V – O período pós-tridentino
Quando começou a Reforma protestante, no início do
século XVI, o monaquismo beneditino passava por um período de intensa
renovação. Apesar disso, a Reforma fez desaparecer por volta de 800 abadias das
cerca de 1500 existentes. O Concílio de Trento preocupou-se com os mosteiros e
surgiram numerosas Congregações. O monaquismo urbano torna-se acadêmico. As
bibliotecas são bem fornidas e há monges dedicados ao estudo de praticamente
todas as disciplinas clássicas e profanas. Assim, a Congregação de Saint-Vanne
(aprovada em 1604) desde o início quis dar aos noviços uma formação rigorosa.
Didier de la Cour, o monge que deu origem à Congregação, dizia que ‘um beneditino ignorante é um ser indefinido,
uma espécie de monstro que, privado de luz, só pode caminhar com o bastão’.
Já no século XVII a Congregação mostrou interesse pelas ciências naturais : D.
Robert Desgabets descobriu a transfusão de sangue, colocada em prática sobretudo
na abadia de Saint Hidulphe; D. Alliot escreveu um ‘Tratado sobre o câncer’; D. Pérignon descobriu o método de se fazer
‘champagne’. Além dos estudos e do
ensino, a Congregação dedicava-se também ao ministério paroquial.
Mas foi a Congregação de São Mauro, originária de
Saint-Vanne e aprovada em 1621, que levou o trabalho intelectual ao seu máximo desenvolvimento.
A imagem do monge culto e estudioso propagada pelos maurinos tornou-se tão
típica que ainda hoje, por exemplo, um dos significados de ‘beneditino’ no Dicionário Aurélio é o de ‘homen
erudito’. A atividade intelectual surgiu em grande parte como solução para
o problema do trabalho. Como a imensa maioria dos mosteiros não precisava se
preocupar com a subsistência – proveniente de rendas ou do próprio Estado – o trabalho
era considerado somente sob seu aspecto ascético de combate à ociosidade. Mas a
solução medieval da cópia de livros estava largamente ultrapassada no século
XVII, quando a imprensa já se tinha tornado uma realidade. Desse modo, o
trabalho intelectual não só resolvia o problema da ocupação dos monges,
proporcionando-lhes uma atividade que facilitava o progresso espiritual, como
também era um serviço prestado à Igreja Católica em face à Reforma protestante.
Os jovens recebiam sólida formação monástica e teológica e os mais talentosos
eram enviados a Paris, onde podiam dedicar-se a estudos mais aprofundados.
Saint Germain-des-Prés tornou-se a academia da Congregação. Do ponto de vista
intelectual, os maurinos tornaram-se praticamente auto-suficientes, desde a
pesquisa de fontes (ótimas bibliotecas, arquivos e manuscritos), até a
tipografia. Quanto ao método e organização do trabalho científico, os maurinos
logo ficaram à frente das ciências históricas do tempo, sendo muito respeitados
mesmo pelos inimigos da Igreja. Algumas de suas edições patrísticas não foram
superadas até hoje. As primeiras grandes obras eram anônimas e fruto da colaboração
de muitos monges. É o caso da Gallia
Christiana, obra de história eclesiástica com a estatística de todas as
dioceses da França, que levou 80 anos para ser elaborada. Mas alguns maurinos
tornaram-se famosos e entraram para a história por causa de seus trabalhos
científicos de altíssimo nível, como D. Luc d’Achéry (1609-1685), D. Edmond
Martène (1654-1739), D. Bernard Montfaucon (1655-1741) e D. Jean Mabillon
(1632-1707).
Entre os cistercienses, tanto os abades
comendatários como as guerras e a secularização tinham levado os mosteiros à
decadência generalizada. Essa situação desastrosa fez com que grupos isolados
de abadias formassem congregações mais ou menos independentes. Além disso,
surgiram movimentos de reforma. Uma dessas congregações reformadas é a de
Feuillant, instituído por Jean de la Barrière em 1586, caracterizada por sua
grande austeridade, que incluía uma dura prática de trabalho manual. Os monges
dedicavam-se também à pregação apostólica. A experiência dos ‘feuillants’ encorajou um amplo movimento
de reforma por parte de jovens monges descontentes com as demoras de Cîteaux em
promover mudanças significativas. Assim, sem esperar que o Capítulo Geral de
1601 estabelecesse um programa conjunto, o abade comendatário de La Charmoye,
Ottavio Arnolfini, de apenas 19 anos, fez o noviciado e a profissão em Clairvaux
(havia rivalidade entre os abades de Cîteau e Clairvaux) e iniciou a reforma em
sua própria abadia, surgindo o movimento chamado de ‘Estrita Observância’. A reforma foi introduzida também em Clairvaux
e em outros mosteiros, começando uma luta entre as duas observâncias. Os cistercienses
começavam a se dividir, pois formava-se uma Ordem dentro da própria Ordem.
