quinta-feira, 5 de julho de 2012

OBLATOS : Entre o Céu e a Terra, Cidadãos do Oitavo Dia (Capítulo 2 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB


São Mauro : primeiro discípulo de São Bento e primeiro oblato


3 – Oblatos à escuta, celebra e vive sua fé
            Procuramos penetrar no sentido do desejo de Deus e sua busca. Procuremos agora compreender como este cristão específico, que escolhe viver a graça batismal guiado pelo Evangelho através da ótica da Regra Beneditina, será marcado por algumas disposições básicas para dar à Igreja, que chama todos a ser discípulos e missionários, sua contribuição específica.
            Afirmar que o oblato é um cristão, como consta no Estatuto (10), faz eco a Santo Agostinho que gostava de dizer : “Pra vós sou bispo, convosco, sou cristão”. Também faz eco ao monaquismo de São Basílio, no século IV, que partia do mesmo princípio : o monge é um cristão. Apenas e tudo. Seu primeiro mestre, o Bispo Eustate de Sebaste, a quem a família de Basílio era fiel, não conseguia manter o movimento monástico nascente em um caminho de equilíbrio. Diante dos desvios que aconteceram na Capadócia, Basílio prefere não usar a palavra “monachus”. Chama suas comunidades de fraternidades, reunidas em torno da escuta da Palavra. Regra para ele é a Sagrada Escritura, sobretudo o Evangelho, linha seguida por todos os Pais da Vida Monástica. Bento tem São Basílio na maior conta e o indica no capítulo 73 da Regra como uma das doutrinas que nos fazem chegar por caminho reto a nosso criador (cf. RB 73, 4-5). Como Basílio, aponta a Sagrada Escritura como norma retíssima da vida humana (RB 73,3). Pede que o monge, “tomando por guia o Evangelho”, procure trilhar os seus caminhos. Assim, em questão de vocabulário, distancia-se de Basílio, mas não em questão de conteúdos. Também para Nosso Pai, o monge é acima de tudo, um cristão. Todo e qualquer capítulo da Regra de São Bento tem como fundamento a Cristo e ao Evangelho, seja citando-o explicitamente, seja como pano de fundo, seja através da indicação de atitudes evangélicas. O “nada absolutamente anteponham a Cristo, que nos conduza juntos para a vida eterna” (RB 72, 11-12) é uma realidade palpável ao longo de toda a Regra.  
            A espiritualidade beneditina é batismal, cristocêntrica. Seu chão é a Sagrada Escritura. O recente Sínodo da Palavra oferece-nos trilhas belíssimas de aprofundamento da realidade viva da Palavra, que não é um livro, mas uma pessoa, um rosto, Jesus Cristo. É o que podemos deduzir da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini. As intervenções dos padres sinodais versaram dominantemente sobre cinco aspectos : fundamentos doutrinais, hermenêuticos, ou seja, de interpretação da Sagrada Escritura, aspectos pastorais, espirituais, aqui a Lectio Divina, e éticos. Temas dominantes, a Homilia, a Lectio Divina, o Testemunho. E se Deus fala, o que é retomado com insistência, uma voz do plenário levanta-se e aponta ser Deus, eminentemente, um Deus que escuta em especial aos que não têm voz, o pobre, o aflito, a viúva. Um Deus que escuta seu povo, como Jesus também ouvirá. Deixemos falar a Exortação : “Mestra da escuta, a esposa de Cristo repete, com fé, também hoje : “Falai, Senhor, que a vossa Igreja Vos escuta”. E aqui é retomada a Encíclica Dei Verbum, que dá uma definição dinâmica da vida da Igreja: “São palavras com as quais o Concílio indica um aspecto qualificante da Igreja: esta é uma comunidade que escuta e anuncia a Palavra de Deus” (VD 51). Continha a Exortação, citando o Santo Padre Bento XVI : “Temos aqui uma advertência que cada cristão deve acolher e aplicar a si mesmo : só quem se coloca primeiro à escuta da Palavra é que pode depois tornar-se seu anunciador”.
