quinta-feira, 29 de março de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo IV

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


CONFIRMAÇÃO       


 Na quarta etapa do sermão, o Padre António Vieira, numa visão de conjunto (ou de caráter geral) censura os defeitos dos peixes :
  
v  pelo fato de se comerem uns aos outros, nivelam-se à antropofagia social dos homens
v  e os homens, numa ganância desmedida, exploram seus mortos devorando-os em cadeia alimentar
v  tendo a Sagrada Escritura como base, o orador talha habilmente uma lógica implacável para demonstrar este canibalismo : assim como o pão é o alimento para todos os dias, os pequeninos são o pão quotidiano dos graúdos
v  critica, novamente, a prepotência dos grandes; a vaidade dos homens; o mau comportamento dos parasitas, ambiciosos, hipócritas e traidores
 
Percebam o quanto António Vieira é inigualável ao aguçar e reter o ouvinte, alternando a cadência da pregação, que varia do lento, ao rápido e ao muito rápido. Nas frases longas, o compasso é tranquilo, nas frases curtas, é pungente, permitindo que o sermão flua como o ondular das águas mar.

            No arremate, a cegueira e a ignorância também são defeitos gravíssimos. Por causa de um anzol, os peixes caem no afago da isca e são levados à morte.
 
O que dizer, então, dos homens que se esfolam por causa do hábito de uma Ordem Militar (ordem de Malta, Avis, dentre outras)? Ou quando as embarcações de Portugal chegam às colônias, carregadas de panos e todos se matam para te-los?
Em contraste, cita a humildade de Santo António, que não se deixou enganar pela soberba do mundo. Pobre e sempre discreto, fisgou muitas almas para a salvação.

 
 
 
Capítulo IV
 
 
'Antes, porém, que nos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica (117), peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho (118): Homines pravis, perversisque cupiditatibus facit sunt veluti piscis invicem se devorantes (119): Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o Sertão? Para cá, para cá; para a Cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias (120) se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-de comer.

Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos, e os dos defundos e ausentes; come-o o Médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defundo o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra (121). Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job (122), uando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? (123): Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne? Quereis ver um Job destes? Vêde um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o Meirinho (124), come-o o Carcereiro, come-o o Escrivão, come-o o Solicitador, come-o o Advogado, come-o o Inquiridor, come-o a Testemunha, come-o o Julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.

E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne cognoscent omnes, Qui operantur iniquitatem, Qui devorant plebem meam, ut cibum panis? (125) Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido aqueles que cometem a maldade? E que maldade é esta, à qual Deus singularmente (126) chama a maldade, como se não houvera outra no mundo? E quem são aqueles que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão (127) declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na República, estes são os comidos. E não só diz, que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das Cidades e das Províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come; e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuadamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.

Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganai-vos. Assim como Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas (128), que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos. Assim foi. Mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo, que esses mesmos maiores, que cá comiam os pequenos, quando lá chegam acham outros maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da divina Justiça tão antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram:

 
 Vos quibus rector maris, atque terrae
Jus dedit magnum necis, atque vitae;
Ponite inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid a vobis minor extimescit,
Maior hoc vobis Dominus minatur
(129).

Notai, Peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae. Governador do mar e da terra; para que não duvideis que o mesmo estilo, que Deus guarda com os homens na terra, observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande Doutor da Igreja, Santo Ambrósio, quando, falando convosco disse: Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem (130). Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o Xaréu (131) correndo atrás do Bagre (132) , como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o Tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. É o que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Praedo minoris fit praeda maioris (133). Mas não bastam, peixes, estes exemplos para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos, tem já emparelhada o castigo na voracidade dos grandes.
 
Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que daqui por diante sejais mais Repúblicos (134) e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quanto são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos (135) Não vedes que contra vós se emalham (136) e entralham (137) as redes; contra vós se tecem as nassas (138), contra vós se torcem as linhas, contra vós se dobram e farpam (139) os anzóis, contra vós as fisgas e os arpões (140)? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas adentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim, e sereis felizes.

Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar (141). E de que se sustentam entre vós muitos, que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia (142), e não estatuto (143) da Natureza. Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies de todos se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do Dilúvio, porque tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo Dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na Arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol (144) comum, que Noé lhes repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos (145) foram capazes desta temperança, porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude.

Outra cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando (146), até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida? Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques (147), dos chuços (148) e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca nas pontas desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama Hábito de Malta (149), ou verde, que se chama de Avis (150), ou vermelho, que se chama de Cristo (151) e de Santiago (152), e os homens por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de Hábitos.

Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um Mestre de Navio de Portugal com quatro varreduras (153) nas lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhe passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela (154) e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os Bonitos, ou os que o querem parecer, todos (155) esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra (156) para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento (157). Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho (158), ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pagens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo ano.

Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir, vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia (159) de Cónego Regrante (160), e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.'

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(117) Escandalizar.

(118) Agostinho, Bispo de Hipona que viveu de 354 a 430. Ouvindo em Milão as pregações de Santo Ambrósio, acabou por se converter ao cristianismo, depois de ter levado, durante a juventude, uma vida muito desregrada. Escreveu diversas obras, porém, as mais conhecidas são: As Confissões e A Cidade de Deus. 

(119) Santo Agostinho (N. de V.)


(120) Tribo de Índios brasileiros.
 
(121) Jogo de palavras: toda a terra está com o sentido de "toda a gente".

(122) Deve ter vivido em Hus, na Transjordânia, a sudeste do Mar Morto, no tempo dos Patriarcas. É o símbolo da resignação, porque no meio das maiores calamidades aceitou a providência divina, que ora permite o sofrimento, como castigo dos pecados, ora aperfeiçoa os bons e lhes prova a virtude. Na Bíblia, no Antigo Testamento, consta O Livro de Job.

(123) Job, 19, 22 (N. de V.).

(124) Juíz régio a quem cabia mandar executar as sentenças do soberano.

(125) Salmo, 13, 4 (N. de V.). Trad.: Não compreenderão todos os obreiros do mal que devoram o meu povo como quem come pão.

(126) Especialmente, propriamente.
(127) Senão = mas ainda.

(128) Os "remeiros" das canoas eram Índios.

(129) Séneca, tragédia Thyestes, versos 606-610. Trad.: Vós a quem o governador do mar e da terra / deu o magno direito da morte e da vida, / ponde de lado os rostos inchados e intumescidos; / tudo aquilo que de vós teme o mais pequeno com isso os ameaça o Senhor mais forte.

(130) Santo Ambrósio (N. de V.).

(131) Peixe semelhante ao churréu.

(132) Dois peixes da costa do Brasil.

(133) Santo Agostinho (N. de V.). Trad.: O que aprisiona o mais fraco torna-se presa do mais forte.

(134) Dedicados à coisa ou causa pública.

(135) Alusão à guerra ofensiva dos holandeses na colônia brasileira.

(136) Prender nas malhas, enredar.

(137) Prender a rede às tralhas.

(138) Espécie de cesto de verga afunilado, que se destina a apanhar peixe.

(139) Pôr farpas em, rasgar.

(140) Instrumento que se usa na pesca de peixes grandes.

(141) Era o grande argumento dos colonos a favor da escravização dos Índios.

(142) Tortura, crueldade, desumanidade.

(143) Lei da natureza.

(144) Depósito de provisões alimentares. 

(145) Quente, escaldante.

(146) Abrir e fechar a boca, prestes a morrer.

(147) Espécie de lança antiga terminada em ponta.

(148) Pau armado de aguilhão ou choupa.

(149) Referência ao hábito dos Cavaleiros da Ordem de Malta.

(150) Traje próprio identificativo de uma ordem religiosa ou monástico-militar.

(151) Referência ao hábito da Ordem de Cristo.

(152) Referência ao hábito da Ordem de Santiago.

(153) Restos.

(154) Puxão.

(155) Subentende-se: todos acodem.

(156) Colheita.

(157) Exagero.

(158) Engenho de fazer açúcar.

(
159) Alusão ao hábito dos Franciscanos, a cuja ordem pertenceu Santo António.

(160) Também chamados cônegos regulares. Trata-se de clérigos que, vivendo em comunidade, faziam seus votos religiosos. 


 

sábado, 24 de março de 2012

Canto Gregoriano : influência e vivificação

Por Maria Vanda (Ir. Maria Silvia, Obl. OSB)
                                        
                              Matéria fantástica. Clique e deguste. 



segunda-feira, 19 de março de 2012

Dúvida e Angústia

Por Denis Cabrerizo Silva




                   Desditosa caminhada nossa, pois, mesmo que desconheçamos onde, quando, ou como aportamos neste mundo, sabemos, no entanto, para qual fim seguiremos.

