quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo V

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


CONFIRMAÇÃO


Na quinta etapa do sermão, o Padre António Vieira, numa visão de caráter particular, prossegue a crítica aos peixes e ao comportamento dos homens :

1º - O Roncador – referência ao ruído que este peixe faz
. simboliza a arrogância, a soberba e o‘muito falar’
          
2º - O Pegador – peixe pequeno que se agarra aos maiores
. simboliza o parasitismo e a adulação
         
3º - O Voador – peixe que cobiça viver no elemento água e no
elemento ar, contrariando sua natureza
. simboliza a presunção e o capricho 

4º - O Polvo – disfarça-se, muda de cor e ataca de emboscada
. simboliza a hipocrisia e a traição


v Todos eles contrapõem-se a Santo António, que era cândido e sincero

v Nosso pregador utiliza como exemplos bíblicos : São Pedro, Santo Ambrósio, São Basílio e o Gigante Golias 

 


Capítulo V

 
'Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa, no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os Roncadores (161) e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o Espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer Roncadores, e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. São Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de Soldados Romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco(162). Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado (163) Pedro (164) que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer, se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no Horto que vigiasse, e vindo daí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado (165): Sic non potuisti una hora vigilare mecum (166). Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, e não pudestes uma hora vigiar comigo? Pouco há tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos Roncadores? Se isto sucedeu ao maior peixe, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.
 
Se as Baleias roncaram, tinham mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas Baleias não seria essa arrogância segura. O que é a Baleia entre os peixes, era o Gigante Golias entre os homens. Se o Rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, Filisteus (167). Quarenta dias contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás (168) roncava de saber: Vos nescitis quidquam (169) Pilatos (170) roncava de poder: Nescis quia potestatem habeo (171)? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmo experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.

Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores (172) se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria (173) se conta que vão seguindo de longe aos Leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes Pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome. Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto (174), depois que os nossos Portugueses o navegaram; porque não parte Vice-Rei ou Governador para as Conquistas, que não vá rodeado de Pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhe matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos Pegadores do mar.

Rodeia a Nau o Tubarão nas calmarias da Linha com os seus Pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro Soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo (175) acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos (176); enfim morre o tubarão, e morrem com ele os Pegadores. Parece-me que estou ouvindo a São Mateus (177), sem ser Apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes (178), diz o evangelista, apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe, que já se podia tornar para a pátria porque eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino: Defuncti sunt enim Qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo Menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes (179), todos os que seguiam e pendiam (180) da sua fortuna. Pois é possível que todos estes morressem juntamente com Herodes? Sim: porque em morrendo o tubarão, morrem também com ele os Pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt Qui quaerebant animam Pueri (181). Eis aqui, peixezinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo António.

Deus também tem os seus Pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem adhaerere Deo Bonum est (182).  Peguem-se outros aos grandes da terra, que eu só me quero pegar a Deus. Assim o fez também Santo António, e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode duvidar, qual dos dois é ali o pegador; e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a António. Mas António também se fez Menor, para se pegar mais a Deus (183). Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é imortal, seguros estão de morrer como os outros Pegadores. E tão seguros, que ainda no caso em que Deus se fez Homem e morreu, só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele. Bem se viu nos que estavam já pegados, quando disse: Si ergo me quaeritis, sinite hos abire (184): Se me buscais a mim, deixai ir a estes. E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor (185), que todas as aves do céu descansavam sobre os seus ramos, e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos; mas também diz, que tanto que foi cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles.

Considerai, Pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O Tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância, que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o Tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o Pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraciados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água (186), e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem no mar.

Com os Voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, Voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois ave, senão peixe, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, Voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros do vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas? Mais ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino (187) que todos. Aos outros peixes do alto, mata-os o anzol ou a fisga (188), a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o Marinheiro dormindo, e o Voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca, ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto. Grande ambição é, que sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vede, peixes, o castigo da ambição. O Voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, Voador, como correu pela posta (189) o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave bem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A Natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o Voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto (190). Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.