            Fácil perceber aqui o profetismo de São Bento, enquanto eco antecipado a esta proposição. Faria eco tanto à escuta quando ao anúncio. Estamos mais acostumados com o aspecto da escuta, por ser a palavra que abre a Regra e nela constituir-se como um fio condutor. Somos convidados a escutar a Deus que nos fala no hóspede, no pobre, no peregrino, no abade, no enfermo, no irmão que cometeu alguma falta. Atitude contínua, desenvolvida pacientemente no debruçar-se diário sobre a Palavra da Escritura, atitude de “entrega” à leitura em determinados momentos do dia (cf. RB 48; 49,4). Lembremos ainda o Prólogo que personifica a Palavra de Deus como aquela pessoa que nos acorda cada dia. Ainda que São Bento não estabeleça normas quanto a um anúncio formalmente compreendido, chama a atenção para a relação entre o “receber e executar” (cf. RB Pról. 1), para a necessidade da coerência, quando pede que se “profira a verdade de coração e de boaca” (RB 4,28), e pede que se “entregue como resposta uma boa palavra, pois a palavra está acima da melhor dádiva” (RB 31, 13-14). O capítulo 66, dos Porteiros do Mosteiro, sobre a relação mosteiro-mundo, é todo marcado pela escuta e resposta, com qualidades especiais de prontidão, maturidade, presença ao outro, temor de Deus, caridade, sabedoria. Pequeno compêndio de missão pelo ser da pessoa já trabalhada pela palavra, como o ancião maduro, que falará por todo o conjunto performativo de sua palavra e expressão não verbal.
            Se algo marca nossa espiritualidade é a importância da Palavra de Deus em nosso itinerário. Desde Antão, jovem rico que fez a virada deste encontro evangélico e o transformou em um encontro feliz, com sequência positiva e de muito fruto. A história monástica é uma continuação no tempo da história da salvação na vida de cada um de nós. Dom Donato Ogliari (11) comenta quanto o impressionou ter o Abade Primaz chamado a atenção de todos os presentes na Conferência Monástica Italiana de que o futuro do monaquismo depende em grande parte da redescoberta do papel central da Lectio Divina pessoal e comunitária, digamos também aqui, familiar e profissional.
            Marca profunda da espiritualidade beneditina é também a Sagrada Liturgia. Trata-se de um “ethos litúrgico”(12), que nos interpela. Como vivemos a liturgia? Como rito apenas? Como Opus? Ou como lugar teologal da proclamação da Palavra que nos constitui no ser? Esta a forma com que a coloca a Exortação Verbum Domini em sua segunda parte, Verbum in Ecclesia. O parágrafo sobre a sacramentalidade da palavra é claro quanto à força performativa do anúncio da palavra na liturgia. Nela a palavra realiza o que significa, opera, age em nosso ser, faz-nos entrar no mistério pascal que trabalha em nós. Mais do que cerimônias, é nosso respirar, que transforma o tempo em tempo litúrgico. A vida celebrada transforma-se em uma peregrinação animada pela palavra. Os mistérios celebrados, os salmos rezados, encarnam-se em nossa humanidade, de modo que cada instante de nossa vida é contemplado, nenhum instante fica fora do mistério da salvação. HOJE, AGORA, é a hora. Note-se que o desejo nos movia para a vida eterna, mas esta tensão escatológica é equilibrada pela gravidade do tempo presente, todo perpassado pela presença de Deus (cf. RB Pról.10.44; cap. 19). Diz-nos a Exortação : “Daqui se compreende, que, na origem da sacramentalidade da Palavra de Deus, esteja precisamente o mistério da encarnação : O Verbo fez-se carne (Jo 1,14), a realidade do mistério revelado oferece-se a nós na carne do Filho”. E o oblato deseja ser oferta a Deus e aos irmãos pela oblação. Continua o texto : “A Palavra de Deus torna-se perceptível à fé através do ‘sinal’ de palavras e gestos humanos. A fé reconhece o Verbo de Deus, acolhendo os gestos e as palavras com que ele mesmo se nos apresenta” (VD 56).