                   Com a sentença acima, da qual me baseio para principiar esta breve análise, gostaria de introduzir uma pequena reflexão no que concerne os mistérios de nossa existência intramundana. Desde os primórdios da raça humana, uma de suas atribuições mais peculiares e de inegável importância – e inclusive uma das características que a distingue das demais formas de vida que caminham ou já caminharam sobre a terra - tem consistido na perquirição sobre a morte e de suas implicações. Com o intuito de mitigar as dores excruciantes advindas com o fim da vida e conferir sentido a uma existência que, necessariamente,  há ter um desfecho trágico, as sociedades humanas não se furtaram de utulizar toda sorte de artifícios, como a elaboração dos mitos e as diversificadas religiões, para atulhar o vazio deixado pela dúvida do que há depois deste lado e assim justificar ou legitimar uma forma de comportamento ético ou racional. Com isso criaram-se inumeráveis crenças na continuidade da vida após o desterro, que, falaciosas ou não, abrandaram, ao menos, a sensação atordoante de que um dia se deixará de existir.

                  Não obstante, com o afluir das inovações no campo tecnológico e com a ascensão da razão e seu uso instrumental, utilizando o termo de um grande pensador e sociólogo alemão, Max Weber ( 1864-1920), procedeu-se ao que se pode denominar, sem exageros e titubeios, “desencantamento do mundo”, em que todo este sistema vigoroso de crenças,  fábulas, estórias mágicas e sobrenaturais, cujas funções remetiam-se a explanação dos fenômenos testemunhados pelo Homem, são sufocadas em detrimento do domínio da razão e da Ciência, como novas formas de explicação racional destes mesmos fenômenos. Todavia, a despeito de todos os avanços científicos e tecnológicos alcançados pelo Homem que sobrepujam os desafios e obstáculos outrora tomados como inatacáveis segundo o seu parecer, um efeito desmedido de alcance, talvez, ainda desconhecido, súbito se interpôs à sua febricitante realidade: o mundo e em igual medida a humanidade defenestraram-se de sua mágica, de seu encantamento enternecedor.
                       Se nos tempos pretéritos, nos quais a fé, a crença e a imaginação assenhoravam-se dos meandros da existência individual e social humanas, havia   um suplício esperançoso pela vida e o descanso eternos e post mortem,  na modernidade e, especificamente, em nossa contemporaneidade, tal clamor esvaneceu-se a ponto crítico, defronte às realizações magnificentíssimas do processo racional e científico que a fé no impossível,  no inexeqüível, na mágica da vida, depurou-se de todos os seus sentidos essenciais, findando por tornar-se uma simples palavra infecunda e inócua. E pior, ao passo que nos tempos de outrora à indagação “por que e para que sofrer ou existir” despontava uma resposta amenizadora, ainda que claudicante ou infensa à realidade, nos tempos de agora encontramo-nos reduzidos a uma angústia incomensurável e arrebatadora em virtude, por um lado, de não mais acreditarmos na crença e, por outro, de não acharmos, segundo os novos meios, uma resposta satisfatória ao mesmo perquirir persistente. Em suma, agora  deparamo-nos reduzidos em nossa aterradora impotência, face ao desalento de uma razão e de uma Ciência insuficientes para atender-nos no que tange à solução dos mistérios da existência;  no que diz respeito a factibilidade de fazer menos torturante, a angústia de existir, isto é, a angústia gerida da necessidade de se ter certeza de que se acertou na escolha e da necessidade de que sempre se terá que optar, a todo instante que permeia nossa existência, entre decidir se a vida vale a pena ser vivida ou que talvez seja melhor arrefecê-la finalmente. Assim, desprovidos da crença e da fé, lançados a nós mesmos, não nos resta senão reelaborar-nos a todo o momento.
                     Destarte, ao se debruçar sobre a proclamação que principia este pequeno monólogo, aqui não se tenciona maldizer toda a Ciência e a Razão humanas, porquanto tenham estas contribuído enormemente com primores tais ao desatino da humanidade, que hoje se encontra ela em todo seu esplendor de facilidades materiais mundanas e outros avanços inestimáveis à consecução e preservação de sua saúde; mas, antes, o que se intenta levar a efeito aqui é compelir você, caro leitor, a nunca se furtar do sonho, da mágica, da imaginação e, principalmente, da fé de que há um sentido para a vida, um porquê, uma finalidade transcendente que, senão explicada pela Ciência, pode ainda preencher este vazio que corresponde ao absurdo de existir.
                     Portanto, a fim de rematar, sem mais devaneios, esta análise e esta reflexão, eis um pequeno trecho que, não obstante seus mais de quatrocentos anos, fez-se, indizivelmente, adequado a sua época e ainda o é, a nossos tempos, no que se refere à mencionada angústia da existência:
Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre

Em nosso espírito sofrer pedras e setas

Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,

Ou insurgir-nos contra um mar de provações

E em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.

