Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Bartolomé Esteban Murillo (1617–1682), domínio público
*Artigo do livro ‘O Evangelho de Paulo’,
de José Maria González Ruiz,
publicado pela Editora Vozes.
‘Eu sou judeu, de Tarso da Cilícia, cidadão de uma
cidade de renome (At 21,39), circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da
tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus. Segundo a Lei, fariseu… Pela
justiça da Lei, considerado irrepreensível (Fl 3,5-6).
Esta
é a ficha que faz Saulo Paulo de si mesmo.
Como
quase todos os judeus que viviam no mundo grego, acrescentara ao próprio nome
judeu – Saulo ou Saul – outro nome grego que, quanto possível, se lhe
assemelhasse foneticamente : Paulos, ou seja, Paulo.
Tarso
era uma cidade culta, mas é de se supor que seus pais, fariseus recém-emigrados
da Palestina, continuaram a estrita observância judia, abstendo-se de enviar
seu filho às escolas gregas. O certo é que, tão logo completados os quatorze
anos, Paulo foi enviado a Jerusalém, para fazer estudos rabínicos na escola
mais ilustre da época : Aos pés de Gamaliel (At 22,3).
Alguns
autores, deixando-se levar por uma fantasia completamente infundada, supuseram
que Paulo, em sua juventude, tenha levado vida licenciosa e, para isto, aduzem
a trágica descrição que, na primeira pessoa, ele mesmo faz, no capítulo 7 da ‘Carta
aos Romanos’.
Todavia,
parece que o que Paulo quer destacar ali não é sua vivência pessoal e
individual, mas a trágica situação do próprio ‘eu’ humano, envolto na desgraça
coletiva de uma pecaminosidade estrutural.
Por
outro lado, temos em suas próprias cartas afirmações sinceras e humildes sobre
a conduta irreprovável que o jovem israelita observou sempre, em sua boa fé.
Fariseu desde jovem (At 26, 3-5), observador das tradições judaicas (Gl 1,14),
irrepreensível em sua conduta (Fl 3,6).
O fariseu de direita –
Hoje, graças às recentes descobertas de Qumrân, estamos em melhores condições
de enfocar histórica e ideologicamente os acontecimentos que deram origem ao
surgimento do cristianismo.
Através
da numerosa literatura religiosa, encontrada às margens do Mar Morto,
conhecemos o estado religioso daquela interessante época.
A ‘direita’
constituíam-na os fariseus, conservadores das velhas tradições de Israel,
inclusive das mais significativas minúcias rituais. Eram integristas e se
consideravam os expoentes autênticos e indiscutíveis das mais puras essências
religiosas e nacionais. Para isto, a ordem religiosa se identificava com a
situação sociológica. Seu sistema se podia qualificar de ‘nacional-judaísmo’.
Não
obstante, apesar de seu alardeado nacionalismo, haviam chegado a um status
quo em suas relações com o poder romano, regendo-se por um
equilibrado modus vivendi que lhes permitia certa estabilidade
e flexibilidade de movimentos.
Todavia,
os fariseus eram somente minoria, ainda que numerosa, do povo israelita. E é
isto que o sensacional achado de Qumrân veio iluminar.
Completamente
à margem da fração farisaica, pululava uma multidão de seitas, uma das quais
denominada, por Flávio Josefo e por Plínio, ‘essênia’.
O
núcleo central deste tipo de seita era constituído por um grupo de homens
célibes, que se retiravam para o deserto, para se dedicarem à vida de oração e
de estudo da Lei. Eram autênticos monges, cujas regras e modos de vida
influíram, sem dúvida, na própria organização do monacato cristão, que nasceu
exatamente naqueles mesmos desertos palestinos e egípcios.
Em
redor dos mosteiros, e espiritualmente ligados a eles, havia numerosos
assistidos, que bem podiam ser comparados às ‘ordens terceiras’ de nossas
grandes ordens mendicantes ou aos ‘sócios benfeitores’ de congregações e
institutos religiosos. Nem sempre viviam ali; iam e vinham fazendo uma espécie
de exercícios espirituais, que vivenciavam no resto do ano.