4 – Estabilidade versus Instabilidade
            Outra característica espiritual beneditina é a estabilidade, constitutiva da profissão monástica. Em recente estudo, Madre Cristiana Piccardi OCSO, matriarca do mundo monástico contemporâneo (13), discorre sobre seus vários aspectos, contrapondo-a à instabilidade da sociedade atual. Como conservar e desenvolver a estabilidade, o amadurecimento da pessoa, a duração dos relacionamentos, a perseverança, garantias do domínio da profissão e da arte? Madre Cristiana, depois de interrogar-se por que Bento deseja a estabilidade para seus monges, fala da importância do estar na cela dada pelos pais do deserto, como da perseverança na solidão. Ao percorrer a história da estabilidade, nota Madre Cristiana como o mudar de lugar em nada diminuirá os combates a serem enfrentados e que estarão em nós mesmos. Bento compartilha da doutrina dos padres de Lérins, entre estes, de Cesário de Arles, seu contemporâneo, mas vive em contexto muito diverso. Estar em plena península itálica devastada pelas invasões bárbaras, significa enfrentar uma mudança de época, contexto que já vimos ser semelhante ao nosso e que determinará sua compreensão quanto ao mode de viver a estabilidade.
            Madre Cristiana distingue diversos níveis da estabilidade, o nível humano ou psicológico, o espiritual, o carismático, aqui entendido como patrístico, e, finalmente entra na dimensão esponsal da estabilidade. Destaco aqui o nível espiritual com três aspectos a saber : a luz, o tempo e a dor. A luz é a luz da fé batismal que cresce no seguimento de Cristo e que nos fixa em sua vontade, em um lugar estabelecido por seu amor, em total fidelidade a seu desígnio eterno. Esta luz-fé nos fortalece diante das tentações, impede-nos de vaguear, como vagabundos espirituais, giróvagos da vida, ajuda a conservar-nos centrados em nossa meta, sem buscar paliativos compensadores. Quando falta a luz-fé, pode-se cair com facilidade nas dúvidas, cansaço físico e espiritual, rotina, falta de luz, do infinito em nossa pequenez, somos revestidos de misericórdia e selados no amor.
            Madre Cristiana assinala a importância do tempo como possibilidade de intervenção de Deus, assim experimentado, o tempo torna-se história de salvação, onde se dá a aliança e a realização da promessa. Já abordamos acima. Por fim, encontramos o terceiro nível espiritual da estabilidade, a dor, traduzida em paciência, capacidade de suportar, carregar o cotidiano de nossas vidas com suas surpresas, desafios, na alegria do quarto grau da humildade: “Mas superamos tudo por causa daquele que nos amor” (cf. RB 7,39; Rm 8,37), na certeza de que, partilhando pela “paciência dos sofrimentos de Cristo, mereceremos ser coerdeiros de seu reino” (cf. RB Pról. 50).
            Ao desenvolvermos esta virtude da estabilidade, ofereceremos ao mundo atual a força para vencer a fragmentação do coração que lhe é característica, missão do oblato enquanto oferta aos irmãos. A vivência da estabilidade abrirá para nós e para a humanidade o eterno movimento de amor, do que nunca muda – citação de Dante na Divina Comédia – a perene estabilidade trinitária em eterno movimento de amor.’
---------------------------------------

(10) – Cf. Estatuto - Cap. 1, art. 1
(11) – Id.
(12) – Cf. GIACOMELI, OSBCAM, Gianni, Conferência à Assembleia da CIMBRA, Vinhedo (2009) pro manuscrito.
(13) – Cf. PICCARDI OCSO, Cristina, “Estabilidad-Perseverancia em La dimensión esponsal de la vocación Monástica : respuesta al hombre hoy” in Cuadernos Monasticos 173 (2010) 187-224

Nenhum comentário:

Postar um comentário