Dizer que rematamos com um sono a angústia

E as mil pelejas naturais herança do homem:

Morrer para dormir... é uma consumação

Que bem merece e desejamos com fervor.

Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:

Pois quando livres do tumulto da existência,

No repouso da morte o sonho que tenhamos

Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita

Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.

Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,

O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,

Toda a lancinação do mal-prezado amor,

A insolência oficial, as dilações da lei,

Os duetos que dos nulos têm de suportar

O mérito paciente, quem o sofreria,

Quando alcançasse a mais perfeita quitação

Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,

Gemendo e suando sob a vida fatigante,

Se o receio de alguma coisa após a morte,

–Essa região desconhecida cujas raias

Jamais viajante algum atravessou de volta –

Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?

O pensamento assim nos acovarda, e assim

É que se cobre a tez normal da decisão

Com o tom pálido e enfermo da melancolia;

E desde que nos prendam tais cogitações,

Empresas de alto escopo e que bem alto planam

Desviam-se de rumo e cessam até mesmo

De se chamar ação (...).

(Hamlet, William Shakespeare)

quarta-feira, 14 de março de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo III

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


CONFIRMAÇÃO     
 

 Na terceira etapa do sermão, o Padre António Vieira confirma o louvor aos peixes, mas de caráter particular :
  
v critica a prepotência dos grandes, a vaidade dos homens, o mau comportamento dos parasitas, ambiciosos, hipócritas e traidores 

v de modo sagaz, enaltece a virtude dos peixes e a relação com o divino, enquanto os homens nem dão valor a isto; desta forma, ao glorificar a conduta dos peixes, ressalta o vício dos homens.
 

             Delineia a imagem, a ação e o significado de quatro peixes :

            1º - O Santo Peixe de Tobias o fel de suas entranhas, ao curar a cegueira, e seu coração, ao expulsar os demônios, exortam o poder purificador da Palavra de Deus        

2º - A Rémora a língua desse peixe pequenininho, dotado de imensa força, domina a cólera das paixões humanas ao impedir o avanço das naus Soberba, Cobiça, Vingança e Sensualidade; em contrapartida, ao prender-se num navio e pilotá-lo sozinha, representa o poder da Palavra difundida pelo condutor de almas (ou pregador), assim como o fez Santo António           

3º - O Torpedoutiliza as descargas elétricas para se defender, mas também para ‘tremer’ os pescadores; exprime a soberania da Palavra de Deus ao ‘tremer’ (converter) os mesmos homens que, em  terra, ‘pescam’ (metáfora aplicada à  guerra) inúmeras cidades e reinos sem que ninguém ‘trema’   

4º - O Quatro-olhos enquanto uma parelha de olhos contempla acima (defendendo-se de inimigos do ar, como as aves), outra parelha de olhos observa abaixo (defendendo-se de inimigos do mar); simboliza a incumbência do homem de retirar seus olhos das vaidades do mundo, ao fitar o céu...sem esquecer o inferno.
 

Embora os peixes não possam ir ao céu nem ao inferno, alimentam a todos :

. os ricos (através do salmão)

. os pobres (através da sardinha)
. os que almejam o âmbito celestial, tais como religiosos e leigos que se abstêm de carne na Quaresma e  
            . os que celebram, na Páscoa cristã, a ressurreição de Jesus Cristo.




Capítulo III 

 
'Este é, peixes, em comum o natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou o parabém, não sem inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se houvera de discorrer pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez admirável em cada um de vós. De alguns somente farei menção. E o que tem o primeiro lugar entre todos como tão celebrado na Escritura, é aquele Santo Peixe de Tobias (71), a quem o texto sagrado não dá outro nome, que de grande, como verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que só consiste a verdadeira grandeza. Ia Tobias caminhando com o Anjo São Rafael (72), que o acompanhava, e descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um rio, eis que o investe um grande Peixe com a boca aberta em acção de que o queria tragar. Gritou Tobias assombrado (73), mas o Anjo lhe disse que pegasse no Peixe pela barbatana e o arrastasse para terra; que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Fê-lo assim Tobias, e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele Peixe que lhe mandara guardar, respondeu o Anjo que o fel (74) era bom para sarar da cegueira, e o coração para lançar fora os demónios: Cordis ejus particulam, si super carbones ponas, fumus ejus extricat omne genus Daemoniorum: et fel valet ad ungendos oculos, in quibus fuerit albugo, et sanabuntur (75).
 