Pelas
descobertas de Qumrãn, sabemos que ali existiu um grande mosteiro, talvez o
mais importante de todos, e do qual encontramos uma espécie de sucursal em
Damasco, constituída por alguns monges fugidos de Qumrân em época de
perseguição.
A
espiritualidade ‘qumrânica’ era diferente da farisaica. Sem serem abertamente
cismáticos, afastavam-se do legalismo ritual e estreito do culto do templo de
Jerusalém, sobre o qual se encontram finas e veladas críticas em suas regras e
livros ascéticos.
Diante
do orgulho farisaico, professavam uma humildade desconfiada de si mesmos e
fortemente baseada num sentimento de absoluta dependência do Criador.
Finalmente, eram de tendência universalista e aberta aos demais povos não
israelitas.
Saulo
militava abertamente na ala extrema do farisaísmo mais estreito e ortodoxo e,
no círculo intelectual hierosolimitano, assistira mais de uma vez às ásperas
críticas que se faziam freqüentemente àqueles inovadores populares, perigosos
para a ortodoxia.
Quando,
mais tarde, Saulo volta a Jerusalém e se defronta com o problema da nascente
comunidade judeu-cristã, sua indignação chega ao paroxismo. Exatamente os
judeu-cristãos, procedentes do movimento ‘qumrânico’, que, de algum modo,
coincidiam com os que Lucas denominava ‘helenistas’ (At 6,1), foram os que
diretamente se converteram em alvo de suas iras.
Seu
chefe era o jovem levita Estêvão. O discurso do protomártir, que Lucas nos
refere (At 7, 2-53), é farto das idéias centrais do ‘qumranismo’, sublimadas e
superadas numa esplêndida e originalíssima versão cristã.
Decididamente,
Estêvão era um elemento demasiado perigoso e, nas reuniões conciliares da ‘direita’
farisaica, chegou a tomar a decisão de que a própria sobrevivência de Israel
estava gravemente ameaçada e que, por conseguinte, era preciso eliminar, pela
violência, quem assim minava sua própria existência.
Definitivamente,
Estêvão foi apedrejado : única pena que as autoridades nacionalistas podiam
infligir, quando se tratava de um caso declarado de ‘blasfêmia’.
Durante
a macabra execução, os apedrejadores, para ficarem mais livres, puseram suas
vestes aos pés de um jovem chamado Saulo (At 7, 58). O próprio
Paulo orava, mais tarde,
Senhor enquanto era derramado o sangue de tua
testemunha,
Estêvão, eu estava presente, de acordo com eles, e guardava as vestes daqueles
que o matavam (At 22,20).
Saulo
se converteu na peça-chave da primeira perseguição à Igreja nascente, persegui de
morte esta doutrina, acorrentando e encarcerando homens e mulheres (At
22,4). Isto, naturalmente, produziu uma fuga dos cristãos, sobretudo dos da ‘ala
esquerda’, que se refugiaram em Damasco, onde haveria, certamente, cristãos de
tipo ‘qumraniano’. Saulo lutava inteligentemente e dirigiu seus ataques a
Damasco : era preciso impedir decididamente que rebrotasse aquela semente
envenenada. O resto dos judeu-cristãos não foi molestado e pôde permanecer em
Jerusalém.
Caminho de Damasco –
O que aconteceu no caminho de Jerusalém a Damasco, conta-o o próprio Paulo,
simplesmente assim :
Recebi cartas do Sumo Sacerdote e de todo o colégio
dos anciãos para os irmãos de Damasco, aonde fui com o fim de prender os que lá
se achassem e trazê-los acorrentados para Jerusalém, onde seriam castigados.
