Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Dom Humberto Rincon Fernandez, OSB
Abade do Mosteiro da Epifania, Guatapé, Colômbia
‘Amou-nos até ao fim’ (Jo 13,1)
‘O relato do lava-pés não evoca nada do que costumamos chamar de ‘Eucaristia’, resumido no gesto e nas palavras de Jesus sobre o pão e o vinho. No entanto no 4º Evangelho, a última Ceia, portanto a Eucaristia, é o lava-pés.
Do ponto aos especialistas o cuidado de
aprofundar o debate sobre o que aconteceu, realmente, durante a Ceia : ato
sacramental sobre o pão e o vinho, ou ato profético do lava-pés, como o faziam
os escravos? Li que parece que no começo da vida da Igreja os dois gestos
estavam ligados, e que foi, pouco a pouco, por razões de facilidade que se
privilegiou o do pão e do vinho.
O 1º versículo do cap. 13 do Evangelho de
João é muito solene e muito profundo.
(13,1) ‘Antes da festa da Páscoa sabendo
Jesus que chegara a sua hora, de passar deste mundo para o Pai, ele que amou os
seus que estão no mundo, amou-os até ao fim.’
Estamos antes da festa da Páscoa, e Jesus
prepara a celebração da sua Páscoa. Ele sabe que chegou a hora de passar deste
mundo para o Pai, quer dizer a hora da sua glorificação, a hora de se
manifestar definitivamente, de manifestar totalmente o Pai, de manifestar sua
glória, seu ser, sua essência.
Jesus tinha mostrado ao longo de sua vida
o seu amor pelos seus, mas agora, nesta hora, leva o amor até ao extremo, até
ao fim, até às últimas consequências (até à morte, a morte de cruz, até à morte
de um escravo crucificado).
(13,2) ‘Durante a refeição… (13,4) Jesus
levanta- se da mesa, tira o manto, toma uma toalha com que se cinge (13,5)
derrama água numa bacia e começa a lavar os pés de seus discípulos e a
enxugá-los com a toalha com que estava cingido.’
‘Levanta-se da mesa’, quer dizer abandona
o lugar que é o seu, o lugar de honra. Já tinha dito isso num outro texto do
Evangelho. Quem é o maior? O que está à mesa, ou aquele que serve? Não é o que
está à mesa? Ora eu estou no meio de vós como aquele que serve. (Luc 22, 27)
‘Tira o manto’. São Paulo em Fil. 2, 6 e
seguintes explica assim :
‘Ele que tinha a condição divina, não
considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas
esvaziou-se a si mesmo, assumiu a condição de servo, tornando-se semelhante aos
homens; E achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até à morte e
morte de cruz.’
‘Começa a lavar os pés dos discípulos e a
enxugá-los com a toalha com que estava cingido’ o que significa que faz um
trabalho próprio de escravo e dos servidores da casa, ou das mulheres, nessa
sociedade patriarcal em que os homens ocupam o primeiro lugar. E na lógica do
hino dos Filipenses, é este abaixamento que o faz Senhor, que o leva a ser
exaltado, a receber o Nome, que está acima de todo o nome. Quer dizer que o
leva a ser reconhecido como Filho de Deus, que Deus age assim com os homens, e
que tal é o amor de Deus pelos seus.
(13,8) ‘Pedro diz-lhe : jamais me lavarás
os pés’! Jesus respondeu-lhe : ‘Se eu não te lavar, não terás parte comigo’
(13,9). Simão Pedro respondeu-lhe : ‘Senhor não apenas os meus pés, mas também
as mãos e a cabeça’.
Pedro, por respeito pelo mestre, ou talvez
por falsa humildade, ou talvez por um cálculo premeditado (se me deixar lavar,
ele vai-me pedir para fazer a mesma coisa), recusa o gesto de Jesus. É muito
engajamento! Mas diante da ameaça de Jesus, anunciando-lhe que, sem isso, não
terá parte com ele, quer dizer não teria sua amizade e perderia a relação de
mestre-discípulo, reage e pede para ser todo lavado. Este gesto amoroso do
Senhor parece tocá-lo profundamente.
(13,12) ‘Depois que lhes lavou os pés, retomou
o seu manto, voltou à mesa novamente e lhes disse : ‘Compreendeis o que vos
fiz? Vós me chamais de Mestre e de Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou (13,13).
Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor vos lavei os pés, também deveis lavar-vos
os pés uns aos outros (13,14). Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz,
também vós o façais’ (13,15).
Detalhe notável : Jesus retoma o manto,
mas sem tirar a toalha com que se tinha cingido. Mesmo à mesa, continua servo,
escravo. O fato de ser Senhor e Mestre, não o dispensa de continuar servo.
