Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Abadessa de Santa Maria, SP
‘Lendo esta passagem de Mt 19,16-26,
fixemo-nos nas primeiras palavras : ‘Alguém se aproximou de Jesus’ Contemplemos
a diversidade de pessoas que se aproximam de Jesus no evangelho de Mateus e
suas diferentes motivações. Ponhamo-nos em movimento para ir ao seu encontro :
4,3 : o tentador aproxima-se de Jesus para
o pôr à prova;
4,11 : os anjos aproximam-se para o
servir;
8,2 : um leproso aproxima-se para ser
purificado;
8,19-20 : um escriba aproxima-se e
propõe-se seguir Jesus em toda a parte;
13,36 : os discípulos aproximam-se para
perguntar o sentido de uma parábola;
17,14 : um homem aproxima-se para implorar
compaixão para seu filho lunático;
26,7 : uma mulher aproxima-se com o frasco
de alabastro para ungir a cabeça de Jesus;
26,49 : Judas aproxima-se para dar a Jesus
o beijo da morte.
Aqui, em 19,16, alguém se aproxima e
pergunta : ‘Que devo fazer de bom para ter a vida eterna?’ A pessoa que se
aproxima nesta passagem é chamada de ‘alguém’ (eis em grego). Isso
significa que pode ser cada um de nós. No entanto, é alguém que se dirige a
Jesus como ‘Mestre’;
- procura a vida eterna;
- é um jovem;
- observa os mandamentos;
- é sem meias medidas, ainda que se afaste
todo triste porque se vê na impossibilidade de receber a única coisa que lhe
falta…
Não ter nada, somente ‘um tesouro nos céus’
é a lição final.
Olhemos o texto com mais atenção. É
composto por duas cenas distintas, muito estruturadas literalmente :
I. Diálogo de alguém com Jesus
a) Aproximar-se de Jesus (v. 16 a)
b) interrogar Jesus (v 16. b)
c) Receber uma resposta de Jesus (v. 17)
b’) interrogar Jesus (v. 18 a)
c’) receber uma resposta de Jesus (v. 18-19)
b’’) interrogar Jesus (v. 20)
c’’) receber uma resposta de Jesus (v. 21)
a’) afastar-se de Jesus
Este diálogo está enquadrado pela antítese
que expressa um conflito e um combate, fortes, porque tocam um engajamento de
toda a vida e até do ‘pós-vida’. Para O TODO, é pedido tudo :
v. 16 : ‘Aproximar-se’ é o oposto de ‘afastar-se’
(v. 22)
v. 16 ‘Ter a vida eterna’ é o oposto de ‘ter
grandes bens’ (v. 22)
No interior do debate, no v. 21, as
antíteses são numerosas : ir # vir; vender # possuir; dar aos pobres # ter um
tesouro. Estes paralelismos antitéticos são um contraste com a síntese muito
estável do anúncio de Jesus : entrar na vida, entrar no reino dos céus, entrar
no reino de Deus (v. 17.23.24)
O moço está preocupado com o TER; sendo
rico e habituado a possuir tudo, quer, com boa intenção e lógica, possuir a
vida eterna. Jesus apresenta-lhe uma outra realidade : ‘Ser perfeito…seguir-me’
e para isso nada ter. Trata-se de um despojamento total em vista do Absoluto
que o chama. Como sublinha Romano Guardini : ‘Possuir seja o que for, já é ser
rico (…) O que importa é a posse em si mesma’ São Bento nos lembra isto no
capítulo das Boas Obras : ‘Nada preferir ao amor de Cristo’ (RB 4,21). Também
no fim da Regra, como alguém que dá testemunho de ter feito um percurso sério
na vida cristã e monástica, diz : ‘Nada, absolutamente nada preferir ao Cristo,
que nos conduza juntos para a vida eterna’ (RB 72,11-12).
Os mandamentos da lei, expressos sob forma
negativa, mostram já a necessidade de que falte algo, que faz um vazio na vida,
um vazio necessário para uma plenitude : desapegar-se do instinto de matar, de
cometer adultério, de roubar, de fazer um falso testemunho. Paulo Beauchamp
afirma : ‘As proibições do diálogo (decálogo) fazem o vazio diante de um espaço
em que Deus não pede nada’ Nos mandamentos aqui citados concentra-se toda a
Lei.
Então, ‘que me falta ainda?’ (v. 20) ‘Se
queres ser perfeito’ (v. 21). O adjetivo teleios, do verbo teleio,
significa literalmente uma ‘ação realizada até ao fim’, ‘chegada à maturidade’.
