quarta-feira, 10 de julho de 2013

O trabalho na tradição monástica beneditina (Capítulo 2 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


            III – Entre Cluny e Cister 

O período situado entre os séculos X e XII foi de intensa discussão sobre o que seria a verdadeira forma do monaquismo beneditino. Herdeira da tradição de Bento de Aniane, a abadia de Cluny assumiu posição de destaque na questão. Em Cluny o mosteiro de oração tornou-se mosteiro-litúrgico, monaquismo e liturgia formando uma única e inseparável unidade. O Ofício divino passou a ser considerado a principal e logo a única tarefa do monge, que tinha diante de si o ideal dos serafins. Ora, os serafins não trabalham e por isso o equilíbrio entre oração e trabalho desapareceu completamente. O lugar do monge é o coro e todas as demais atividades são relegadas a segundo plano. Além das artes plásticas, valorizadas por causa de seu importante papel no desenvolvimento da liturgia, o trabalho manual resumia-se somente a algumas atividades domésticas, como limpeza e cozinha, e mesmo estas muitas vezes eram exercidas por servidores leigos. A terra já não era trabalhada diretamente pelos monges e a própria atividade intelectual também não gozava de muita estima, o que é bem demonstrado pelo fato de Cluny não possuir muitos escritores importantes. Não se estudava por falta de tempo.

A reação não tardou. Monte Cassino recusou o ideal beneditino cluniacense como contrário à Regra; os mosteiros imperiais germânicos, por sua vez, onde era forte o ideal de mosteiro-escola e mosteiro-cultura, consideravam-se muito mais conformes à Regra do que os cluniacenses, que eram acusados de responsáveis pelo nascimento de um espírito bárbaro por não permitirem aos jovens que estudassem nos mosteiros. Por outro lado, as abadias, de modo geral, tinham-se transformado em verdadeiras fortalezas feudais e os abades em senhores. A reforma da Igreja ocorrida a partir do século XI trouxe consigo o desejo de maior pobreza, não apenas individual, mas também coletiva. É a época do surgimento de diversos movimentos de reforma no mundo beneditino, com a preocupação de um retorno a uma vida mais pobre. Essas reformas procuravam salvar elementos essenciais do monaquismo então ameaçados, como o silencio e a contemplação, tendo como ideal o mosteiro-solidão e recusando não somente o mosteiro-litúrgico do monaquismo cluniacense como também quase todas as demais formas do monaquismo beneditino da época, como o mosteiro urbano, o mosteiro-escola e o mosteiro-cultura. A função do mosteiro devia ser a de proporcionar ao monge o ambiente no qual pudesse santificar-se na renúnica, na pobreza, no silencio e na penitência. No entanto, o papel do trabalho em tal programa de vida teria soluções notavelmente divergentes.

Em Camaldoli, embora tenha-se revalorizado o trabalho, seja manual, artístico ou intelectual, apareceram os irmãos conversos pela primeira vez na história do monaquismo. O ideal primitivo dos conversos era o de consagrar a Deus uma vida de serviço enquanto tal, não sendo, portanto, consequência da aversão dos monges pelo trabalho manual nem da clericalização. Prova disso é que surgiu em um ambiente no qual o trabalho era valorizado e praticado pelos monges e não nas velhas abadias clericalizadas e com pouco trabalho, onde os conversos só chegaram mais tarde. Nos seus inícios o movimento dos conversos foi um dos maiores exemplos de fusão de classes na história. As vocações chegavam em grande número, nobres misturando-se aos simples camponeses. Tratava-se, na verdade, de uma ruptura com as estruturas feudais e o primeiro passo em direção à livre escolha da profissão.

As irmãs conversas surgiram por essa época também entre as monjas, ainda que mais lentamente. Parece que a instituição surgiu da necessidade de uma certa vida espiritual por parte das servas leigas das abadias. À semelhança dos conversos, foram depois transformadas em verdadeiras religiosas, formando uma classe separada dentro do mosteiro.

