Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Escavar,
tocar os achados, reencontrar a energia do tempo — mas no trabalho do
arqueólogo cristão não há apenas matéria, há também humanidade : as mãos que
forjaram os objetos encontrados, ‘as mentes que os conceberam, os corações que
os amaram’. Essa é uma das características da arqueologia cristã destacada pelo
Papa na Carta Apostólica sobre a importância da arqueologia, publicada no dia 11
de dezembro, por ocasião do centenário do Pontifício Instituto de Arqueologia
Cristã.
Leia a Carta Apostólica na integra
Tornar o
Mistério visível
Matéria e
mistério : são duas linhas que se cruzam na arqueologia cristã porque ‘o
cristianismo — destaca Leão XIV — não nasceu de uma ideia, mas de uma carne’,
de um ventre, um corpo, um túmulo. A fé cristã se apoia em ‘eventos concretos,
rostos, gestos, palavras pronunciadas em uma língua, em uma época, em um
ambiente. É isso que a arqueologia torna evidente, palpável’. O Papa recorda
ainda que ‘Deus escolheu falar em uma língua humana, caminhar sobre uma terra,
habitar lugares, casas, sinagogas, ruas’. Por isso, em um tempo que recorre à
Inteligência Artificial e investiga galáxias, ainda faz sentido continuar a
investigar. ‘Não se pode compreender plenamente a teologia cristã — escreve o
Papa — sem a inteligência dos lugares e das marcas materiais que testemunham a
fé dos primeiros séculos’.
Nada é
insignificante
A arqueologia
e a teologia se entrelaçam no trabalho do arqueólogo, que deve ter uma
sensibilidade especial ao lidar com ‘materiais da fé’. ‘Escavando entre pedras,
ruínas, objetos — explica o Pontífice — aprendemos que nada do que foi tocado
pela fé é insignificante’. Cada pequena evidência merece atenção, não deve ser
descartada. Assim, a arqueologia se torna ‘uma escola de sustentabilidade
cultural e ecologia espiritual’, de ‘educação para o respeito pela matéria,
pela memória, pela história’. Nada se joga fora, tudo se conserva e se decifra,
porque por trás de cada achado há ‘o fôlego de uma época, o sentido de uma fé,
o silêncio de uma oração. É um olhar — sublinha o Papa — que pode ensinar muito
também à pastoral e à catequese de hoje’.
A arqueologia
aliada da teologia
Com o suporte
de instrumentos tecnológicos cada vez mais refinados, mesmo materiais
considerados irrelevantes podem revelar sentidos profundos. ‘A arqueologia é
também uma escola de esperança.’ Leão XIV recorda que, segundo a Constituição
Apostólica Veritatis gaudium, a arqueologia, junto com a História da Igreja e a
Patrologia, deve integrar as disciplinas fundamentais da formação teológica. A
arqueologia não fala apenas de coisas, mas de pessoas; ajuda a compreender ‘como
a revelação se encarnou na história, como o Evangelho encontrou palavras e
formas dentro das culturas’. Assim, uma teologia que acolhe a arqueologia ‘escuta
o corpo da Igreja, interroga suas feridas, lê seus sinais, deixa-se tocar por
sua história’. É também uma forma de caridade : ‘um modo de fazer falar os
silêncios da história, devolver dignidade a quem foi esquecido, trazer à luz a
santidade anônima de tantos fiéis que construíram a Igreja’.
A missão
evangelizadora
É também
tarefa da arqueologia ajudar a Igreja a guardar viva a memória dos seus
inícios, narrar a história da salvação também com imagens, formas e espaços. ‘Em
um tempo que frequentemente perde as raízes, a arqueologia — afirma o Papa —
torna-se instrumento precioso de uma evangelização que parte da verdade da
história para abrir à esperança cristã e à novidade do Espírito.’ Ao olhar para
o modo como o Evangelho foi acolhido no passado, a arqueologia impulsiona seu
anúncio hoje, ajudando a alcançar os distantes e os jovens que buscam
autenticidade. A arqueologia, destaca Leão XIV, é um ‘poderoso instrumento de
diálogo; pode construir pontes entre mundos distantes, culturas diferentes,
gerações; pode testemunhar que a fé cristã nunca foi uma realidade fechada, mas
uma força dinâmica’.
Memória viva
e reconciliada
Outra força
da arqueologia é fazer perceber o vigor de uma existência que atravessa os
séculos, ultrapassa a matéria e possui relevância específica na teologia da
Revelação. Ela ilumina textos com testemunhos materiais, interroga fontes,
completa-as e abre novas questões. Assim, uma teologia fiel à Revelação ‘deve —
para o Papa — permanecer aberta à complexidade da história’, feita de desafios,
conflitos, momentos de luz e escuridão. Cada aprofundamento do mistério da
Igreja é um retorno às origens : não um culto ao passado, mas ‘memória viva’, ‘capacidade
de fazer o passado falar ao presente’, discernindo o que o Espírito Santo
suscitou na história. Isso gera ‘uma memória reconciliada’, capaz de reconhecer
pluralidade e unidade na diversidade, tornando-se ‘lugar de escuta, espaço de
diálogo, instrumento de discernimento’.
Não um saber
elitista
O Papa
recorda que o Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã foi fundado em 1925
por Pio XI, no Jubileu da Paz; agora o centenário ocorre no Jubileu da
Esperança — coincidência que abre horizontes para uma humanidade ferida por
guerras. A fundação ocorreu em clima incerto, mas com coragem e visão. Ser fiel
ao espírito fundador significa não fechar-se em um saber elitista, mas ‘compartilhar,
divulgar, envolver’. Essencial, portanto, a comunhão com outras instituições
dedicadas à arqueologia, como a Pontifícia Academia Romana de Arqueologia, a
Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra e a Pontifícia Academia Cultorum
Martyrum. Também com o Oriente cristão a arqueologia é terreno fecundo :
catacumbas comuns, igrejas compartilhadas, práticas litúrgicas análogas,
martirológios convergentes — patrimônios que devem ser valorizados
conjuntamente.
Ministério de
esperança
‘A Igreja é
chamada a educar para a memória, e a arqueologia cristã é um dos seus
instrumentos mais nobres. Não para refugiar-se no passado, mas para habitar o
presente com consciência, construindo o futuro com raízes.’ A arqueologia,
portanto, ‘é um ministério de esperança’, porque mostra que ‘a fé resistiu às
perseguições, às crises, às mudanças’, renovando-se, reinventando-se,
florescendo. ‘O Evangelho sempre teve uma força geradora’, e a esperança jamais
falhou. Por fim, o Papa exorta à continuidade desse trabalho precioso,
rigoroso, transmitido com paixão. ‘A arqueologia cristã é um serviço, uma
vocação, uma forma de amor pela Igreja e pela humanidade. Sede fiéis ao sentido
profundo do vosso compromisso : tornar visível o Verbo da vida, testemunhar que
Deus se fez carne, que a salvação deixou marcas, que o Mistério se fez narrativa
histórica.’’
Fonte : *Artigo na íntegra
Nenhum comentário:
Postar um comentário