quinta-feira, 18 de julho de 2013

O trabalho na tradição monástica beneditina (Capítulo 3 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


V – O período pós-tridentino
  
Quando começou a Reforma protestante, no início do século XVI, o monaquismo beneditino passava por um período de intensa renovação. Apesar disso, a Reforma fez desaparecer por volta de 800 abadias das cerca de 1500 existentes. O Concílio de Trento preocupou-se com os mosteiros e surgiram numerosas Congregações. O monaquismo urbano torna-se acadêmico. As bibliotecas são bem fornidas e há monges dedicados ao estudo de praticamente todas as disciplinas clássicas e profanas. Assim, a Congregação de Saint-Vanne (aprovada em 1604) desde o início quis dar aos noviços uma formação rigorosa. Didier de la Cour, o monge que deu origem à Congregação, dizia que ‘um beneditino ignorante é um ser indefinido, uma espécie de monstro que, privado de luz, só pode caminhar com o bastão’. Já no século XVII a Congregação mostrou interesse pelas ciências naturais : D. Robert Desgabets descobriu a transfusão de sangue, colocada em prática sobretudo na abadia de Saint Hidulphe; D. Alliot escreveu um ‘Tratado sobre o câncer’; D. Pérignon descobriu o método de se fazer ‘champagne’. Além dos estudos e do ensino, a Congregação dedicava-se também ao ministério paroquial.
 
Mas foi a Congregação de São Mauro, originária de Saint-Vanne e aprovada em 1621, que levou o trabalho intelectual ao seu máximo desenvolvimento. A imagem do monge culto e estudioso propagada pelos maurinos tornou-se tão típica que ainda hoje, por exemplo, um dos significados de ‘beneditino’ no Dicionário Aurélio é o de ‘homen erudito’. A atividade intelectual surgiu em grande parte como solução para o problema do trabalho. Como a imensa maioria dos mosteiros não precisava se preocupar com a subsistência – proveniente de rendas ou do próprio Estado – o trabalho era considerado somente sob seu aspecto ascético de combate à ociosidade. Mas a solução medieval da cópia de livros estava largamente ultrapassada no século XVII, quando a imprensa já se tinha tornado uma realidade. Desse modo, o trabalho intelectual não só resolvia o problema da ocupação dos monges, proporcionando-lhes uma atividade que facilitava o progresso espiritual, como também era um serviço prestado à Igreja Católica em face à Reforma protestante. Os jovens recebiam sólida formação monástica e teológica e os mais talentosos eram enviados a Paris, onde podiam dedicar-se a estudos mais aprofundados. Saint Germain-des-Prés tornou-se a academia da Congregação. Do ponto de vista intelectual, os maurinos tornaram-se praticamente auto-suficientes, desde a pesquisa de fontes (ótimas bibliotecas, arquivos e manuscritos), até a tipografia. Quanto ao método e organização do trabalho científico, os maurinos logo ficaram à frente das ciências históricas do tempo, sendo muito respeitados mesmo pelos inimigos da Igreja. Algumas de suas edições patrísticas não foram superadas até hoje. As primeiras grandes obras eram anônimas e fruto da colaboração de muitos monges. É o caso da Gallia Christiana, obra de história eclesiástica com a estatística de todas as dioceses da França, que levou 80 anos para ser elaborada. Mas alguns maurinos tornaram-se famosos e entraram para a história por causa de seus trabalhos científicos de altíssimo nível, como D. Luc d’Achéry (1609-1685), D. Edmond Martène (1654-1739), D. Bernard Montfaucon (1655-1741) e D. Jean Mabillon (1632-1707).
 
Entre os cistercienses, tanto os abades comendatários como as guerras e a secularização tinham levado os mosteiros à decadência generalizada. Essa situação desastrosa fez com que grupos isolados de abadias formassem congregações mais ou menos independentes. Além disso, surgiram movimentos de reforma. Uma dessas congregações reformadas é a de Feuillant, instituído por Jean de la Barrière em 1586, caracterizada por sua grande austeridade, que incluía uma dura prática de trabalho manual. Os monges dedicavam-se também à pregação apostólica. A experiência dos ‘feuillants’ encorajou um amplo movimento de reforma por parte de jovens monges descontentes com as demoras de Cîteaux em promover mudanças significativas. Assim, sem esperar que o Capítulo Geral de 1601 estabelecesse um programa conjunto, o abade comendatário de La Charmoye, Ottavio Arnolfini, de apenas 19 anos, fez o noviciado e a profissão em Clairvaux (havia rivalidade entre os abades de Cîteau e Clairvaux) e iniciou a reforma em sua própria abadia, surgindo o movimento chamado de ‘Estrita Observância’. A reforma foi introduzida também em Clairvaux e em outros mosteiros, começando uma luta entre as duas observâncias. Os cistercienses começavam a se dividir, pois formava-se uma Ordem dentro da própria Ordem. Segundo os reformados, para que a vida de oração fosse autêntica, devia estar num contexto de vida de penitência. Nesse sentido marcadamente penitencial, foi instituído o trabalho manual para todos.
 
