quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Veja onze países e regiões que representam as maiores crises humanitárias em curso no mundo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Milhares de refugiados atravessam a fronteira para o Chade fugindo da violência no Sudão. (Foto: Aristophane Ngargoune/ACNUR)

*Artigo de Paula Godoy 


‘Nos últimos anos, o mundo tem testemunhado guerras e catástrofes ambientais cada vez mais frequentes, que resultam em crises humanitárias e deslocamentos populacionais forçados. Milhões de pessoas deixaram suas casas, enfrentando a falta de acesso a serviços básicos e a violação de direitos humanos. Alguns casos se tornam mais evidentes, enquanto outros são esquecidos e normalizados.

O futuro parece cada vez mais marcado por uma crescente complexidade e urgência, com conflitos e catástrofes ambientais superando as crises humanitárias ao redor do mundo. De acordo com informações do ACNUR, atualmente cerca de 90 milhões de pessoas deslocadas vivem em países altamente expostos a riscos climáticos, e quase metade de todos os deslocados à força enfrenta uma combinação entre conflitos e os efeitos adversos das mudanças climáticas.

Regiões devastadas por guerras prolongadas revelam que milhões de pessoas terão de continuar fugindo de suas terras natais, muitas vezes em busca de segurança e acesso a serviços essenciais, o que gera uma pressão contínua sobre países vizinhos e comunidades anfitriãs, já vulneráveis. Embora a resposta humanitária seja de grande importância, ela ainda se mostra insuficiente diante da magnitude dos deslocamentos forçados.

Veja abaixo 11 países e regiões nas quais acontecem as maiores crises humanitárias em curso no mundo atualmente :

Sudão

Uma guerra que dura mais de 20 meses gera violência, morte e fome para milhares de pessoas. Mais de 48 milhões de cidadãos sofrem de insegurança alimentar aguda, e 12 milhões sofreram deslocamento forçado, incluindo 9 milhões deslocados internamente e 3 milhões que recorreram a países vizinhos, como o Chade. Mais de 30,4 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária, de acordo com o Panorama Humanitário Global 2025 da ONU. Isso representa 10% da população mundial em situação de carência.

Além disso, as condições precárias atuais potencializam surtos de cólera, malária, dengue, sarampo e rubéola entre os sudaneses, que ficaram com baixo atendimento devido ao fechamento da maior parte dos hospitais, ocasionado pela guerra. A crise também impacta desproporcionalmente mulheres e meninas. Em 2023, mais de 6,7 milhões de pessoas necessitavam de serviços para lidar com a violência de gênero, um aumento de 100% desde o início do conflito. Famílias chefiadas por mulheres enfrentam insegurança alimentar em proporções alarmantes : 64%, contra 48% das famílias lideradas por homens. Mais de 160 mil mulheres grávidas devem dar à luz sem serviços adequados.

De acordo com as Nações Unidas, caso o conflito continue em 2025, o número de pessoas forçadas a fugir do Sudão deverá chegar a mais de 16 milhões, dificultando qualquer atendimento que cumpra com as necessidades básicas de sobrevivência adequada.

Líbano

O conflito que começou em outubro de 2023 já gerou mais de 4 mil mortes, e outras 1 milhão de pessoas foram forçadas a fugir e abandonar suas casas. Além da guerra, o Líbano enfrentou, nos últimos 15 anos, crises que afetaram a estruturação do país. Com histórico de problemas econômicos e instabilidade política, o país passa por dificuldades para se reestruturar. 

Apesar do cessar-fogo, a região ainda sofre com ataques em menor escala. No dia 10 de janeiro, houve um bombardeio israelense por meio de drones em território libanês, causando a morte de duas pessoas. Mais de 125 mil pessoas continuam deslocadas, fora de suas casas, e tentam reconstruir suas vidas. A destruição generalizada afetou a infraestrutura civil, incluindo hospitais, prédios governamentais e estações de água.

A ONU emitiu um apelo, juntamente com o governo libanês, que estima que US$ 371,4 milhões são necessários para atender às necessidades humanitárias básicas da população afetada pelo conflito e pelas demais problemáticas humanitárias do país.

Síria

A guerra civil na Síria, iniciada em 2011, devastou o país. O conflito resultou em mais de 300 mil mortes de civis e deslocou milhões de pessoas. Além do combate entre o governo de Bashar al-Assad e o Exército Sírio Livre, o Estado Islâmico controlou até 70% do território em seu auge. 

Em dezembro de 2024, grupos armados derrubaram o antigo governo. Durante o conflito, mais de 13 milhões de pessoas permaneceram deslocadas dentro da Síria ou em países vizinhos. Entretanto, desde a derrubada do governo anterior, milhares de sírios retornaram ao país voluntariamente, vindos principalmente do Líbano e da Turquia. 

Apesar das estruturas precárias e do rastro de destruição que permanece no país, essa é a maior janela de esperança para o fim da maior crise migratória do mundo. De acordo com a ONU, o legado do conflito inclui 422 mil incidentes com munições não detonadas nos últimos nove anos, que causaram milhares de mortes, metade delas de crianças. Milhões permanecem em condições precárias, enfrentando fome, doenças e falta de acesso à educação.

Ucrânia

Quase três anos após a invasão russa, mais de 12,3 mil civis morreram na Ucrânia, incluindo 650 crianças. A utilização de drones, mísseis de longo alcance e bombas planadoras contribuiu para um aumento de 30% nas mortes de civis entre setembro e novembro de 2024.

A situação humanitária continua crítica, com ataques regulares a infraestruturas urbanas e rurais. A ajuda internacional desempenha um papel vital para mitigar os efeitos do conflito, mas soluções diplomáticas ainda parecem distantes. 

De acordo com o ACNUR, até dezembro do ano passado, eram cerca de 6.813.900 refugiados ucranianos registrados por todo o globo, além de mais de 3,5 milhões que permanecem deslocados internamente. Um reflexo dos quase três anos de guerra.