Assim o disse o Anjo, e assim o mostrou logo a experiência, porque sendo o Pai de Tobias cego, aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno (76) do fel, cobrou inteiramente a vista; e tendo um Demónio chamado Asmodeu (77) morto sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo Tobias, e queimando na casa parte do coração, fugiu dali o Demónio e nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a cegueira a Tobias, o velho, e lançou os Demónios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão bom coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará muito? Certo que se a este Peixe o vestiram de burel (78) e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de Santo António. Abria Santo António a boca contra os Hereges, e enviava-se a eles (79), levado do fervor e zelo da Fé e glória divina. E eles que faziam? Gritavam como Tobias e assombravam-se (80) com aquele homem e cuidavam que os queria comer. Ah homens, se houvesse um Anjo que revelasse qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vos amarga, quão proveitoso e quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis esse peito e lhe vísseis as entranhas, como é certo que havíeis de achar e conhecer claramente nelas que só duas cousas pretende de vós, e convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os Demónios fora de casa. Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos Demónios, perseguis vós ?! Só uma diferença havia entre Santo António e aquele Peixe: que o Peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não queriam lavar (81). Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes.
 
Passando da Escritura ao da História natural, quem haverá que não louve e admire muito a virtude tão celebrada da Rémora (82)? No dia de um Santo Menor (83) , os peixes menores devem preferir aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que, não sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma Nau da Índia, apesar das velas e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera uma Rémora na terra, que tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos haveria na vida, e que menos naufrágios no mundo! Se alguma Rémora houve na terra, foi a língua de Santo António, na qual, como na Rémora, se verifica o verso de São Gregório Nazianzeno (84) : Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit (85). O Apóstolo Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola (86), compara a língua ao leme da Nau e ao freio do cavalo. Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da Rémora, a qual, pegada ao leme da Nau, é freio da Nau e leme do leme. E tal foi a virtude e força da língua de Santo António. O leme da natureza humana é o alvedrio (87), o Piloto é a razão; mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde mostrou a língua de António quanta força tinha, como Rémora, para domar e parar a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo Fortuna na Nau Soberba (88), com as velas inchadas do vento e da mesma Soberba (que também é vento), se iam desfazer nos baixos (89), que já rebentavam por proa, se a língua de António, como Rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro?
 
Quantos, embarcados na Nau Vingança (90), com a artilharia abocada (91) e os bota-fogos (92) acesos, corriam enfunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique, se a Rémora da língua de António não detivesse a fúria, até que composta a ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando na Nau Cobiça (93), sobrecarregada até as gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos Corsários com perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de António os não fizesse parar, como Rémora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto? Quantos, na Nau Sensualidade (94), que sempre navega com cerração, sem Sol de dia, nem Estrela de noite, enganados do canto das Sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Cila, ou em Caríbdis (95), onde não aparecesse Navio nem navegante, se a Rémora da língua de António os não contivesse, até que esclarecesse a luz, e se pusessem em via? Esta é a língua, peixes, do vosso grande Pregador, que também foi Rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira (96)) se vêem e choram na terra tantos naufrágios.

Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos chamaram Torpedo (97). Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando na isca o Torpedo, começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável feito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador. Com muita razão disse, que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhe pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto, e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer? Pudera-se fazer problema: onde há mais pescadores e mais modos e traças (98) de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra pescam as varas, (e tanta sorte de varas), pescam as ginetas (99), pescam as bengalas (100), pescam os bastões (101) e até os ceptros (102) pescam, e pescam mais que todos, porque pescam Cidades e Reinos inteiros. Pois é possível que pescando os homens cousas de tanto peso, lhe não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer. Vinte e dois pescadores destes que se acharam acaso a um Sermão de Santo António, e as palavras do Santo os fizeram tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se lançaram a seus pés, todos, tremendo, confessaram seus furtos, todos, tremendo, restituíram o que podiam (que isto é o que faz tremer mais neste pecado que nos outros) todos enfim mudaram de vida e de ofício, e se emendaram.

Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não sei se foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera. Navegando de aqui para o Pará (que é bem não fiquem de fora os peixes da nossa costa), vi correr pela tona de água de quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os Portugueses lhe chamavam Quatro-Olhos (103), quis averiguar ocularmente (104) a razão deste nome, e achei que verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade (105) de sua divina Providência para contigo; pois às Águias, que são os linces (106) do ar, deu somente dois olhos, e aos Linces, que são as águias da terra, também dois; e a ti, peixezinho, quatro. Mais me admirei ainda, considerando nesta maravilha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus juízos!