Segundo os reformados, para que a vida de oração fosse autêntica, devia estar
num contexto de vida de penitência. Nesse sentido marcadamente penitencial, foi
instituído o trabalho manual para todos.
Uma das abadias reformadas era
Notre-Dame-de-la-Trappe, onde era abade Jean Le Bouthillier de Rancé. Para ele,
a vida monástica é essencialmente penitencial. Considerava indispensável não
somente a penitência interior, mas também a exterior, e em tal perspectiva é
que encarava o trabalho. A vida em La Trappe era duríssima, particularmente o
trabalho. A taxa de mortalidade era alta, mas isso não impressionava muito :
ingressava-se em La Trappe para morrer e não para viver. Um em cada quatro
monges que entrava no mosteiro tinha somente dois anos para se preparar para a
morte. Proibia aos monges quaisquer estudos, inclusive teológicos, acreditanto
que acabavam com a simplicidade. Escreveu duas obras, o Tratado da santidade e dos deveres da vida monástica (1683) e a Regra de São Bento traduzida e explicada
segundo seu verdadeiro espírito (1689), esta última de escopo apologético e
dirigida conta toda as outras interpretações da vida monástica. Na primeira
obra, Rancé negava ao monge qualquer atividade intelectual ou científica, o que
levou Mabillon a responder-lhe com uma exposição sobre os estudos monásticos. A
réplica de Rancé foi apaixonada. Mabillon refletiu e publicou mais tarde o Tratado dos estudos monásticos. Rancé
não admitia também qualquer apostolado ou ensino, considerados incompatíveis
com a vida monástica.
Enquanto isso, o Iluminismo (4) causava
sérios problemas ao monaquismo. Os monges sentiam-se embaraçados e esforçavam-se
em mostrar certa ‘utilidade’ à
sociedade a fim de justificar a própria existência. Aumentara as atividades
exteriores, mas isso não foi solução : o Iluminismo acabou contagiando os
próprios monges e muitos deixaram seus mosteiros sem qualquer dispensa. Um
monge maurino, Antoine François Prévost, escreveu o célebre romance de amor Manon Lescaut, que fez tanto sucesso
quanto causou escândalo. Avançava rapidamente o processo de secularização que
culminou na supressão dos mosteiros com a Revolução Francesa.
VI – Da Restauração aos nossos dias
A renovação do monaquismo no século XIX está
intimamente ligada ao movimento sócio-cultural do Romantismo, em reação ao racionalismo
do século XVIII. A Idade Média é idealizada.
D. Guéranger reabriu o antigo priorado de Solesmes
em 1833, herdando as três antigas congregações francesas de Cluny, Saint-Vanne
e São Mauro. No início, tinha ele em mente apenas o ideal dos maurinos,
procurando fazer que seus monges fossem sacerdotes estudiosos que sustentassem
o primado romano contra o galicanismo. Mas essa base não era suficiente, já que
não era monástica. Voltou-se então para a Idade Média e Cluny, reconhecendo na
liturgia o elemento essencial da vida beneditina. Assim, Solesmes reuniu em si
tanto o mosteiro-litúrgico como o mosteiro-cultura. Os monges-sacerdotes
dedicavam-se ao coro e aos estudos, incluindo a restauração do canto
gregoriano, enquanto que os conversos estavam empenhados nos diversos trabalhos
manuais.
D. Jean-Baptiste Muard, fundador de La
Pierre-qui-Vire, quis unir a vida monástica pobre e rigorosa com a pregação,
dando origem ao que ele chamou de ‘monges
pregadores beneditinos’. Sofreu grande influxo da vida trapista, aliás já
evidente pelo nome que pretendia dar à sua fundação : ‘Trapistas pregadores’. Queria longos ofícios corais, trabalho
manual e penitência. Instituiu, no entanto, as celas individuais e o trabalho
intelectual. Dentro do mosteiro o monge devia ser como um trapista, mas fora se
convertia em missionário. Em 1859, os monges de La Pierre-qui-Vire uniram-se à
Congregação de Subiaco. De acordo com o ideal do Padre Muard foram realizadas missões
a partir de 1873. Mais tarde, La Pierre-qui-Vire abandonou as missões de pregação,
mas manteve o antigo ideal missionário com fundações de mosteiros em países do
Terceiro Mundo.
A Congregação de Beuron, obra dos irmãos Mauro e
Plácido Wolter, foi profundamente inspirada em Solesmes, crescendo, porém,
muito mais rapidamente. Mauro Wolter aprovou as diferenças estabelecidas entre
monges-sacerdotes e irmãos conversos, atribuindo a clericalização da Ordem não
a uma deformação, mas a uma inspiração do Espírito Santo. Os conversos eram
essenciais em sua concepção monástica. Enquanto que para os monges de coro o ora e o labora eram atividades que se sucediam, para os irmãos conversos
eram atividades unidas (trabalhar rezando o terço, por exemplo). Os sacerdotes
não eram de todo dispensados do trabalho manual : deviam limpar a própria cela,
servir à mesa e trabalhar nos campos nos tempos de colheita. D. Mauro Wolter
admitia também certa prática pastoral e as escolas. Beuron distinguiu-se igualmente
por sua escola artística própria, criada por D. Desidério Lenz, inspirada nos
modelos hieráticos da arte egípcia antiga.