Afeganistão

A crise humanitária no Afeganistão continua sendo uma das mais severas e complexas do mundo, com impactos devastadores na vida de milhões de pessoas. De acordo com a ONU, até outubro de 2024, cerca de 3,7 milhões de afegãos necessitavam de assistência humanitária, enquanto 3,2 milhões se deslocavam internamente. 

Atualmente, 5,3 milhões de afegãos estão registrados como refugiados em países vizinhos, principalmente no Irã e no Paquistão, que abrigam cerca de 90% dessa população. Entre setembro de 2023 e março de 2024, mais de 531.000 refugiados retornaram abruptamente do Paquistão, após o anúncio de que estrangeiros sem documentos seriam deportados. Esse retorno massivo sobrecarregou os já limitados recursos disponíveis nas comunidades afegãs, que lutam para atender às necessidades básicas desses repatriados. 

Embora o ACNUR tenha prestado assistência a cerca de 94.000 repatriados desde o início de 2023, a capacidade de resposta humanitária ainda é insuficiente frente à escala da crise. 

Crescentes restrições são impostas às mulheres e meninas, que enfrentam severas limitações a seus direitos fundamentais. Em agosto de 2024, foi promulgada uma nova lei sobre a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, que restringe ainda mais a liberdade de movimento, vestimenta e comportamento das mulheres, além de atacar os direitos das minorias religiosas e pessoas LGBTQI+. As restrições também dificultam o acesso à educação e ao trabalho, aumentando a vulnerabilidade econômica das famílias lideradas por mulheres e aprofundando as desigualdades sociais no país.

República Democrática do Congo

A República Democrática do Congo (RDC) atualmente vive com mais de 6,4 milhões de pessoas deslocadas internamente e 1 milhão vivendo como refugiadas ou solicitantes de asilo em países vizinhos, de acordo com o ACNUR. Mais de 940.000 pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas apenas no primeiro semestre de 2024 devido à retomada de confrontos nas províncias orientais da RDC. A precariedade das condições em locais de acolhimento superlotados expõe as populações a riscos de doenças e insegurança. Surtos do vírus mpox foram registrados em 2024, com casos suspeitos entre deslocados, evidenciando a fragilidade do sistema de saúde.

Além disso, mulheres e meninas enfrentam níveis crescentes de violência de gênero. Nos meses de junho e julho de 2023, mais de 10 mil vítimas buscaram assistência apenas nas províncias mais afetadas. A demanda por assistência humanitária atinge níveis críticos, com 25,4 milhões de pessoas necessitando de ajuda em todo o país. Entretanto, os recursos disponíveis não acompanham as necessidades, sobrecarregando comunidades anfitriãs e organizações humanitárias que tentam mitigar os impactos da crise.

Refugiados Rohingya (Mianmar e Bangladesh)

Desde 2017, quando a crise humanitária envolvendo os rohingyas tomou proporções alarmantes, Bangladesh se tornou o principal refúgio para mais de 1 milhão de refugiados que fugiram de Mianmar. Concentrados principalmente em Cox’s Bazar, os campos de refugiados vivem em condições precárias, agravadas por infraestrutura limitada e eventos climáticos extremos, de acordo com dados elaborados pelas Nações Unidas. 

De acordo com o ACNUR, o assentamento de refugiados de Kutupalong abriga mais de 600.000 pessoas em uma área de apenas 13 quilômetros quadrados, impossibilitando um acolhimento de qualidade. A chegada contínua de rohingyas, especialmente após novos conflitos em Mianmar no final de 2023, tem colocado pressão sobre os recursos locais, aumentando as tensões com as comunidades anfitriãs já vulneráveis. Além disso, os desafios de segurança e proteção, como violência de gênero, tráfico e restrições de movimento, afetam gravemente os refugiados.

As mulheres e crianças, que representam a maioria da população refugiada, estão mais expostas à exploração e à violência, enquanto eventos climáticos, como fortes chuvas e ciclones, frequentemente causam deslizamentos, inundações e outros desastres nos assentamentos.

Em Bhasan Char, onde cerca de 36.000 refugiados residem, questões como saúde mental, apoio psicossocial e cuidados maternos permanecem negligenciadas. Apesar dos esforços de Bangladesh e da comunidade internacional, a crescente violência nos campos e os recursos limitados dificultam a assistência adequada aos refugiados.

Os rohingya formam o maior povo apátrida do mundo. Apenas no início de janeiro deste ano, mais de 200 rohingyas desembarcaram na Indonésia, um novo registro para uma onda crescente de chegadas pelo mar. O retorno voluntário, digno e sustentável a Mianmar é apontado como a solução definitiva para a crise, mas as condições no país ainda são desfavoráveis. Enquanto isso, o apoio internacional contínuo é essencial para mitigar os impactos da crise humanitária.

Haiti 

As condições do Haiti expõem mulheres e crianças a situação de violência e fome. No país, até outubro, cerca de metade da população, mais de 5,5 milhões de pessoas precisavam de assistência humanitária, e mais de 700 mil pessoas foram deslocadas, sendo metade crianças que perderam o acesso à educação e vivem em condições precárias e vulneráveis a recrutamento de gangues, de acordo com o ACNUR. 

As mulheres são alvos frequentes de abusos físicos e mentais extremos. De acordo com as Nações Unidas, a violência sexual contra menores, especialmente meninas, aumentou em 1.000% em 2024, comparado ao ano anterior. As gangues têm ampliado seus ataques em todo o território haitiano, desestabilizando ainda mais o controle político e dificultando qualquer tentativa de governança efetiva.

Embora a ONU tenha elaborado planos de resposta para mitigar a crise, o baixo financiamento – apenas 45,7% das necessidades foram atendidas – tornou as iniciativas insuficientes. Como consequência, muitos grupos de ajuda humanitária foram obrigados a evacuar, deixando milhares de pessoas sem assistência básica.

A falta de estabilidade política e governança dificulta a criação de um ambiente propício para a sobrevivência da população. A insegurança alimentar é um dos maiores desafios, afetando mais da metade dos haitianos. Além da escassez de alimentos, há também uma grave falta de água potável, abrigo e medicamentos essenciais.