Aliás é o que evoca já a raiz da palavra grega que significa ‘mandamento’, entolé:
en toleios, em vista de uma realização. Este moço não chegou ainda à
maturidade, embora observe os mandamentos; ele vive entre um vender e um
possuir, dar aos pobres e ter para si; está no começo do caminho. O fundador do
hassidismo, Baal-Shem-Tov, o rabino do séc. 17, dá-nos esta pérola da tradição
judaica :
‘Eis as palavras que Moisés disse a todos
os filhos de Israel, no além Jordão, no deserto (Dt 1,1) Há os que pensam ter
encontrado a Deus e não o conhecem. Há os que pensam suspirar para Deus de
longe, e Deus está bem perto. Quanto a ti, pensa sempre que estás na beira do
Jordão e que ainda não entraste no país. E se pensas que já observas um bom
número de mandamentos, fica sabendo que ainda não fizeste nada’.
O jovem em todas as suas aproximações e
afastamentos, nos seus numerosos vai e vem, guarda a ilusão de ser cumulado com
seus próprios bens. Não consegue aceitar o vazio, que é o espaço para o outro,
para o Cristo nele.
II – Diálogo de Jesus com os discípulos
a) As palavras de Jesus
1. Dificilmente um rico entrará (v. 23)
2. Mais fácil um camelo passar (v. 24)
b) A pergunta dos discípulos a Jesus : ‘Quem então pode ser salvo?)
a’) As Palavras de Jesus
1. Impossível aos homens (v. 26)
2. Possível a Deus (v. 26)
No coração da antítese – ‘dificilmente…mais
fácil’ – a pergunta dos discípulos jorra como um drama, diz respeito à salvação
: ‘Quem então pode ser salvo?’ (v. 25). ‘Ser salvo’ é uma realidade que aparece
muitas vezes no Evangelho de Mateus, desde o começo. Coloquemo-nos na presença
da pergunta :
– está ligada ao nome de Jesus : ‘O chamará
Jesus, pois Ele salvará o povo dos seus pecados’ (Mt 1,21)
– também pode estar ligada a um perigo : ‘Senhor
salva-nos, pois perecemos’ (Mt 8,25)
– uma doença : ‘Se ao menos tocar na sua
veste, serei salva’ (Mt 9, 21-22).
O que é visado em nossa perícope está
expresso no versículo ‘Aquele que perseverar até ao fim (eis telos) será
salvo (Sotesetai)’ (Mt 10,22). Estamos de novo na perspectiva da
realização, consumação. Nada chegará à realização, fora desta visão. Mas
concretamente para Jesus, ir até ao fim, significa ir até à cruz, a porta pela
qual se entra na vida. A questão é tão séria que Jesus deixa entender que tal
coisa só é possível a Deus. Assim Jesus nos ensina a necessária dependência de
Deus para se ser salvo. O próprio Jesus não se salva sozinho. E, no entanto, é
justamente a isso que o convidam quando ele está na cruz : ‘Salva-te a ti
mesmo, se és Filho de Deus, e desce da cruz’(Mt 27,40). E ainda : ‘Salvou
outros, e não pode salvar-se a si mesmo’ (Mt 27,42).
Jesus, Deus e homem não quis passar sem um
vazio, como diz São Paulo aos Filipenses 2,16 e ss : ‘Ele que era de condição
divina, não se agarrou ao ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, (…) e
como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até à morte e morte
de cruz’. Salvar-se a si mesmo, não é ir até ao fim do despojamento de si
mesmo, é descer da cruz, não precisar dela. E no entanto, essa é a chave do
despojamento, do despossuir-se.
Conclusão
Como nos diz a Carta aos Hebreus, Moisés ‘considerou
a humilhação do Cristo como uma riqueza maior que os tesouros do Egito, pois
ele tinha os olhos na recompensa final’ (Heb 11,26). A tradição judaica nos diz
que Moisés entrou na vida por meio do beijo de Deus. Mesmo se chegarmos a viver
120 anos em diálogo com Deus, nós precisamos, como ele, deixar-nos
corajosamente desinstalar das nossas certezas formais e das nossas ilusões. ‘De
começo em começo’, a caminho, seguindo a Cristo pelo buraco profundo e fascinante,
e pela inovação desta pergunta que nunca se responde ‘Que me falta ainda?’'.
Fonte : *Artigo na íntegra
Nenhum comentário:
Postar um comentário