São João Gualberto, fundador da Valumbrosa, esteve em Camaldoli e sem dúvida conheceu a atividade dos conversos. É inegável o influxo de São Romualdo nas origens de Valumbrosa, onde são numerosos os elementos de tipo eremítico, especialmente no tocante ao ambiente de isolamento escolhido para o mosteiro. São João Gualberto traçou um limite ao redor do mosteiro, além do qual não era lícito aos monges ultrapassar nem mesmo para o ministério eclesiástico, já que, como dizia, ‘isso é tarefa dos cônegos e não dos monges’. Os monges deviam fazer tudo, inclusive o trabalho manual, dentro dos limites da clausura. Assim, a exemplo de Camaldoli, os irmãos conversos apareceram para proteger a solidão dos monges, realizando para eles os trabalhos necessários no exterior do mosteiro. Deve-se notar, porém, que a existência dos conversos não dispensava os monges do trabalho manual dentro da clausura. A distinção entre monges e conversos, do mesmo modo, não se referia ao estado clerical ou laical, já que o próprio João Gualberto jamais recebeu ordens sacras, embora fosse abade. A única diferença estava na maior separação do mundo por parte dos monges. O que ocorreu mais tarde, de modo geral nos mosteiros, foi a introdução entre padres e irmãos da mentalidade feudal de separação de classes, relegando-se cada vez mais o trabalho manual somente aos conversos.

A intenção de São João Gualberto era a observância literal da Regra de São Bento, mas as circunstâncias históricas logo mudaram seus planos. Muitos foram a Valumbrosa atraídos menos pelo ideal monástico de solidão e muito mais pela busca de um ambiente que estivesse em sintonia com as próprias idéias de reforma eclesiástica. Foram acolhidos em Valumbrosa os clérigos que fugiam de seus bispos simoníacos. A necessidade de combater a simonia (2) levou São João Gualberto a conceder cada vez mais facilmente que também os monges saíssem da clausura para a pregação.

As monjas anglo-saxãs, por sua vez, destacavam-se pela atividade intelectual, algumas alcançando grande fama, como Santa Hildegardes (+1179), versada tanto em teologia e mística como em filosofia, medicina, ciências naturais e música. A abadia de Helfta contava no século XIII com numerosas monjas de excelente formação intelectual, como Santa Mectildes (+1299) e Santa Gertrudes (+1301-1302).


O problema do trabalho é central para os reformadores cistercienses. Não desejavam riqueza alguma que não fosse adquirida pelo trabalho dos próprios monges, isto é, rejeitavam rendas e o serviço de servos da gleba e trabalhadores assalariados. Nesse particular, tratava-se de um retorno aos ideais mais autênticos da tradição monástica, que conferia ao trabalho um valor próprio, considerado antes de mais nada como um mandamento divino e um dever do cristão, com o objetivo de não viver às custas dos outros e praticar a caridade. A controvérsia entre Cluny e Cîteaux é bem ilustrativa a esse respeito : São Bernardo acusa os cluniacenses de terem abandonado o mandamento e o exemplo dos apóstolos, uma exigência da Regra. Pedro, o Venerável, responde que a Regra considera o trabalho somente como um remédio ao ócio e se este é combatido por outras atividades como oração, leitura e salmodia, a Regra é respeitada. Notar como, na polêmica, cada parte recorre à Regra e somente a ela, não mais à grande tradição, já que agora estamos restritos a um mundo ‘beneditino’. A diversidade existente já não é pluralismo, mas disputa pela posse da ‘interpretação autêntica’; as diferenças não são aceitas em espírito de comunhão, mas consideradas alternativas inconciliáveis. Vemos que enquanto na perspectiva de Cluny o trabalho possuía somente um valor ascético, os primeiros cistercienses consideravam como trabalho apenas as atividades que de alguma forma tivessem caráter utilitário.

          Era principalmente o trabalho da terra que devia sustentar o mosteiro cisterciense, que, por isso, adaptava a essa função o horário e os costumes da comunidade. Assim, por exemplo, Tércia e Sexta podiam ser cantadas nos campos. Essa revalorização do trabalho manual fez com que os cistercienses em muito colaborassem com o progresso econômico europeu nos séculos XII e XIII : terras até então incultas foram colocadas em condições de plantio, as técnicas rurais foram aperfeiçoadas, as exigências do ideal de auto-suficiência econômica fizeram surgir as primeiras explorações das minas de carvão na Inglaterra, etc. No entanto, esse mesmo ideal de auto-suficiência fez com que a mão-de-obra monástica logo se revelasse insuficiente. O aparecimento dos conversos ajudou a solucionar temporariamente o problema. Com eles surgiu uma nova atividade, a granja, que se tornou típica entre os cistercienses. Muitas vezes era distante e os conversos não retornavam diariamente ao mosteiro. Já a partir do final do século XII, porém, em muitos mosteiros cirtercienses, não se praticava mais o cultivo direto, recorrendo-se aos assalariados. Devemos lembrar que as extensões de terra dessas abadias tornaram-se enormes. Aos poucos, também os cistercienses passaram a ser sustentados por rendas, pelo trabalho dos conversos e de assalariados.  