O Haiti enfrenta ainda condições ambientais severas, com terremotos e outros desastres naturais que agravam o deslocamento interno e forçam muitos a buscar refúgio em outros países. Com as bases políticas, de segurança e direitos humanos fragilizadas, o retorno seguro dos exilados torna-se cada vez mais inviável.

Iêmen

Após quase uma década de guerra, o Iêmen continua acumulando vítimas. De acordo com o ACNUR, mais de 4,5 milhões de pessoas foram deslocadas internamente, e as previsões indicam que cerca de 17,1 milhões devem enfrentar insegurança alimentar este ano.

Apesar da catástrofe humanitária causada pelo prolongado conflito, a região só atraiu maior atenção internacional após os ataques dos rebeldes Houthis a navios no Mar Vermelho no final de 2023, seguidos pela intensificação dos ataques com drones e mísseis em 2024.

Os ataques foram apresentados como um gesto de apoio aos palestinos em Gaza, tendo como alvos os EUA, Reino Unido e Israel. Em resposta, os EUA e o Reino Unido, com o apoio de outros países, lançaram ataques contra alvos Houthis, alegando a necessidade de proteger o ‘livre fluxo do comércio’ na rota estratégica do Mar Vermelho.

Com o aumento dos ataques de mísseis e drones contra Israel, a popularidade dos Houthis cresceu, gerando preocupações constantes para Israel, que continua realizando ataques a portos e aeroportos. Essas ações dificultam o acesso à ajuda humanitária e a itens essenciais para a sobrevivência da população, impactando não apenas os rebeldes, mas todo o país.

Internamente, ainda não há perspectiva de paz, o que perpetua a insegurança alimentar em larga escala. Atualmente, mais de 21,6 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária e serviços de proteção, enquanto cerca de 60 mil buscam refúgio e asilo em outros países.

Palestina 

Desde o início da guerra, em outubro de 2023, mais de 47 mil palestinos perderam a vida em decorrência de ataques israelenses, segundo o Ministério da Saúde do país. O conflito desabrigou grande parte da população da Faixa de Gaza, forçando aproximadamente 90% dos palestinos a abandonar suas casas, que foram destruídas ou danificadas, conforme dados da ONU.

Apesar de já possuir predominância militar no território palestino e dos apelos de cessar-fogo, Israel intensificou os ataques. A Anistia Internacional e a Human Rights Watch acusaram Israel de cometer atos de genocídio. Mesmo com as denúncias, o governo israelense demonstra pouca disposição em buscar uma solução pacífica, deixando claro sua oposição à autodeterminação e ao reconhecimento do Estado palestino. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, foi responsável por bloqueios em acordos que buscavam a paz na região.

A crise em Gaza é agravada por um colapso quase completo dos serviços essenciais. De acordo com a ONU, 50% dos hospitais estão fechados, e os que permanecem abertos operam apenas parcialmente, incapazes de atender casos graves ou doenças crônicas. A insegurança alimentar afeta 91% da população, com milhões vivendo à beira da fome. Além disso, 67,6% das terras agrícolas foram destruídas, comprometendo a produção de alimentos e aumentando a dependência de ajuda externa, que enfrenta severas restrições.

Antes do conflito, Gaza recebia em média 500 caminhões de ajuda por dia útil, mas, desde o início da guerra, a chegada de ajuda humanitária sofreu uma redução significativa, em um momento crítico para a sobrevivência. As ações desumanas promovidas pelo governo israelense, além de impunes, recebem apoio dos EUA, Alemanha, Reino Unido e outras potências ocidentais.

No dia 19 de janeiro deste ano, entrou em vigor um acordo de cessar-fogo mediado no Catar, que prevê uma trégua de 15 meses entre Israel e Hamas. No entanto, o foco dos ataques se deslocou para a Cisjordânia, colocando em risco a vida de refugiados que fugiram dos bombardeios em Gaza e agravando ainda mais os desafios humanitários da região.

Chifre da África

O Chifre da África, enfrenta dificuldades multidimensionais com conflitos armados, intervenções regionais e crises climáticas. Apenas em 2024, cerca de 64 milhões de pessoas precisaram de assistência humanitária, com quase 20 milhões deslocadas em países como Sudão, Somália e Etiópia.

No Sudão, a guerra civil agravou-se após interferência de potências regionais. Os Emirados Árabes Unidos forneceram armas contrabandeadas às Forças de Suporte Rápido (RSF) por meio do Chade, República Centro-Africana e Líbia. Enquanto as Forças Armadas Sudanesas recebem apoio do Egito, Arábia Saudita e Irã. Essa disputa de poder dificulta qualquer avanço nas negociações de paz.

Na Somália as tensões aumentaram após o governo interpretar o interesse da Etiópia em estabelecer porto na Somalilândia como violação da sua soberania. O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, se mostrou disposto a reconhecer a Somalilândia como território independente, sem considerar as objeções da União Africana, uma estratégia de proteção contra a influência da China em Djibuti.

A violência do grupo al-Shabab na Somália, somada a desastres naturais e secas severas, intensifica o deslocamento e a insegurança alimentar, afetando milhões. Enquanto isso, potências regionais perpetuam ciclos de instabilidade, ignorando as necessidades urgentes da população local.

