do surgimento de diversos movimentos de reforma no mundo beneditino,
com a preocupação de um retorno a uma vida mais pobre. Essas reformas
procuravam salvar elementos essenciais do monaquismo então ameaçados, como o
silencio e a contemplação, tendo como ideal o mosteiro-solidão e recusando não somente
o mosteiro-litúrgico do monaquismo cluniacense como também quase todas as
demais formas do monaquismo beneditino da época, como o mosteiro urbano, o
mosteiro-escola e o mosteiro-cultura. A função do mosteiro devia ser a de
proporcionar ao monge o ambiente no qual pudesse santificar-se na renúnica, na
pobreza, no silencio e na penitência. No entanto, o papel do trabalho em tal
programa de vida teria soluções notavelmente divergentes.
Em Camaldoli, embora tenha-se revalorizado o
trabalho, seja manual, artístico ou intelectual, apareceram os irmãos conversos
pela primeira vez na história do monaquismo. O ideal primitivo dos conversos
era o de consagrar a Deus uma vida de serviço enquanto tal, não sendo,
portanto, consequência da aversão dos monges pelo trabalho manual nem da
clericalização. Prova disso é que surgiu em um ambiente no qual o trabalho era
valorizado e praticado pelos monges e não nas velhas abadias clericalizadas e
com pouco trabalho, onde os conversos só chegaram mais tarde. Nos seus inícios
o movimento dos conversos foi um dos maiores exemplos de fusão de classes na
história. As vocações chegavam em grande número, nobres misturando-se aos
simples camponeses. Tratava-se, na verdade, de uma ruptura com as estruturas
feudais e o primeiro passo em direção à livre escolha da profissão.
As irmãs conversas surgiram por essa época também
entre as monjas, ainda que mais lentamente. Parece que a instituição surgiu da
necessidade de uma certa vida espiritual por parte das servas leigas das abadias.
À semelhança dos conversos, foram depois transformadas em verdadeiras
religiosas, formando uma classe separada dentro do mosteiro.
São João Gualberto, fundador da Valumbrosa, esteve
em Camaldoli e sem dúvida conheceu a atividade dos conversos. É inegável o
influxo de São Romualdo nas origens de Valumbrosa, onde são numerosos os
elementos de tipo eremítico, especialmente no tocante ao ambiente de isolamento
escolhido para o mosteiro. São João Gualberto traçou um limite ao redor do
mosteiro, além do qual não era lícito aos monges ultrapassar nem mesmo para o
ministério eclesiástico, já que, como dizia, ‘isso é tarefa dos cônegos e não dos monges’. Os monges deviam fazer
tudo, inclusive o trabalho manual, dentro dos limites da clausura. Assim, a exemplo
de Camaldoli, os irmãos conversos apareceram para proteger a solidão dos
monges, realizando para eles os trabalhos necessários no exterior do mosteiro.
Deve-se notar, porém, que a existência dos conversos não dispensava os monges
do trabalho manual dentro da clausura. A distinção entre monges e conversos, do
mesmo modo, não se referia ao estado clerical ou laical, já que o próprio João
Gualberto jamais recebeu ordens sacras, embora fosse abade. A única diferença
estava na maior separação do mundo por parte dos monges. O que ocorreu mais
tarde, de modo geral nos mosteiros, foi a introdução entre padres e irmãos da
mentalidade feudal de separação de classes, relegando-se cada vez mais o
trabalho manual somente aos conversos.
A intenção de São João Gualberto era a observância
literal da Regra de São Bento, mas as circunstâncias históricas logo mudaram
seus planos. Muitos foram a Valumbrosa atraídos menos pelo ideal monástico de
solidão e muito mais pela busca de um ambiente que estivesse em sintonia com as
próprias idéias de reforma eclesiástica. Foram acolhidos em Valumbrosa os
clérigos que fugiam de seus bispos simoníacos. A necessidade de combater a
simonia (2) levou São João Gualberto a conceder cada vez mais facilmente
que também os monges saíssem da clausura para a pregação.