Depois vem a ordem que corresponde ao
relato do pão e do vinho : ‘Fazei isto em memória de mim’. Esta expressão é
utilizada ao mesmo tempo para o lava-pés e para a refeição da Ceia, a
Eucaristia.
(13,14) Se vos lavei os pés, eu o Senhor e
o Mestre, vós também deveis lavar os pés uns aos outros, pois é um exemplo que
vos dou : o que eu fiz, fazei-o vós também.
Lavar os pés uns dos outros. Tal é o
mandamento. Fazermo-nos escravos e servos do próximo, decorre da participação
da Ceia do Senhor. Dar a vida, como ele fez, até às últimas consequências.
O capítulo continua com o anúncio da
traição de Judas e da negação de Pedro. Desde o começo está bem presente a
possibilidade de que aqueles que participam da Ceia possam trair e negar o Mestre.
Para o Senhor, pouco importa o que possa acontecer; ele continua a convidar-nos
para a sua mesa, a mesa do seu amor e do não se admirar com nada.
Quero voltar ao outro gesto que nos é mais familiar : o do pão e do vinho. Jesus faz uma declaração sobre esses dois elementos. Identifica-se com eles : esse pão sou eu, que me dou por vós. Faço-me pão para ser rompido, partilhado, distribuído. Sou a vida entregue, partilhada. O vinho deste cálice é meu sangue que vai ser derramado para celebrar uma nova aliança. Este vinho é meu sangue derramado, para dar uma vida nova.
E depois encontramos a mesma ordem do
capítulo 13 ‘Fazei isto em memória de mim’. A realização deste ato sacramental
em cada Eucaristia nos compromete tanto como o lava-pés. Comer o corpo do
Cristo e beber o seu sangue compromete-nos a ser, uns para os outros, um corpo
dado, sem nada reter, totalmente; ser sangue derramado engaja-nos a dar a nossa
vida, gota a gota, pelos outros.
Estes dois gestos têm relação com a vida
monástica. A participação na Eucaristia deve traduzir-se na vida concreta de
cada monge e de cada monja, no serviço do lava-pés, simbolicamente não somente
no acolhimento e serviço dos hóspedes, o que é mais fácil, mas no de qualquer
irmão ou irmã com quem partilhamos o mesmo ideal de vida.
Esta coerência entre Eucaristia e vida,
que nos é pedida no acolhimento dos outros, deve ser total, a começar no nosso
mosteiro, na comunidade. Não pode haver acolhimento autêntico do hóspede, sem
uma vida fraterna verdadeira e autêntica no interior da comunidade monástica.
Quer queiramos ou não, os hóspedes percebem isso quando visitam nossos
mosteiros. Muitas vezes só têm contato com o porteiro, o hospedeiro, ou
eventualmente um acompanhante espiritual, mas deixam nas mensagens escritas que
fazem a gratidão para com todos os monges pelo testemunho de vida que dão, sua
atenção, a comunhão fraterna, e também, mais fundamentalmente a relação com o
Senhor, que perceberam nas celebrações e nas atenções discretas que receberam.
Quando acontece serem testemunhas de divisão, de inveja, de maledicência, de
incoerência de vida, percebem-no também. Não ousam expressar isso por escrito,
mas falam e guardam um sabor amargo. É um contra testemunho.
Quando falamos de Eucaristia, falamos de
comunidade. É a comunidade que celebra a Eucaristia. Uma pessoa sozinha, mesmo
sendo padre, não pode celebrar uma Eucaristia (de fato a Apresentação Geral do
Missal Romano (nº 252) exige que haja pelo menos um ministro para assistir o
padre; somente em casos excepcionais e justificados que se pode celebrar sem um
ministro, ou sem um fiel (nº 254). O Ite missa est é um envio no
plural; isto significa que a missão que decorre da participação na Eucaristia,
não é uma missão privada. Isto aplicado ao nosso tema significa que o hospedeiro
ou a hospedeira que representa a comunidade não age como se o cargo fosse coisa
sua. Isto quer dizer, aquele que está de serviço, que age em nome da
comunidade, e não à margem, ou pior contra a comunidade. Em consequência, há
também uma exigência para todos os monges e monjas : como assistem ao
hospedeiro (a), atentos ao que fazem e disponíveis para dar uma ajuda?
O serviço da hospedaria é uma missão dada
pelo superior ou superiora da comunidade. O hospedeiro (a) deve estar em
comunhão com eles e mantê-los a par do que se passa na hospedaria.