Na África Oriental, a violência extrema ilustra a gravidade da situação. Segundo o ACNUR, há quase dois anos, o ataque terrorista mais mortal da região, liderado pelo al-Shabab, tirou a vida de pelo menos 120 pessoas e deixou outras 300 feridas em Mogadíscio. A dinâmica de poder regional no Chifre da África tem perpetuado ciclos de violência e negligenciado as necessidades de milhões de pessoas afetadas por conflitos e desastres climáticos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://migramundo.com/veja-onze-paises-e-regioes-que-representam-as-maiores-crises-humanitarias-em-curso-no-mundo/

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

“Precisamos de uma formação litúrgica séria e vital”

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Irmão Patrick Prétot, OSB

Abadia de la Pierre qui Vire (França)

 

‘A carta Desiderio desideravi do Papa Francisco, publicada em Roma em 29 de junho de 2022, é um ato importante deste pontificado em termos de liturgia [1]. É certo que ela parece tratar de uma questão específica, a saber, ‘a formação litúrgica do Povo de Deus’, mas, na realidade, ela aborda a questão litúrgica hoje, pois é apresentada pouco mais de 50 anos após a reforma geral solicitada pela Constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II (4 de dezembro de 1963). Sem pretender oferecer um comentário detalhado sobre o texto, o objetivo aqui é introduzir sua leitura, destacando algumas das questões em jogo nesse documento magisterial. Em um cenário de mudanças aceleradas, Desiderio desideravi desvia o foco dos debates ruins em que a Igreja parece ter ficado presa desde a reforma solicitada pelo Concílio Vaticano II [2]. O papa reposiciona a reflexão, por um lado, sobre a formação e, por outro, sobre uma dupla questão à qual ele atribui grande importância.

Por um lado, ele está questionando a capacidade do homem moderno de entrar em um processo simbólico e, portanto, no universo relacional no qual a liturgia cristã se baseia. A publicação, em 17 de julho de 2024, de uma carta ‘sobre o papel da literatura na formação’ é um documento no qual a preocupação do Papa Francisco com a ‘capacidade simbólica’ do homem contemporâneo [3] é expressa com força especial. Na liturgia, a questão é se, e se sim, como a vida litúrgica de hoje pode oferecer um caminho de encontro com Deus.

Por outro lado, o Papa denuncia incansavelmente duas tendências profundamente arraigadas que ele descreve como ‘o veneno do mundanismo espiritual’ : o ‘neopelagianismo’, que tende a enfatizar o trabalho do homem com o risco de transformar a liturgia em uma performance ritual, e o ‘neognosticismo’, que tende a reduzir a liturgia a um conhecimento destinado a uma elite. Nesse ponto, o Papa traz para a Igreja os reflexos do mundo latino-americano, que leva muito a sério os recursos da piedade popular. O treinamento litúrgico que Francisco pretende promover não tem como objetivo principal criar ‘conhecedores’, ou mesmo especialistas em liturgia, mas prestar realmente atenção ao que a liturgia nos dá a experimentar. Poderíamos dizer que é uma questão de formar o ser interior por meio da celebração  e na celebração.

A liturgia : uma preocupação constante do magistério da Igreja

A partir do século XVII, mas especialmente no século XIX e início do século XX, a ciência histórica entrou no campo da liturgia.  Essa abordagem histórica demonstrou amplamente que as práticas aceitas têm uma história e que as instituições mudaram muito, às vezes radicalmente, ao longo do tempo. Com base nisso, não podemos mais falar, de um ponto de vista histórico, de uma continuidade formal entre a Última Ceia de Jesus e a missa, seja a de São Paulo VI ou a de São Pio V. Essa consciência, que hoje muitas vezes não existe, nos levou a reconsiderar a relevância dos legados que herdamos.  E foi nessa linha que, entre 1951 e 1956, o Papa Pio XII decidiu por uma grande reforma da Semana Santa, um passo decisivo para a renovação litúrgica. Mas é claro que a dinâmica de aggiornamento do Vaticano II levaria a um grande projeto de reforma que seria realizado nos anos seguintes ao Concílio. Com um conhecimento muito amplo das fontes, esse trabalho deveria seguir um princípio duplo : um ‘reabastecimento da tradição’ por meio de um retorno a práticas antigas esquecidas (por exemplo, a oração dos fiéis) e uma abertura para inovações de acordo com as necessidades de nosso tempo (por exemplo, o uso de línguas vernáculas). Desse ponto de vista, muitas das ‘inovações’ do Missal de 1970 foram inspiradas e justificadas por práticas antigas, muitas vezes da antiguidade cristã. Esse projeto se beneficiou da atenção constante e vigilante, do apoio e até mesmo do compromisso direto de Paulo VI. Em uma catequese em 19 de novembro de 1969, pouco antes da implementação do novo Missal Romano, ele declarou que a reforma era ‘um ato de obediência’ (ao Concílio) e ‘um passo adiante em sua autêntica tradição’. [4]

Apesar dessas afirmações, no entanto, constatamos uma rejeição dessa reforma, essencialmente realizada sob a autoridade do Papa Paulo VI. O debate foi relançado várias vezes, sem que se vislumbrasse um resultado possível. Está além do escopo deste artigo reconstituir a complexa história da rejeição do aggiornamento litúrgico desde o Vaticano II até o motu proprio Traditionis custodes (16 de julho de 2021), que pôs fim ao regime introduzido por Bento XVI (motu proprio Summorum pontificum, 7 de julho de 2007).

Esse último procurou resolver a oposição à reforma introduzindo um regime duplo para a liturgia : a ‘forma ordinária’, de acordo com os livros litúrgicos revisados, e a ‘forma extraordinária’, de acordo com os livros litúrgicos anteriores à reforma.

As aproximações de linguagem nessa área complexa foram, e ainda são, muito frequentes, com o risco de multiplicar os debates irrefletidos. Falar do ‘Rito Tridentino’ ou do ‘Rito Tradicional’ é contrário ao pensamento de Bento XVI. Ao mesmo tempo em que autorizou amplamente o uso de livros litúrgicos anteriores à reforma, Bento XVI especificou que não é ‘apropriado’ falar de ‘dois ritos’. Além disso, ele afirmou que ‘o Missal publicado por Paulo VI (...) é e obviamente continua sendo a forma normal - a forma ordinária - da liturgia eucarística’, pedindo que ‘em princípio, a celebração de acordo com os novos livros não pode ser excluída’.