Uma das abadias reformadas era Notre-Dame-de-la-Trappe, onde era abade Jean Le Bouthillier de Rancé. Para ele, a vida monástica é essencialmente penitencial. Considerava indispensável não somente a penitência interior, mas também a exterior, e em tal perspectiva é que encarava o trabalho. A vida em La Trappe era duríssima, particularmente o trabalho. A taxa de mortalidade era alta, mas isso não impressionava muito : ingressava-se em La Trappe para morrer e não para viver. Um em cada quatro monges que entrava no mosteiro tinha somente dois anos para se preparar para a morte. Proibia aos monges quaisquer estudos, inclusive teológicos, acreditanto que acabavam com a simplicidade. Escreveu duas obras, o Tratado da santidade e dos deveres da vida monástica (1683) e a Regra de São Bento traduzida e explicada segundo seu verdadeiro espírito (1689), esta última de escopo apologético e dirigida conta toda as outras interpretações da vida monástica. Na primeira obra, Rancé negava ao monge qualquer atividade intelectual ou científica, o que levou Mabillon a responder-lhe com uma exposição sobre os estudos monásticos. A réplica de Rancé foi apaixonada. Mabillon refletiu e publicou mais tarde o Tratado dos estudos monásticos. Rancé não admitia também qualquer apostolado ou ensino, considerados incompatíveis com a vida monástica.
 
Enquanto isso, o Iluminismo (4) causava sérios problemas ao monaquismo. Os monges sentiam-se embaraçados e esforçavam-se em mostrar certa ‘utilidade’ à sociedade a fim de justificar a própria existência. Aumentara as atividades exteriores, mas isso não foi solução : o Iluminismo acabou contagiando os próprios monges e muitos deixaram seus mosteiros sem qualquer dispensa. Um monge maurino, Antoine François Prévost, escreveu o célebre romance de amor Manon Lescaut, que fez tanto sucesso quanto causou escândalo. Avançava rapidamente o processo de secularização que culminou na supressão dos mosteiros com a Revolução Francesa.

 
VI – Da Restauração aos nossos dias
 
A renovação do monaquismo no século XIX está intimamente ligada ao movimento sócio-cultural do Romantismo, em reação ao racionalismo do século XVIII. A Idade Média é idealizada.
 
D. Guéranger reabriu o antigo priorado de Solesmes em 1833, herdando as três antigas congregações francesas de Cluny, Saint-Vanne e São Mauro. No início, tinha ele em mente apenas o ideal dos maurinos, procurando fazer que seus monges fossem sacerdotes estudiosos que sustentassem o primado romano contra o galicanismo. Mas essa base não era suficiente, já que não era monástica. Voltou-se então para a Idade Média e Cluny, reconhecendo na liturgia o elemento essencial da vida beneditina. Assim, Solesmes reuniu em si tanto o mosteiro-litúrgico como o mosteiro-cultura. Os monges-sacerdotes dedicavam-se ao coro e aos estudos, incluindo a restauração do canto gregoriano, enquanto que os conversos estavam empenhados nos diversos trabalhos manuais.
 
D. Jean-Baptiste Muard, fundador de La Pierre-qui-Vire, quis unir a vida monástica pobre e rigorosa com a pregação, dando origem ao que ele chamou de ‘monges pregadores beneditinos’. Sofreu grande influxo da vida trapista, aliás já evidente pelo nome que pretendia dar à sua fundação : ‘Trapistas pregadores’. Queria longos ofícios corais, trabalho manual e penitência. Instituiu, no entanto, as celas individuais e o trabalho intelectual. Dentro do mosteiro o monge devia ser como um trapista, mas fora se convertia em missionário. Em 1859, os monges de La Pierre-qui-Vire uniram-se à Congregação de Subiaco. De acordo com o ideal do Padre Muard foram realizadas missões a partir de 1873. Mais tarde, La Pierre-qui-Vire abandonou as missões de pregação, mas manteve o antigo ideal missionário com fundações de mosteiros em países do Terceiro Mundo.
 
A Congregação de Beuron, obra dos irmãos Mauro e Plácido Wolter, foi profundamente inspirada em Solesmes, crescendo, porém, muito mais rapidamente. Mauro Wolter aprovou as diferenças estabelecidas entre monges-sacerdotes e irmãos conversos, atribuindo a clericalização da Ordem não a uma deformação, mas a uma inspiração do Espírito Santo. Os conversos eram essenciais em sua concepção monástica. Enquanto que para os monges de coro o ora e o labora eram atividades que se sucediam, para os irmãos conversos eram atividades unidas (trabalhar rezando o terço, por exemplo). Os sacerdotes não eram de todo dispensados do trabalho manual : deviam limpar a própria cela, servir à mesa e trabalhar nos campos nos tempos de colheita. D. Mauro Wolter admitia também certa prática pastoral e as escolas. Beuron distinguiu-se igualmente por sua escola artística própria, criada por D. Desidério Lenz, inspirada nos modelos hieráticos da arte egípcia antiga.
 