São Bento, quando fala do acolhimento dos
hóspedes, no cap.53 da Regra, nos envia ao primeiro gesto que comentamos : o do
lava-pés. No Evangelho, o Cristo, o Mestre, lava os pés dos seus discípulos, seus
irmãos, e convida-nos a lavar os pés mutuamente, como irmãos, a fazermo-nos
escravos e servos do próximo, como ele fez. Na sua Regra, São Bento sublinha um
ponto muito interessante : o hóspede não é somente um irmão, mas o Cristo em
pessoa, que vem nos visitar.
‘Que se recebam todos os hóspedes, que se
apresentam, como ao próprio Cristo, pois ele mesmo disse : fui hóspede e me
recebestes.’
É uma referência ao cap. 25 do Evangelho
de São Mateus (Mt 25, 31-46) sobre o Juízo Final, aonde está dito : ‘Em verdade
vos digo, cada vez que o fizestes a um destes irmãos mais pequeninos, foi a mim
que o fizestes’ (v. 40).
Isto significa para São Bento, que não é
somente o sacramento do Corpo e do Sangue que envia para a missão do serviço do
acolhimento no mosteiro, mas também o sacramento do irmão. Este tema volta
muitas vezes na Regra : o irmão não somente representa o Cristo, mas é o
próprio Cristo que nos vem visitar; é por isso que se deve ter o maior cuidado.
Creio que todos nós fazemos esta
experiência : os hóspedes não são perturbadores, uma coisa que atrapalha e que
devemos suportar na nossa vida monástica. São verdadeiras testemunhas do que
fazemos e do modo como o fazemos, testemunhas da autenticidade do que fazemos,
às vezes distraidamente ou como uma rotina. Eles mesmos nos dão o testemunho da
força de sua fé e do esforço de coerência que tentam ter nas suas vidas, do
modo como lutam na sua vida para ficarem fiéis, levando uma vida corajosa,
lutando para ganhar o pão de cada dia, para gerirem bem sua casa, para serem
responsáveis no trabalho, que não abandonam por qualquer motivo, etc.
Para concluir, gostaria ainda de citar São
Bento. Nesse mesmo cap. 53, ele dá indicações sobre a escolha do hospedeiro.
Como em todas as coisas no mosteiro, este serviço vive-se no temor de Deus,
quer dizer na presença de Deus. Na fé, eu sei que minha vida está sempre
presente a seus olhos. Não para me vigiar e ver minha falha, para me castigar,
mas para me amar com seu olhar e seu amor misericordioso. Sou amado por Deus e
minha vida irradia esse amor nas minhas relações com os outros.
Vivemos tempos difíceis na Igreja, com o
problema dos abusos sexuais sobre menores. Não vou abordar aqui essa questão,
que não é do meu campo, mas gostaria de aproveitar o que o Papa desenvolve a
esse respeito em várias de suas intervenções : o abuso sexual é precedido por
abuso de poder e abuso de consciência.
O monge ou a monja representam uma
realidade muito especial aos olhos dos fiéis e das pessoas que vêm ao mosteiro.
Consideram-nos mais ou menos como santos. E isto cria em nós, inconscientemente
a ideia que somos superiores aos outros. Isso significa ter poder. E a partir
daí podemos cair facilmente no abuso de poder. Podemos aproveitar dos outros,
especialmente dos hóspedes : para cumular carências afetivas, para ter amigos
cheios de solicitude fora do mosteiro, para conseguir, de maneira indelicada,
vantagens econômicas para o mosteiro, para que nos façam presentes, ou que nos
venerem, ou o que é pior ainda, para desviar, em nosso proveito, os dons que os
hóspedes deixam para o mosteiro.
Em tudo isto, cegos sobre o abuso de
consciência, achamos facilmente razões para motivar nosso comportamento. Sou
hospedeiro (a), tenho de ser amável com nossos visitantes, não posso ser frio,
ou seco com ele. Não faço nada de mal (e nada de bem também). Eu também preciso
de compensações. Trabalho bastante para merecer uma recompensa, etc.
Lembremo-nos do que disse : nosso serviço
de acolhimento está fundamentado na Eucaristia. Acolhemos e servimos aqueles
que vêm ao mosteiro, pois queremos oferecer-lhes o humilde serviço de Cristo na
última ceia, queremos dar nossa vida, como Ele. Nós acolhemos o hóspede e todos
os visitantes, pois é a pessoa mesmo de Cristo que vem a nós. E tudo isto o
fazemos com o coração puro, sem outras intenções, pois trata-se do próprio
Cristo, nosso Senhor, que deu sua vida por nós, morrendo e ressuscitando.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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