Depois de consultar os bispos, Francisco pôs fim a esse regime declarando : ‘Os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano’ (Traditionis custodes, art. 1). Em Desiderio desideravi, como guardião da unidade da Igreja, ele explica mais uma vez sua posição, pedindo que uma compreensão ‘superficial’ e ‘redutora’ do valor da liturgia ou ‘sua instrumentalização a serviço de uma visão ideológica’ não desfigure a celebração da liturgia, que é o ‘sinal da unidade’ e o ‘vínculo da caridade’ (nº 16). Ele resume seu convite a todos em uma frase : ‘A não aceitação da reforma, bem como uma compreensão superficial dela, nos distrai da tarefa de encontrar respostas para a pergunta que repito : como podemos crescer em nossa capacidade de viver plenamente a ação litúrgica? (nº 31) [5]. E, para remediar esses obstáculos, ele propõe dois caminhos, que podemos esperar que contribuam para superar a ferida da Igreja em relação à sua vida litúrgica.

Prestar atenção à liturgia

A ideia é ‘permitir que nos surpreendamos com o que está acontecendo diante de nossos olhos na celebração’ (nº 31). Em um mundo que constantemente captura os sentidos de várias maneiras, a atenção à ação litúrgica tornou-se frágil. Os muitos debates e até mesmo conflitos sobre hinos ou gestos são sintomáticos dessa dificuldade de entrar profundamente na liturgia como um lugar de encontro com o mistério de um Deus que vem ao homem para salvá-lo.

Essa exigência de atenção se baseia na novidade permanente desse encontro. Na liturgia, a repetição de palavras e gestos serve a essa novidade. Para aqueles que estão dispostos a entrar nessa aparente repetição, por exemplo, na oração dos salmos, a novidade vem na forma de uma prontidão para acolher o grande diálogo entre Deus e a humanidade. Pois é o Espírito de Deus que faz novas todas as coisas.

Maravilhar-se com a beleza do Mistério Pascal

O Papa Francisco desenvolve esse caminho de atenção convidando-nos a nos maravilharmos como ‘uma parte essencial do ato litúrgico’ e como ‘uma experiência do poder do símbolo’ (nº 26). Entretanto, essa não é uma abordagem estética : a beleza não combina necessariamente com a riqueza ou a profusão de meios, uma tentação frequente que corre o risco de alinhar as celebrações com as modas de uma sociedade do espetáculo. Nessa linha, o Papa denuncia os dois excessos que impedem que a beleza na liturgia alcance a verdade. Por um lado, ter prazer ‘apenas em cuidar da formalidade externa de um rito’ ou contentar-se ‘com a observância escrupulosa das rubricas’. Por outro lado, há ‘a atitude oposta, que confunde simplicidade com banalidade desleixada, essencialidade com superficialidade ignorante, ou a concretude da ação ritual com um exasperante funcionalismo prático’ (n° 22).

Na realidade, trata-se de maravilhar-se com a beleza da Encarnação e do Mistério Pascal que salva toda a humanidade, a beleza do dom de Deus, porque ‘os esforços para melhorar a qualidade da celebração, embora louváveis, não são suficientes, nem o apelo a uma maior interioridade’. Ainda precisamos acolher a revelação do mistério cristão : ‘O encontro com Deus não é fruto de uma busca interior individual, mas um acontecimento dado’ (nº 24).

Uma formação ‘séria’

O segundo caminho é o da formação : ‘Temos necessidade de uma formação litúrgica séria e vital’ (nº 31). E nesta frase, é preciso sublinhar os adjetivos que qualificam este projeto de formação.

Para colocar-se opostamente os slogans e convicções infundadas, sério se opõe ao diletantismo tão frequente em uma sociedade do Zap. A formação litúrgica requer um esforço contínuo apoiado em trabalhos de qualidade. Assim, só podemos enfatizar a importância de publicações e de periódicos sabendo que as opções nesse campo são diversas e, algumas, opostas. Diante do que se apresenta como um verdadeiro emaranhado de opiniões, a formação em liturgia requer a aquisição de algumas bússolas para não permanecer na confusão e poder entrar numa escuta comunitária, pois não podemos discernir sozinhos.

Uma formação ‘vital’

Para o adjetivo ‘vital’, Francisco nos traz uma marca específica, que ele desenvolveu na carta apostólica Gaudete et exsultate (19 de março de 2018), que propõe um verdadeiro tratado de vida espiritual para o nosso tempo. Ele também nos convida a não nos fecharmos na busca de uma atuação ritual, esquecendo a missão e a vida de caridade. Os pilares da vida cristã não podem ser separados : martyria (proclamar o Evangelho e dar testemunho), diakonia (serviço, especialmente aos pobres e aos pequenos) e leiturgeia (o culto prestado a Deus). Contra a tentação de transformar a liturgia em um meio de evasão, ele nos recorda que a liturgia oferece um caminho, o da vida do Espírito, sem o qual o testemunho se perde na propaganda e a caridade no ativismo.

Falar de ‘formação vital’ é, portanto, vislumbrar uma experiência espiritual. Dizer que somos formados ‘pela liturgia’ significa que esta não é um serviço que avaliamos com critérios subjetivos (o ambiente, a ‘beleza’, os cantos, etc.), mas um caminho de conversão. Enquanto distingue a formação ‘para’ a liturgia (para conhecê-la) e a formação ‘pela’ liturgia (deixar-se formar por ela), ele deixa claro que, se a formação ‘pela’ liturgia é ‘funcional’, a formação ‘para’ a liturgia é a seus olhos ‘essencial’ (nº 34). A prioridade dada a uma pesquisa de ambiente e de uma preocupação para ‘fazer algo’ conduz ao esquecimento deste aspecto ainda essencial : nós somos ‘feitos cristãos’ pela própria liturgia.

Esta realidade se manifesta, antes de tudo, nos sacramentos da Iniciação Cristã seguramente. Mas também dizendo juntos ‘Pai Nosso’, que os fiéis se unem ao Filho de Deus que reza ao Pai do céu. É dizendo juntos ‘Eu creio’, que os fiéis se tornam confessores da fé diante do mundo e por ele. É aclamando ‘mistério da fé’ durante a anamnese que os fiéis confessam a glória do Ressuscitado. É ainda respondendo ‘Amém’ durante a Comunhão que eles ratificam sua vocação de membros do Corpo de Cristo.