As monjas anglo-saxãs, por sua vez, destacavam-se
pela atividade intelectual, algumas alcançando grande fama, como Santa
Hildegardes (+1179), versada tanto em teologia e mística como em filosofia,
medicina, ciências naturais e música. A abadia de Helfta contava no século XIII
com numerosas monjas de excelente formação intelectual, como Santa Mectildes
(+1299) e Santa Gertrudes (+1301-1302).
O problema do trabalho é central para os
reformadores cistercienses. Não desejavam riqueza alguma que não fosse
adquirida pelo trabalho dos próprios monges, isto é, rejeitavam rendas e o
serviço de servos da gleba e trabalhadores assalariados. Nesse particular,
tratava-se de um retorno aos ideais mais autênticos da tradição monástica, que
conferia ao trabalho um valor próprio, considerado antes de mais nada como um
mandamento divino e um dever do cristão, com o objetivo de não viver às custas
dos outros e praticar a caridade. A controvérsia entre Cluny e Cîteaux é bem
ilustrativa a esse respeito : São Bernardo acusa os cluniacenses de terem
abandonado o mandamento e o exemplo dos apóstolos, uma exigência da Regra.
Pedro, o Venerável, responde que a Regra considera o trabalho somente como um
remédio ao ócio e se este é combatido por outras atividades como oração,
leitura e salmodia, a Regra é respeitada. Notar como, na polêmica, cada parte
recorre à Regra e somente a ela, não mais à grande tradição, já que agora
estamos restritos a um mundo ‘beneditino’.
A diversidade existente já não é pluralismo, mas disputa pela posse da ‘interpretação autêntica’; as diferenças
não são aceitas em espírito de comunhão, mas consideradas alternativas
inconciliáveis. Vemos que enquanto na perspectiva de Cluny o trabalho possuía
somente um valor ascético, os primeiros cistercienses consideravam como
trabalho apenas as atividades que de alguma forma tivessem caráter utilitário.
Era principalmente o trabalho da terra que devia sustentar o mosteiro cisterciense, que, por isso, adaptava a essa função o horário e os costumes da comunidade. Assim, por exemplo, Tércia e Sexta podiam ser cantadas nos campos. Essa revalorização do trabalho manual fez com que os cistercienses em muito colaborassem com o progresso econômico europeu nos séculos XII e XIII : terras até então incultas foram colocadas em condições de plantio, as técnicas rurais foram aperfeiçoadas, as exigências do ideal de auto-suficiência econômica fizeram surgir as primeiras explorações das minas de carvão na Inglaterra, etc. No entanto, esse mesmo ideal de auto-suficiência fez com que a mão-de-obra monástica logo se revelasse insuficiente. O aparecimento dos conversos ajudou a solucionar temporariamente o problema. Com eles surgiu uma nova atividade, a granja, que se tornou típica entre os cistercienses. Muitas vezes era distante e os conversos não retornavam diariamente ao mosteiro. Já a partir do final do século XII, porém, em muitos mosteiros cirtercienses, não se praticava mais o cultivo direto, recorrendo-se aos assalariados. Devemos lembrar que as extensões de terra dessas abadias tornaram-se enormes. Aos poucos, também os cistercienses passaram a ser sustentados por rendas, pelo trabalho dos conversos e de assalariados.
Era principalmente o trabalho da terra que devia sustentar o mosteiro cisterciense, que, por isso, adaptava a essa função o horário e os costumes da comunidade. Assim, por exemplo, Tércia e Sexta podiam ser cantadas nos campos. Essa revalorização do trabalho manual fez com que os cistercienses em muito colaborassem com o progresso econômico europeu nos séculos XII e XIII : terras até então incultas foram colocadas em condições de plantio, as técnicas rurais foram aperfeiçoadas, as exigências do ideal de auto-suficiência econômica fizeram surgir as primeiras explorações das minas de carvão na Inglaterra, etc. No entanto, esse mesmo ideal de auto-suficiência fez com que a mão-de-obra monástica logo se revelasse insuficiente. O aparecimento dos conversos ajudou a solucionar temporariamente o problema. Com eles surgiu uma nova atividade, a granja, que se tornou típica entre os cistercienses. Muitas vezes era distante e os conversos não retornavam diariamente ao mosteiro. Já a partir do final do século XII, porém, em muitos mosteiros cirtercienses, não se praticava mais o cultivo direto, recorrendo-se aos assalariados. Devemos lembrar que as extensões de terra dessas abadias tornaram-se enormes. Aos poucos, também os cistercienses passaram a ser sustentados por rendas, pelo trabalho dos conversos e de assalariados.