Foi um monge de Beuron, Andreas Armhein, que fundou a Congregação de Santa Otília, única na história beneditina fundada exclusivamente para as missões no estrangeiro. A fundação ocorreu num momento de grande entusiasmo na Europa pela pregação do Evangelho entre os povos pagãos, com a conexão, típica do século XIX, entre civilização e missão. O modelo era a primeira Idade Média beneditina, que poderia e deveria ser copiada em pleno século XIX. Seu programa era muito semelhante ao de Boniface Wimmer, monge da Congregação Bávara que tinha fundado a Congregação Americano-Cassinense nos Estados Unidos, para a pastoral dos imigrantes alemães. A Congregação de Santa Otília recebeu logo muitas vocações, sobretudo de irmãos conversos. Além das obras pastorais próprias das missões, a Congregação também se destacou por seus trabalhos rurais, criando fazendas-modelo, inclusive na próprio Mosteiro de Santo Otília, na Alemanha.
 
Chegamos, assim, aos dias de hoje, verificando uma enorme diversidade de trabalho entre as comunidades beneditinas. Mas é uma diversidade que está longe da comunhão do monaquismo anterior a São Bento e dos dois séculos posteriores. E isso, a meu ver, por um motivo muito simples : a Regra de São Bento, se tomada isoladamente, não é pluralista, uma vez que se torna um texto fechado. O pluralismo monástico só pode existir – e só existiu historicamente – num contexto de regula mixta. A RB está inserida num filão de tradição mais solitária e, sozinha, não pode inspirar trabalhos contrários a essa tradição. Prova disso, é que depois do fim do pluralismo de observâncias, as reformas que pretenderam uma observância estrita da Regra sempre foram norteadas pelo ideal de mosteiro-solidão. Desse modo, diante da impossibilidade de se recorrer a uma tradição mais ampla, aqueles que realizam trabalhos que pressupõem outros tipos de mosteiro passaram habitualmente a justificá-los ou pela história ou pelas exigências concretas de tempo e lugar – e nunca pela Regra em si. Assim, por exemplo, uma congregação missionária justifica a autenticidade ‘beneditina’ de seu ideal pela atividade dos missionários ingleses dos séculos VII e VIII – quando, no entanto, havia a regra mista; um mosteiro com atividade paroquial justifica sua opção pela escassez do clero e as necessidades do povo, e não pelo texto da Regra. Notamos, assim, que a diversidade no mundo beneditino é carregada de certa tensão, já que cada um dos diversos tipos de mosteiro não raramente considera-se o intérprete autêntico da Regra, tendo os demais em conta de monges de segunda categoria. Em tal sitação, o trabalho é a grande causa de separação entre os beneditinos, que muitas vezes não se dão conta dos próprios preconceitos. Se para o monaquismo masculino, apesar de tudo, a diversidade de trabalho pode existir, o mesmo não se deu com o monaquismo feminino, muito mais uniforme : até pouco tempo os trabalhos não adequados ao ideal do mosteiro-solidão ou mosteiro de oração excluíam do estado monacal aquelas que os praticavam (5).
 
A redescoberta das fontes monásticas mais antigas, ocorrida sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, deve nos levar, por um lado, a rever nosso próprio trabalho, questionando-nos se de fato está enraizado naquilo que o monaquismo – entendido com a grande e pluralista Ordem Monástica – tem de próprio e, por outro lado, a não somente respeitar, mas a assumir em espírito de comunhão os diferentes tipos de comunidade e seus respectivos trabalhos. 


Notas :  
(4)   Mais que um sistema filosófico, é um movimento espiritual, típico do século XVIII, caracterizado por uma ilimitada confiança na razão humana, considerada capaz de dissipar as névoas do desconhecido e do mistério, que obstruem e obscurecem o espírito humano, e de tornar os homens melhores e mais felizes iluminando-os e instruindo-os. Surgiu em oposição ao obscurantismo da Idade Média e está na base dos ideais da Revolução Francesa. 
 
(5)   Cf. Constituição Apostólica Sponsa Christi – para promover o Sagrado Instituto das Monjas, de Pio XII, artigo 2.3 : Se a vida contemplativa canônica sob austera disciplina regular não pode ser habitualmente observada não deve tampouco ser concedido o caráter monástico nem conservado onde já existe. Cf. também o Artigo 8.1 da mesma Constituição.



Nenhum comentário:

Postar um comentário