Conclusão

Finalmente, o convite a conjugar inseparavelmente formação ‘para’ e formação ‘pela’ liturgia manifesta quanto a atenção (e não o julgamento) deveria ser a atitude primordial. Mas, trata-se de tornar-se atento a um mistério invisível que se percebe através de sinais visíveis. Num mundo de hipercomunicação (onde, no entanto, a relação verdadeira é tão frágil e mesmo tão difícil), surge o convite a manter-se longe da vontade de manipular a liturgia, para transmitir uma mensagem, suscitar uma adesão ou cultivar convicções. Porque se trata, acima de tudo, de comungar desta vida divina que nos é comunicada pela celebração dos mistérios.

 

[1] PAPA FRANCISCO, Carta Apostólica Desiderio Desideravi, 29 de junho de 2022; utilizamos a versão online disponível no site do Vaticano.

[2] Cf. Pio X, Motu proprio Abhinc duos annos, 23 de outubro de 1913, que exprimia esta necessidade não hesitando em falar da necessidade de ‘limpar’ a ‘sujidade’ que se tinha instalado no edifício litúrgico herdado do passado.

[3] PAPA FRANCISCO, Carta sobre o papel da literatura na formação, 17 de julho de 2024.

[4] Cf. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Vicesimus quintus annus para o 25º aniversário da Constituição Conciliar sobre a Liturgia, 4 de dezembro de 1988, nº 4, que elogia o fruto de um ‘trabalho considerável e desinteressado de um grande número de peritos e pastores de todas as partes do mundo’ e, sobretudo, de um funcionamento ‘estritamente tradicional’.

[5] Desiderio desideravi é útil para todos. A falta de formação continua a ser flagrante, mesmo entre aqueles que se referem à reforma do Vaticano II. Os princípios aqui expostos permitem abordar em profundidade a grande questão litúrgica, como fator de unidade e não de divisão (Nota do Editor).

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/127

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Como a criminalização da migração pode se infiltrar em argumentos progressistas contra a colonização da Palestina

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Ato promovido pela ONG Rio de Paz na praia de Copacabana, em repúdio à guerra no Oriente Médio e ao assassinato de milhares de crianças palestinas em Gaza. (Foto: Tânia Rego - Agência Brasil - 3.nov2023)

*Artigo de Flávia Odenheimer


‘Duas das principais pautas da política internacional após a posse do presidente dos Estados Unidos em janeiro deste ano são a migração e a Palestina. Desde o envio de imigrantes para bases militares e a deportação em massa de residentes irregulares nos Estados Unidos até o plano de limpeza étnica de Gaza com a expulsão dos palestinos para outros países árabes, as ações de Trump refletem o fascismo latente dos últimos tempos e que está em clara emersão. E sempre que há fascismo, ainda bem, há luta e resistência. É fundamental àqueles que as compõem saber apontar aquilo que reproduz lógicas de opressão dentro delas. Esse texto é uma tentativa de mostrar, a partir de um caso específico, como o discurso de criminalização da migração pode estar imbuído nos argumentos contra os sistemas de opressão, questionando e complexificando a fala comum de que o problema da ocupação e dos assentamentos na Palestina é que ‘os judeus não são de lá’.

É fundamental àqueles que as compõem saber apontar aquilo que reproduz lógicas de opressão dentro delas. Esse texto é uma tentativa de mostrar, a partir de um caso específico, como o discurso de criminalização da migração pode estar imbuído nos argumentos contra os sistemas de opressão, questionando e complexificando a fala comum de que o problema da ocupação e dos assentamentos na Palestina é que ‘os judeus não são de lá’.

O sionismo é um projeto colonial cujo objetivo claro é tomar a terra de Israel e, retirando o povo palestino e promovendo imigração em massa, criar uma maioria judaica no terrítório, estabelecendo um Estado judeu que supostamente seria a única forma de o povo judeu estar em segurança – a falácia inicial. Este processo se deu a partir da limpeza étnica em 1948 conhecida como Nakba, catástrofe em árabe, que segue até hoje com a ocupação e os assentamentos na Cisjordânia e com o cerco e o genocídio em Gaza. Além disso, dentro do território israelense há um sistema de apartheid no qual pessoas palestinas têm menos direitos do que pessoas judias de qualquer lugar do mundo.

Entendendo ‘Terra de Israel’ e ‘Estado de Israel’

É importante notar que Terra de Israel e Estado de Israel são coisas completamente diferentes. A primeira é uma designação milenar da região, dada à terra onde vivia o povo de Israel, sendo Israel o nome que recebe o patriarca Jacó. Não é um território com fronteiras definidas e não é uma instituição, é apenas a terra sagrada. O povo judeu sempre teve e tem uma conexão muito grande com este lugar.

A segunda é uma invenção do movimento sionista que subverte essa relação do povo judeu com a terra para colonizá-la. O sionismo se utiliza dessa conexão e a deturpa para que o sentimento coletivo seja de que o objetivo do povo judeu sempre foi ter um Estado seu na Terra de Israel. O povo palestino é colocado como quem realmente ‘roubou a terra’ e a criação do Estado seria uma ‘retomada’. Quando na verdade quem expulsou os judeus foram os romanos e os palestinos são originários da Palestina. E a existência de palestinos e judeus no mesmo território não precisam ser coisas mutuamente exclusivas. A Terra de Israel é sagrada para o povo judeu. O Estado de Israel é a deturpação dos valores judaicos. 

Pensando em genealogias milenares, o povo judeu se originou em algum momento da terra de Israel. Isto não significa que todas as pessoas judias têm uma ancestralidade direta com pessoas originárias da região, mas sim que existe uma origem de lá enquanto povo. O que é crucial na história toda é que isso não justifica absolutamente nada. 

A partir da destruição do segundo templo no ano 70, se inicia a diáspora e as comunidades começam a entrelaçar as tradições judaicas com as culturas dos países onde estão. Uma parte do povo judeu continua na Palestina e tem suas histórias e tradições conectadas tanto com a sua religião quanto com a sua cultura local. E, apesar das tentativas de apagamento da existência desta identidade, são judeus palestinos, porque judeu e palestino não são categorias opostas. 