À vista deste exemplo, Peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um Voador da terra: Simão Mago (191), a quem a Arte Mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se, que ele era o verdadeiro Filho de Deus, sinalou (192) o dia em que nos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a voar muito alto; porém a oração de São Pedro, que se achava presente, voou mais depressa que ele, e caindo lá de cima o Mago, não quis Deus que morresse logo, senão que nos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés. Não quero que repareis no castigo, senão no género dele. Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, senão os pés? Sim, diz São Máximo (193), porque quem tem pés para andar, e quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut Qui paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset; et Qui pennas assumpserat, plantas amitteret (194). E Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas, para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, Voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro (195) se afogou no Danúbio, não haveria tantos Ícaros no Oceano.

Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e não para cima! Já São João (196) viu no Apocalipse (197) aquela mulher, cujo ornato gastou todas as suas luzes ao Firmamento, e diz que lhe foram dadas duas grandes asas de Águia: Datae sunt mulieri alae duae Aquilae magnae (198). E para quê? Ut volaret in desertum: para voar ao deserto. Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta, grande maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparuit in coelo, mulier amicta Sole (199). Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as de Santo António. Deram-se à Alma de Santo António duas asas de Águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas, que sendo Arca do Testamento (200), era reputado, como já vos disse, por Leigo (201) e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra) imitai o vosso Santo Pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela ou algum costado, encolhei-as para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros.

Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão Polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que São Basílio e Santo Ambrósio. O Polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um Monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma Estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta
hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja Latina e Grega(202), que o dito Polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do Polvo, primeiramente, em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no Camaleão são gala, no Polvo são malícia; as figuras, que em Proteu (203) são fábula, no Polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que o outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado (204), e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas (205)? Não fizera mais; porque nem fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o Polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o Polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O Polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é à luz, para que não distinga as cores. Vê, Peixe aleivoso (206) e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!

Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da Água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo Céu! Lá disse o Profeta por encarecimento (207), que nas nuvens do ar até a água é escura: Tenebrosa aqua in nubibus aeris (208). E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento sempre é clara, diáfana (209) e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor! Vejo, Peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossos mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes (210), ciladas e muito maiores e mais perniciosas (211) traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois o não posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso Pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo (212), fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser Português, não era necessário ser Santo.

Tenho acabado, Irmãos Peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra; Vos estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados (213) e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais (214), que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados e malditos. Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente. Mandou Cristo a São Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele, e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe, e que seja ele o que morra primeiro que os demais? Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis mostrar o Senhor que as penas que São Pedro ou seus sucessores fulminam contra os homens, que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes a seu modo as incorrem, morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessado na garganta. Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é pecado de que o mesmo São Pedro, e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo apressam a sua temporal (215), como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos naufragantes. '
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(161) Roncador : peixe cujo ruído se parece com o de um porco. Vive nas costas de Portugal e é uma espécie de corvina.

(162) João, 18, 10. Servo do pontífice a quem São Pedro na sua impetuosidade cortou a orelha direita, logo curada por Cristo, quando aquele vinha para O prender.

(163) Bravatear, fanfarronar.

(164) O principal discípulo de Cristo e um dos doze Apóstolos.

(165) Gabar.

(166) Marcos, 14, 37



(167) Originários de Kahptor, talvez a ilha de Creta, eram inimigos dos hebreus e contra eles combateram.

(168) Sumo sacerdote, nomeado por Valério em 18 D.C. e destituído no ano 36 por Vitélio. Foi ele quem decidiu da morte de Cristo e presidiu ao Sinédrio que resolveu prendê-lo.

(169) João, 11, 46.

(170) Pôncio Pilatos – 6º procurador Romano da Judeia desde o ano 26 a 36, sob o governo do Imperador Tibério. Embora reconhecesse a inocência de Cristo, permitiu que ele fosse condenado à morte. Para sinal de que estava inocente deste crime, lavou as mãos.


(171) João, 19, 10

(172) Peixe a que alguns dão o nome de Rémora.

(173) Intenção, propósito.

(174) Do mar alto.

(175) Içar, levantar, erguer.

(176) Esforço.

(177) Filho de Alfeu, cobrador de impostos de Cafarnaum, ao serviço de Herodes Antipas. Atribui-se-lhe o primeiro Evangelho.