Ora, estando eu a caminho e aproximando-me de Damasco, pelo meio-dia, de
repente me cercou uma intensa luz do céu. Caí por terra e ouvi uma voz, que me
dizia : ‘Saulo, Saulo, por que me persegues’? Respondi : ‘Quem és, Senhor?’E
ele me disse : ‘Sou Jesus Nazareno, a quem persegues’. Os meus companheiros
viram a luz, mas não ouviram a voz daquele que me falava. Eu disse : ‘O que hei
de fazer Senhor?’ O Senhor me disse : ‘Levanta-te e entra em Damasco, que ali
te será dito o que deverás fazer ‘(At 22,5-10).
Saulo
obedeceu. Era muito difícil o que se lhe exigia. Convertendo-se ao
cristianismo, teria preferido ser recebido pela ‘ala direita’ da ‘seita’, ou
seja, por aqueles que ficaram em Jerusalém e foram tolerados pelo tribunal
fariseu de depuração, de que ele era parte principal. Mas, agora,
ordenava-se-lhe receber o ingresso da ‘seita’ naquele ambiente de Damasco,
plenamente solidário com os ‘helenistas’ (At 6,1), que comandara o odiado
Estêvão. A esta dura renúncia se refere, sem dúvida, quando, depois de fazer
sua própria ficha, acrescenta, cheio de nostalgia pegajosa : Mas tudo isto, que
para mim era vantagem, considero desvantagem por amor de Cristo (FI 3,7).
Esta
transformação dolorosa de sua postura mental constitui indubitavelmente a
infra-estrutura psíquica daquela atitude combativa, às vezes violenta, que teve
que adotar, no seio da comunidade cristã, contra seus antigos correligionários
fariseus, que pretendiam manter, dentro do cristianismo, uma posição
integrista, sufocando a novidade expansiva do Evangelho.
O noviciado do
apóstolo – A princípio, Paulo começou a experimentar sua
vocação apostólica pregando a Jesus nas próprias sinagogas de Damasco. Mas,
pouco depois, se retirou para o deserto, para ali se preparar, na oração, e
quem sabe se uniu a algum grupo monástico judeu-cristão, procedente da ‘Seita
da Aliança’, intimamente aparentada como movimento ‘qumrânico’.
Daqueles
primeiros anos, narra-nos Lucas alguns fatos cruciais do novel apóstolo. Ao fim
de três anos de conversão, subiu a Jerusalém para ‘visitar’ o chefe da Igreja,
Pedro (GI 1,18).
Dali,
voltou a sua cidade natal de Tarso, de onde teve que sair, finalmente, para se
defender de uma conjura, tramada pelos judeus contra ele.
De
Tarso, dirigiu-se Paulo a Antioquia, cuja comunidade florescia, devido, em
parte, à própria perseguição do ex-fariseu. Na verdade, em conseqüência da
rajada de vento anticristã, provocada por Saulo em Jerusalém, muitos cristãos ‘helenistas’
se dispersaram pela Fenícia, Chipre e Antioquia. Estes começaram a pregar a fé.
Posteriormente, os apóstolos de Jerusalém enviaram Barnabé, como delegado
oficial, e este, seguindo uma inspiração do Espírito, associou-se a Paulo, em
sua tarefa apostólica. Por um ano inteiro, Paulo colheu uma messe tão abundante
que o fato transcendeu o grande público e este começou a chamar os fiéis pelo
nome de ‘cristãos’, como eram chamados ‘pompeanos’ ou ‘cesarianos’ os
partidários de algum dos dois rivais do Império.
A
carreira apostólica de Paulo chegara a seu ponto culminante e nele se
realizariam os projetos de Deus, manifestados desde o primeiro momento de sua
conversão : Vai, porque este homem é para mim um instrumento escolhido,
a fim de levar meu nome perante as nações, os reis e os israelitas (At
9,15).
Um
dia, na assembléia litúrgica de Antioquia, o Espírito falou por meio da mesma
comunidade de oração : Separai-me Barnabé e Saulo, para a obra a que os
chamei (At 13,2).’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://franciscanos.org.br/vidacrista/especiais/a-conversao-de-sao-paulo-2/#gsc.tab=0