Criminalização da migração

O problema não é que os judeus ‘não sejam da Palestina’. Não que os ashkenazim (judeus da europa central e do leste) não sejam europeus, porque são. Não que os judeus de quaisquer outras partes do mundo não sejam de onde são, porque são. Mas é prejudicial pautar como se todos os judeus não fossem da região, simplificando a questão, e, principalmente, colocar que o problema da questão toda é o ‘ser estrangeiro’.

Isso se cruza com o discurso da criminalização da migração. Esse ver o ‘estrangeiro’ como alguém que não pode estar lá, que veio de outro lugar e por isso não pertence. Colocar o ‘estrangeiro’ como um ser prejudicial, que vem para tomar a terra, que vem para roubar empregos, ou benefícios, ou espaço. 

O problema não é não ser da terra, é estar colonizando, expulsando pessoas, demolindo casas, destruindo comunidades, é o discurso de ‘a terra é nossa porque nós somos os verdadeiros habitantes originais’. Migrar é um direito. O foco da questão nunca deveria estar na migração em si, mas em como ela está acontecendo e ao que ela está atrelada. 

O povo judeu viveu um genocídio e os ashkenazim estavam em uma situação absolutamente fragilizada na Europa. A migração da maioria foi por necessidade. E o movimento sionista se aproveitou disso para fortalecer o seu projeto de construção do Estado judeu na Palestina. Projeto que pressupõe que haja uma maioria judaica no território – ou, para alguns, que ele seja exclusivamente judeu.

Não importa que a justificativa dos próprios sionistas para a construção desse Estado seja a justificativa falaciosa de que podem estar lá porque são ‘originários’, o contra argumento não pode se basear em um discurso enraizado em uma opressão. A luta contra o projeto sionista é fundamental. A luta contra a criminalização da migração é fundamental. E também o é entender os nossos discursos e o que os nossos argumentos realmente estão defendendo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

 https://migramundo.com/como-a-criminalizacao-da-migracao-pode-se-infiltrar-em-argumentos-progressistas-contra-a-colonizacao-da-palestina/

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

A Cátedra de São Pedro: a autoridade e a unidade da Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Lino Rapazzo,

professor


‘No dia 22 de fevereiro, celebra-se a Festa Litúrgica da Cátedra de São Pedro. Para entender o significado dessa expressão precisamos partir da palavra do Evangelho, que cito a seguir : ‘Naquele tempo, ao chegar ao território de Cesareia de Filipe, Jesus perguntou a seus discípulos : ‘No dizer do povo, quem é o Filho do Homem?’. Responderam : ‘Uns dizem que é João Batista; outros, Elias; outros, Jeremias ou algum dos profetas’. Disse-lhes Jesus : ‘E vós, quem dizeis que eu sou?’. Simão Pedro respondeu : ‘Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo!’. Jesus, então, lhe disse : ‘Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos Céus. E eu declaro : tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus : tudo o que ligares na Terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na Terra será desligado nos Céus’’ (Mt 16,13-19).

A resposta de Jesus à profissão de fé de Pedro mostra a função de Pedro e de seus sucessores na Igreja e aponta para a luta que ‘as portas do inferno’ vão provocar contra a Igreja em toda a história, mas, o barco da Igreja e da sua história tem como leme Jesus, Filho de Deus, não há tormentas que façam sucumbir esse barco.

A festa de hoje coloca em evidência a cátedra de São Pedro, ou seja, a missão peculiar que Jesus confiou a Pedro. Essa festa remonta ao século III e nasceu para destacar a ‘cátedra’ de Pedro, lugar onde o Bispo de Roma reside e governa. A cátedra, sede fixa do bispo, encontra-se na igreja-mãe de uma diocese, daí o nome ‘catedral’. Aponta para a missão do bispo, sucessor dos apóstolos, que é chamado a transmitir à comunidade cristã a fé da Igreja.

 Pedro, depois de exercer seu ministério como chefe dos apóstolos em Jerusalém, foi primeiro para Antioquia da Síria e depois para Roma, onde concluiu a sua vida terrena com o martírio. Por esse fim ‘glorioso’ da sua existência, Roma foi considerada sede da cátedra de Pedro.

Nessa linha, a título de exemplo, Santo Agostinho (354-430) escreveu : ‘A instituição da solenidade de hoje recebeu o nome de cátedra dos nossos predecessores, porque se diz que o primeiro apóstolo, Pedro, tomou posse da sua cátedra episcopal. Por esse preciso motivo, as Igrejas honram a origem da sede, que o apóstolo aceitou para o bem das Igrejas’.

 Na Basílica de São Pedro, em Roma, encontra-se a cátedra de São Pedro. Trata-se de um trono de madeira doado em 875 pelo rei dos francos, Carlos, o Calvo, ao Papa João VIII. Está preservado como relíquia dentro de uma grandiosa composição barroca de bronze projetada por Gian Lorenzo Bernini e construída entre 1656 e 1665.

Termino citando as palavras do Papa Francisco, que nos ajudam a entender o significado dessa cátedra de autoridade e de unidade da Igreja : ‘Recordemos que esta é a cátedra do amor, da unidade e da misericórdia, segundo o preceito que Jesus deu ao apóstolo Pedro de não exercer domínio sobre os outros, mas de os servir na caridade’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/a-catedra-de-sao-pedro-a-autoridade-e-a-unidade-da-igreja.html

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O que são os sacramentais na vida cristã

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo da redação da ACI Digital


‘A blogueira católica Jenny Uebbing escreveu um artigo no qual explica o sentido e o uso dos sacramentais na vida cotidiana do cristão.

No blog ‘Mama needs coffee’ de CNA – agência em inglês do Grupo ACI –, Uebbing explica que a palavra ‘sacramental’ é ‘utilizada pela teologia para designar aqueles artigos aparentemente normais, aos quais temos acesso durante nossa batalha contra o mal ao longo de nossa vida’.