(178) Herodes Antipas, tetrarca da Galileia e da Pérsia, filho de Herodes, o Grande. Roubou de seu irmão a mulher, Herodíade, fato que motivou uma grande censura de São João Baptista. Por isso, virá a ser decapitado por instigação de Herodíade. Em 38 D.C. Herodes dirigiu-se a Roma com o fim de obter do imperador Calígula, o título de rei, mas acabou deposto do seu cargo e exilado.

(179) Partidários, dependentes.

(180) Depender.

(181) Mateus, 2, 20.

(182) Salmo, 72, 2


(183) Alusão à mais corrente figuração de Santo António, representado com o menino Jesus ao colo.

(184) João, 18, 8 

(185) Um dos mais famosos monarcas de Babilonia, famoso pelas suas conquistas e pelo cativeiro a que sujeitou os hebreus. (605 – 562 A. C.).


(186) A água do batismo.

(187) Mesquinho.

(188) Espécie de arpão em forma de garfo para apanhar peixe.

(189) Vir depressa

(190) Os quatro elementos da natureza, segundo os pensadores antigos eram: o primeiro a terra, o segundo a água, o terceiro o ar e o quarto o fogo.

(191) Conhecido por Mago por se dedicar à prática da magia, atraindo desta forma o povo. Quando São Pedro e São João se dirigem a Samaria para impor o Espírito Santo aos fiéis, Simão Mago pede aos apóstolos que lhe vendam o dom de dar o Espírito Santo. Pelo fato foi repreendido severamente por São Pedro e acabou por se submeter à verdade.
(192) Marcar, indicar.

(193) Teólogo grego e abade do Mosteiro de Crisópolis no séc. VII. Por ter se mantido fiel à sua fé, arrancaram-lhe a língua e a mão direita, tendo sido deportado para o Cáucaso, onde morreu.

(194) São Máximo


(195) Personagem mitológica grega que, ao pretender voar com asas de cera, caiu no mar e aí se afogou, quando as asas derreteram. Filho de Dédalo, inventor do labirinto, na ilha de Creta.

(196) Apóstolo e Evangelista do séc. I, filho de Zebedeu e de Salomé, irmão de Tiago Maior, um dos primeiros discípulos de Cristo. Escreveu o quarto Evangelho do Novo Testamento, bem como o Apocalipse.

(197) Revelação de realidades que por si só são inacessíveis à compreensão do homem. A própria etimologia da palavra relaciona-o com " Escondido, oculto". Foi escrito por São João e termina o Novo Testamento.

(198) Apocalipse, (1), 2, 14

(199) Apocalipse, 12, 1.


(200) Também conhecida por Arca da Aliança entre Jeová e os hebreus. Nela estavam encerradas as Tábuas da Lei, que Moisés recebera no Monte Sinai.

(201) No seu significado teológico o termo Leigo opõe-se ao de Clerical, com funções distintas. Daí falar-se, em apostolado laico, enquanto exercido por pessoas sem ordens clericais.

(202) Também conhecidos por Padres da Igreja, eram elementos do clero regular e secular que se distinguiam na virtude e haviam contribuído para a definição dos dogmas da religião cristã.

(203) Deus marinho da mitologia grega que tinha o poder de se metamorfosear em toda a espécie de animais e elementos. Revelava o futuro apenas àqueles que conseguissem capturá-lo ao meio-dia.

(204) Desprevenido.

(205) Judas Iscariotes, um dos doze apóstolos, a quem estava confiada a guarda do dinheiro daquele grupo. Infiel no seu cargo, veio a atraiçoar o Mestre, vendendo-o aos seus inimigos por trinta moedas de prata. Pouco depois da prisão de Cristo, dominado pelo desespero, enforcou-se.

(206) Pérfido, desleal, perverso, malévolo.

(207) Exagero.

(208) Salmo, 17, 12


(209) Translúcida.

(210) Engano, cilada, traição.

(211) Prejudicial, perigoso.

(212) Cilada, traição.

(213) Costa ou margem cheia de escolhos à flor da água, mais ou menos cobertos segundo as marés.

(214) Notar, considerar.

(215) A sua morte temporal.


 

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