Por Eliana
Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé
‘É um texto que estou ensaiando para escrever faz tempo. Não somente para defender o papa emérito Bento XVI das várias instrumentalizações em torno da sua figura. Até porque seriam necessárias inúmeras laudas para fazê-lo. Entretanto, chegou a hora de denunciar essa rede de ‘seleção’ de documentos pontifícios que, desmembrados do seu contexto, causam estragos enormes.
Hoje, em particular, falarei sobre a Summorum pontificum, documento de Bento XVI publicado em 2007, através do qual ele autorizou a retomada do rito tridentino, do século XVI. O texto foi publicado a partir da fórmula motu proprio; ou seja, quando o que está escrito expressa um desejo pessoal do pontífice.
Interessante que, a partir daquele período, não por coincidência, começaram a surgir grupos que propunham outras versões a respeito do Concílio Vaticano II. No Brasil, essa proposta de releitura da assembleia foi conduzida por Padre Paulo Ricardo, sacerdote da arquidiocese de Cuiabá que é considerado uma espécie de ‘líder espiritual e intelectual’ desse movimento.
Aos poucos, despontaram autores como o historiador italiano Roberto de Mattei – um crítico ferrenho do concílio –, que é citado frequentemente pelo sacerdote. O mesmo estudioso que, numa entrevista, chamou papa Francisco de ‘cripto-herege’, ou seja, um ‘herege dissimulado’. Desde o ano passado, De Mattei disponibiliza seus conteúdos em português, de modo que o público brasileiro – a quem ele se sente particularmente ligado – tenha acesso ao material. Para quem não sabe, ele se considera ‘um discípulo de Plínio Corrêa de Oliveira’, e exibe isso na descrição de sua página pessoal. Por causa do enorme sucesso no país – devido, em parte, à divulgação de padre Paulo Ricardo – editoras brasileiras já traduzem muitas de suas obras.
A verdade é que essas interpretações, até então ‘inofensivas’, e antigamente mais restritas ao debate acadêmico, começaram a ganhar corpo e a incentivar a consolidação de ‘grupos de resistência pré-conciliar’, formados por leigos, padres e associações católicas. Algo que, nem de longe, Bento XVI pensava promover. O motu proprio de 2007, pelo contrário, visava ser um poderoso instrumento de diálogo. O papa alemão queria manifestar, mais uma vez, a sua ‘hermenêutica da continuidade’, que encontra parte de sua expressão na liturgia católica – e diga-se, não só na romana.
‘Consta, efetivamente, que a liturgia latina da Igreja, nas suas várias formas, em todos os séculos da era cristã impulsionou na vida espiritual numerosos santos e reforçou muitos povos na virtude da religião e fecundou a sua piedade’, disse ele. Nota-se : ‘nas suas várias formas’. Algo que não parecem levar em consideração, ou, intencionalmente, preferem suprimir.
Ora, sendo assim, quem é um promotor exclusivo da celebração da forma extraordinária do rito romano – termo que Bento XVI fez questão de utilizar para diferenciá-la do 'rito vigente' –, desconsidera as reais definições e propostas do documento de Ratzinger.
‘O missal romano promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da lex orandi (norma de oração) da Igreja Católica de rito latino. Contudo o missal romano promulgado por São Pio V e reeditado pelo Beato João XXIII deve ser considerado como expressão extraordinária da mesma lex orandi’.
Por se tratar de uma ‘forma extraordinária’, o pontífice também fez um alerta em relação à frequência de tais celebrações.
‘Se uma comunidade individualmente ou todo um instituto ou sociedade quiser realizar, de modo frequente, habitual ou permanente, tais celebrações, o caso deve ser decidido pelos superiores maiores, segundo as normas do direito e as regras e os estatutos particulares’.
E chegou a dizer que a promoção da missa tridentina não poderia se tornar um instrumento de divisão entre os fiéis :
‘Providencie para que o bem destes fiéis se harmonize com o cuidado pastoral ordinário da paróquia, sob a orientação do bispo, como previsto no cân. 392, evitando a discórdia e favorecendo a unidade de toda a Igreja’.
A intenção foi clara : reaproximar os cismáticos da Fraternidade Pio X, que promovem a liturgia pré-conciliar – entre outras coisas –, e mostrar aos católicos a pluralidade do rito romano; porém, não em detrimento da liturgia pós-conciliar ou novus ordo, que é justamente a forma ordinária do rito romano. Há quem diga que foi uma forma de incentivar os católicos a celebrar melhor o rito aprovado pelo concílio, de modo que ambas as formas de celebração pudessem enriquecer-se mutuamente. E é verdade.
Em 2001, num evento realizado na abadia de Fontgombault (França) – que inclusive contou com a participação do De Mattei, citado acima –, o então cardeal Joseph Ratzinger já refletia sobre a mudança, a qual teria sido feita por ele 6 anos depois, ‘após uma série de estudos e consultas’, como ele mesmo frisou. No entanto, na ocasião – quase que de maneira profética –, ele não escondeu uma certa preocupação com as consequências desse tipo de aprovação, a qual poderia gerar um ‘dualismo litúrgico’ e atritos com a hierarquia católica, esvaziando completamente a natureza da sua proposta.
‘Como conciliar o uso dos dois ritos? [...] Devemos, porém, estudar para ver se é possível consentir e conservar para a igreja o tesouro do antigo missal [...]. Mas há um problema muito real : se a eclesialidade se tornar uma questão de livre escolha, se existirem 'igrejas rituais' segundo um critério de subjetividade, isso pode criar um problema. A Igreja é constituída de bispos sucessores dos apóstolos que atuam em suas respectivas igrejas locais. Portanto, eles agem a partir de um critério objetivo. Estou nesta igreja local e 'não procuro meus amigos', mas encontro meus irmãos e minhas irmãs; não os procuramos, os encontramos. Não é uma igreja 'que eu escolho', mas a que se apresenta a mim. E é um princípio muito importante. Estou na igreja comum, com os pobres, os ricos, os compreensivos, os antipáticos; com intelectuais e estúpidos. Estou na igreja que me precede. Ora, abrir a possibilidade de escolher sua igreja 'à la carte' poderia danificar a estrutura da Igreja’, ressaltou.’
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