Foi um monge de Beuron, Andreas Armhein, que fundou
a Congregação de Santa Otília, única na história beneditina fundada
exclusivamente para as missões no estrangeiro. A fundação ocorreu num momento
de grande entusiasmo na Europa pela pregação do Evangelho entre os povos
pagãos, com a conexão, típica do século XIX, entre civilização e missão. O
modelo era a primeira Idade Média beneditina, que poderia e deveria ser copiada
em pleno século XIX. Seu programa era muito semelhante ao de Boniface Wimmer,
monge da Congregação Bávara que tinha fundado a Congregação
Americano-Cassinense nos Estados Unidos, para a pastoral dos imigrantes
alemães. A Congregação de Santa Otília recebeu logo muitas vocações, sobretudo
de irmãos conversos. Além das obras pastorais próprias das missões, a Congregação
também se destacou por seus trabalhos rurais, criando fazendas-modelo,
inclusive na próprio Mosteiro de Santo Otília, na Alemanha.
Chegamos, assim, aos dias de hoje, verificando uma
enorme diversidade de trabalho entre as comunidades beneditinas. Mas é uma diversidade
que está longe da comunhão do monaquismo anterior a São Bento e dos dois
séculos posteriores. E isso, a meu ver, por um motivo muito simples : a Regra
de São Bento, se tomada isoladamente, não é pluralista, uma vez que se torna um
texto fechado. O pluralismo monástico só pode existir – e só existiu historicamente
– num contexto de regula mixta. A RB
está inserida num filão de tradição mais solitária e, sozinha, não pode
inspirar trabalhos contrários a essa tradição. Prova disso, é que depois do fim
do pluralismo de observâncias, as reformas que pretenderam uma observância estrita
da Regra sempre foram norteadas pelo ideal de mosteiro-solidão. Desse modo,
diante da impossibilidade de se recorrer a uma tradição mais ampla, aqueles que
realizam trabalhos que pressupõem outros tipos de mosteiro passaram
habitualmente a justificá-los ou pela história ou pelas exigências concretas de
tempo e lugar – e nunca pela Regra em si. Assim, por exemplo, uma congregação missionária
justifica a autenticidade ‘beneditina’
de seu ideal pela atividade dos missionários ingleses dos séculos VII e VIII –
quando, no entanto, havia a regra mista; um mosteiro com atividade paroquial
justifica sua opção pela escassez do clero e as necessidades do povo, e não
pelo texto da Regra. Notamos, assim, que a diversidade no mundo beneditino é
carregada de certa tensão, já que cada um dos diversos tipos de mosteiro não
raramente considera-se o intérprete autêntico da Regra, tendo os demais em
conta de monges de segunda categoria. Em tal sitação, o trabalho é a grande
causa de separação entre os beneditinos, que muitas vezes não se dão conta dos
próprios preconceitos. Se para o monaquismo masculino, apesar de tudo, a
diversidade de trabalho pode existir, o mesmo não se deu com o monaquismo feminino,
muito mais uniforme : até pouco tempo os trabalhos não adequados ao ideal do
mosteiro-solidão ou mosteiro de oração excluíam do estado monacal aquelas que
os praticavam (5).
A redescoberta das fontes monásticas mais antigas,
ocorrida sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, deve nos levar, por um
lado, a rever nosso próprio trabalho, questionando-nos se de fato está
enraizado naquilo que o monaquismo – entendido com a grande e pluralista Ordem
Monástica – tem de próprio e, por outro lado, a não somente respeitar, mas a
assumir em espírito de comunhão os diferentes tipos de comunidade e seus
respectivos trabalhos.
Notas
:
(4) Mais que um sistema
filosófico, é um movimento espiritual, típico do século XVIII, caracterizado
por uma ilimitada confiança na razão humana, considerada capaz de dissipar as
névoas do desconhecido e do mistério, que obstruem e obscurecem o espírito
humano, e de tornar os homens melhores e mais felizes iluminando-os e
instruindo-os. Surgiu em oposição ao obscurantismo da Idade Média e está na
base dos ideais da Revolução Francesa.
(5) Cf. Constituição Apostólica
Sponsa Christi – para promover o Sagrado Instituto das Monjas, de Pio XII,
artigo 2.3 : Se a vida contemplativa canônica sob austera disciplina regular
não pode ser habitualmente observada não deve tampouco ser concedido o caráter
monástico nem conservado onde já existe. Cf. também o Artigo 8.1 da mesma Constituição.
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