IV – O trabalho nas congregações pré-beneditinas
Após sofrer uma decadência nos séculos XII e XIII,
iniciou-se uma grande renovação interior no monaquismo beneditino no século XV.
Surgiram novas Congregações impregnadas de grande severidade moral e de
profundo zelo ascético. São Congregações dotadas de espiritualidade própria,
uma novidade entre os beneditinos. Estamos na época da devotio moderna, com sua forma de piedade fortemente individual,
subjetiva e de grande apelo aos sentimentos. Tinha-se como ideal o monge
piedoso, com um livro na mão, todo ocupado com sua vida interior. A Congregação
de Santa Justina, iniciada por Ludovico Barbo (+1443), acentuava a separação do
mundo, não importando onde estivesse o mosteiro, na cidade ou no campo. Todas
as atividades deviam ser realizadas no âmbito da clausura. Os monges não podiam
tratar diretamente de assuntos econômicos e por isso as compras e vendas eram
efetuadas por representantes leigos; o ministério paroquial e até mesmo a
assistência espiritual aos mosteiros femininos foram recusados. Buscando um
ambiente que possibilitasse o máximo de recolhimento a cada monge, Ludovico
Barbo introduziu as celas individuais. Nada da documentação dá a entender que o
monge devia viver do trabalho de suas mãos. Ao contrário : devia viver de
rendas. Quando um mosteiro era anexado pela reforma, havia logo a preocupação de
assegurar as rendas necessárias para seu sustento, havendo ansiedade quando a
comunidade crescia mais rápido do que as rendas. A ocupação dos monges, além de
uns poucos trabalhos domésticos, era sobretudo a leitura, a meditação e a oração.
Na Espanha, a Congregação de Valladolid foi
influenciada por Santa Justina, mas foi muito mais longe na observância da
clausura : os mosteiros deviam ter uma só porta, sendo as demais substituídas
por ‘rodas’; nos parlatórios e na igreja os monges ficavam ocultos por grades e
cortinas. Inocêncio VIII permitiu até mesmo o voto de clausura perpétua. A atividade
dos monges era semelhante à de Santa Justina, mas para o sustento não havia
problema : o Estado é que assegurava a manutenção.
Também a Alemanha passou por um movimento reformador
no século XV, particularmente por impulso do Concílio de Constança. Mas já
antes do Concílio havia sido iniciada a reforma em Kastl, por obra do abade
Otto Nortweiner, inspirado fortemente pelo espírito de Cluny. Suas consuetudines (3), que chegaram
até nós, tratam detalhadamente da liturgia, insistindo também no silêncio,
obediência e pobreza. Do trabalho, contudo, quase não se fala, excetuando-se o
da cópia de livros.
Sob a proteção do duque Alberto V da Áustria, Melk
foi o segundo centro de reforma, adotando os costumes de Subiaco. É lembrada
particularmente como centro de cultura intelectual, importante pela literatura
ascética que produziu. Todavia, a mais importante reforma alemã foi a de
Bursfeld, uma Congregação que pretendeu evitar as atividades pastorais externas,
reservando-as ao clero secular. Como em todas as reformas dessa época, Bursfeld
sofreu a influência da devotio moderna,
acentuando a importância da meditação. A vida espiritual devia servir também
para o estudo dos monges, a quem se recomendava escrever e copiar livros – ao menos
para evitar a ociosidade. Tanto em Kastl como em Melk e Bursfel, a instituição dos
conversos, que na época vinha desaparecendo, foi retomada.
Notas :
(2) O termo é derivado de Simão,
o Mago (cf. At 8). Aquisição ou outorga de um cargo eclesiástico a troco de
dinheiro ou de outras vantagens materiais. No século X estava muito difundida
entre o clero e os leigos, principalmente nas dioceses da França, Itália e
Alemanha.
(3) Na tradição monástica
refere-se ao conjunto de usos e costumes observados em uma determinada
comunidade ou congregação.
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