IV – O trabalho nas congregações pré-beneditinas 

Após sofrer uma decadência nos séculos XII e XIII, iniciou-se uma grande renovação interior no monaquismo beneditino no século XV. Surgiram novas Congregações impregnadas de grande severidade moral e de profundo zelo ascético. São Congregações dotadas de espiritualidade própria, uma novidade entre os beneditinos. Estamos na época da devotio moderna, com sua forma de piedade fortemente individual, subjetiva e de grande apelo aos sentimentos. Tinha-se como ideal o monge piedoso, com um livro na mão, todo ocupado com sua vida interior. A Congregação de Santa Justina, iniciada por Ludovico Barbo (+1443), acentuava a separação do mundo, não importando onde estivesse o mosteiro, na cidade ou no campo. Todas as atividades deviam ser realizadas no âmbito da clausura. Os monges não podiam tratar diretamente de assuntos econômicos e por isso as compras e vendas eram efetuadas por representantes leigos; o ministério paroquial e até mesmo a assistência espiritual aos mosteiros femininos foram recusados. Buscando um ambiente que possibilitasse o máximo de recolhimento a cada monge, Ludovico Barbo introduziu as celas individuais. Nada da documentação dá a entender que o monge devia viver do trabalho de suas mãos. Ao contrário : devia viver de rendas. Quando um mosteiro era anexado pela reforma, havia logo a preocupação de assegurar as rendas necessárias para seu sustento, havendo ansiedade quando a comunidade crescia mais rápido do que as rendas. A ocupação dos monges, além de uns poucos trabalhos domésticos, era sobretudo a leitura, a meditação e a oração.

Na Espanha, a Congregação de Valladolid foi influenciada por Santa Justina, mas foi muito mais longe na observância da clausura : os mosteiros deviam ter uma só porta, sendo as demais substituídas por ‘rodas’; nos parlatórios e na igreja os monges ficavam ocultos por grades e cortinas. Inocêncio VIII permitiu até mesmo o voto de clausura perpétua. A atividade dos monges era semelhante à de Santa Justina, mas para o sustento não havia problema : o Estado é que assegurava a manutenção.

Também a Alemanha passou por um movimento reformador no século XV, particularmente por impulso do Concílio de Constança. Mas já antes do Concílio havia sido iniciada a reforma em Kastl, por obra do abade Otto Nortweiner, inspirado fortemente pelo espírito de Cluny. Suas consuetudines (3), que chegaram até nós, tratam detalhadamente da liturgia, insistindo também no silêncio, obediência e pobreza. Do trabalho, contudo, quase não se fala, excetuando-se o da cópia de livros.

Sob a proteção do duque Alberto V da Áustria, Melk foi o segundo centro de reforma, adotando os costumes de Subiaco. É lembrada particularmente como centro de cultura intelectual, importante pela literatura ascética que produziu. Todavia, a mais importante reforma alemã foi a de Bursfeld, uma Congregação que pretendeu evitar as atividades pastorais externas, reservando-as ao clero secular. Como em todas as reformas dessa época, Bursfeld sofreu a influência da devotio moderna, acentuando a importância da meditação. A vida espiritual devia servir também para o estudo dos monges, a quem se recomendava escrever e copiar livros – ao menos para evitar a ociosidade. Tanto em Kastl como em Melk e Bursfel, a instituição dos conversos, que na época vinha desaparecendo, foi retomada.
 

 
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Notas :  
(2)   O termo é derivado de Simão, o Mago (cf. At 8). Aquisição ou outorga de um cargo eclesiástico a troco de dinheiro ou de outras vantagens materiais. No século X estava muito difundida entre o clero e os leigos, principalmente nas dioceses da França, Itália e Alemanha.

(3)   Na tradição monástica refere-se ao conjunto de usos e costumes observados em uma determinada comunidade ou congregação.

 

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