Segundo o Catecismo, os sacramentais ‘são sinais sagrados por meio dos quais, imitando de algum modo os sacramentos, se significam e se obtêm, pela oração da Igreja, efeitos principalmente de ordem espiritual’.

‘Por meio deles, dispõem-se os homens para a recepção do principal efeito dos sacramentos e são santificadas as várias circunstâncias da vida’.

Uebbing explicou que, ‘embora a fé da Igreja impregnada nesses elementos comuns (água, sal, ícones, medalhas etc.) é uma bênção eficaz em si mesma, esta só se concretiza plenamente quando combinada com a fé pessoal e uma vida reta e ordenada’.

Fazendo referência ao Evangelho de São João sobre a passagem de Jesus na qual aplica barro nos olhos de um homem para que recuperasse a visão, Uebbing indicou que este milagre ‘não ocorreu por uma superstição ou por qualidades inerentes da matéria, mas pela reação primordial entre a graça de Cristo e a fé do homem’.

A seguir, alguns exemplos de sacramentais propostos pela blogueira católica :

1. Crucifixos

Uebbing assegurou que, ‘com um crucifixo em cada lar, tem-se um poderoso recordatório para todos os que vivem, trabalham e dormem sob o mesmo teto, de que o lar pertence a Cristo’.

‘Não, o crucifixo não é Jesus, mas é sua imagem, representada com amor e destacada proeminentemente’, precisou.

2. Água benta

A blogueira detalhou que ‘cada paróquia deve ter (a maioria tem) uma pia de água benta em cada porta e uma pia principal para o batismo’.

‘Mantenhamos água benta em nossa casa todos os momentos e usemo-la todos os dias para abençoar nosso filhos, seus quartos e nossa casa, sobretudo se alguém está doente ou teve um sonho ruim, ou depois de uma grande festa ou quando muitas pessoas entraram e saíram’.

Jenny assegurou que ‘vivemos em uma falsa dicotomia entre o espiritual e o mundo material neste século, entretanto, o Deus que vem a nós em um pedaço de pão, sem dúvida, confere a graça sacramental através da água’.

3. Sal bento

A autora manifestou que o sal é bom ‘para abençoar as portas e lançar ao longo do perímetro da casa como uma barreira entre a família e o mundo’.

Assinalou que isso também é ‘um ato de fé que reclama a terra, o lar e todo o espaço’ para Cristo.

4. Medalhas

‘Tanto a Medalha Milagrosa como o escapulário são poderosas devoções à Virgem e a Igreja ensina que, usados com fé e em concordância com uma vida de virtude, levará promessas poderosas unidas a eles’.

Finalmente, Jenny Uebbing assegurou que ‘Maria intercederá por nós particularmente no momento da morte, uma vez que Jesus não negará à sua querida mãe tudo o que ela pede’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.acidigital.com/noticia/51234/o-que-sao-os-sacramentais-na-vida-crista?-conheca-alguns-deles


terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Chamados à Esperança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Miguel Oliveira Panão,

professor

 

‘Num mundo marcado por crises sociais, ambientais e espirituais, somos desafiados a refletir sobre o nosso papel enquanto seres humanos, como faróis de esperança. No meio do caos, há uma necessidade urgente de irradiarmos uma luz proveniente do interior para retirar o mundo ao nosso redor da escuridão da indiferença e do desespero. Este é um chamamento universal que se torna ainda mais premente nas periferias, onde habitam aqueles que, muitas vezes, são relegados para as margens da sociedade : os mais frágeis, invisíveis no quotidiano de muitos.

A esperança, porém, não é uma ideia abstrata ou romântica. Ela ganha corpo em ações concretas que transformam realidades. Pensemos, por exemplo, nas redes de solidariedade que se formam espontaneamente nas comunidades desfavorecidas. Em bairros periféricos, onde as condições materiais são escassas, sendo comum encontrar pessoas que partilham o pouco que têm. Seja um prato de comida partilhado com um vizinho, seja o apoio emocional dado àquela mãe solteira que luta para criar os filhos, cada gesto é uma semente de esperança plantada em terreno árido.

Nas periferias urbanas, também encontramos exemplos de resiliência através da educação e da cultura. Projetos comunitários que oferecem reforço escolar, aulas de música ou formação profissional para jovens marginalizados são provas de que o ser humano pode resistir à adversidade. Ao abrir caminhos para um futuro mais digno, essas iniciativas não apenas melhoram a vida pessoal de quem delas participa, mas também regeneram o tecido social de comunidades inteiras.

Na dimensão espiritual, a esperança também se manifesta de forma marcante e transformativa. Nas igrejas, mesquitas ou templos que se erguem nos cantos mais pobres das cidades, encontramos pessoas que, através da fé, encontram sentido e força para enfrentar os pequenos-grandes desafios. Nesses espaços, a espiritualidade torna-se uma fonte de resistência à desumanização. É ali que o coletivo se une, que as vozes silenciadas são amplificadas, que as histórias de sofrimento são compartilhadas e readquirem significado.

Uma boa parte de nós, muitas vezes distantes dessas realidades, somos igualmente chamados a agir. Ser um ser de esperança implica olhar para a periferia – geográfica ou existencial – com olhos de empatia. Implica reconhecer a dignidade do outro e comprometer-se com a construção de um mundo onde ninguém seja deixado para trás. Isso pode significar envolver-se em iniciativas sociais, apoiar organizações que atuam diretamente junto dos mais vulneráveis ou, simplesmente, abrir espaço para ouvir e acolher o próximo.

Ser portador de esperança é acreditar que a transformação é possível, imaginável e concretizável. Como disse o médico Jonas Salk, «a esperança reside nos sonhos, na imaginação e na coragem daqueles que se atrevem a tornar os sonhos uma realidade». Nas periferias do mundo e do coração, a nossa luz interior brilha nos sorrisos e na forma de atos de bondade e gratuidade. O desafio que temos diante de nós é deixar que a fonte dessa luz interior, Deus, brilhe em nós e entre nós, deixando um legado de esperança para as atuais e futuras gerações.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1302/chamados-a-esperanca/