Filosofando, pois, sobre a causa natural desta Providência, notei que aqueles quatro olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como os dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior olham direitamente para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo. E a razão desta nova arquitectura, é porque estes peixezinhos, que sempre andam na superfície da água, não só são perseguidos dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a Natureza as sentinelas e deu-lhes dois olhos, que direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes. Oh que bem informara estes quatro olhos uma Alma racional (107), e que bem empregada fora neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele peixezinho, ensinando-me que, se tenho Fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno.
 
Não me alegou (108) para isso passo da Escritura; mas então me ensinou o que quis dizer David em um, que eu não entendia: Averte oculos meos me videant vanitatem (109). Voltai-me, Senhor, os olhos para que não vejam a vaidade. Pois David (110) não podia voltar os seus olhos para onde quisesse? Do modo que ele queria, não. Ele queria voltados os seus olhos, de modo que não vissem a vaidade, e isto não o podia fazer neste mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste mundo tudo é vaidade: Vanitas vanitatum, et omnia vanitas (111). Logo, para não verem os olhos de David a vaidade, havia-lhos de voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para o outro mundo em ambos seus hemisférios; ou para o de cima, olhando direitamente só para o Céu, ou para o de baixo, olhando direitamente só para o Inferno. E esta é a mercê que pedia a Deus aquele grande Profeta, e esta a doutrina que me pregou aquele peixezinho tão pequeno.

Mas ainda que o Céu e o Inferno se não fez para vós, irmãos peixes, acabo, e dou fim a vossos louvores, com vos dar as graças do muito que ajudais a ir ao Céu e não ao Inferno, os que se sustentam de vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas e os Buçacos (112), e todas as santas famílias, que professam mais rigorosa austeridade; vós os que a todos os verdadeiros Cristãos ajudais a levar a penitência das Quaresmas; vós aqueles com que o mesmo Cristo festejou a sua Páscoa, as duas vezes que comeu com seus Discípulos depois de ressuscitado. Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos os banquetes dos ricos, e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência dos justos. Tendes todos quantos sois tanto parentesco e simpatia com a virtude, que, proibindo Deus no jejum a pior e mais grosseira carne, concede o melhor e mais delicado peixe. E posto que (113) na semana só dois se chamam vossos (114), nenhum dia vos é vedado. Um só lugar vos deram os Astrólogos entre os Signos celestes, mas os que só de vós se mantêm na terra, são os que têm mais seguros os lugares do Céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento, cuja fecundidade entre todos é própria do Espírito Santo: Spititus Domini faecundabat aquas (115).

Deitou-vos Deus a benção, que crescêsseis e multiplicásseis; e para que o Senhor vos confirme esta bênção, lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio. Entendei que no sustento dos pobres tendes seguros os vossos aumentos. Tomai o exemplo nas irmãs sardinhas. Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são sustento de pobres. Os Solhos e os Salmões são muito contados, porque servem à mesa dos Reis e dos poderosos; mas o peixe que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo o multiplica e aumenta. Aqueles dois peixes companheiros dos cinco pães do Deserto, multiplicaram tanto, que deram de comer a cinco mil homens (116). Pois se peixes mortos, que sustentam a pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor o farão os vivos! Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a sua benção.'


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(71) Filho de Tobias, o Velho, ou Tobite, judeu fiel à lei e que no fim da vida veio a cegar. Em Ecbátana vive Sara, filha de um parente que casou sucessivamente com sete maridos, todos fulminados no dia do casamento. Deus intervém através do Anjo Rafael. Tobias cura a cegueira do pai, expulsa o demónio de Sara e casa com ela.  

(72) Um dos sete anjos que estão na presença do Senhor. Enviado à terra para acompanhar o jovem, Tobias, com poder sobre as doenças e os demónios.

(73) Aterrado, espantado, assustado.

(74) Bílis ou vesícula biliar, típica pelo seu amargor.

(75) Tobias, 6, 8 (N. de V.). Trad.: Se puseres um pedaço de coração deste [peixe] sobre brasas, o seu fumo afugenta todo o gênero de demonios; o fel serve para ungir os olhos em que houver belida e sararão.

(76) Um pouco de fel. Saliente-se a expressão partitiva frequente em antigo Português.  


(77) Nome do demonio que matou no dia do casamento sete maridos dados a Sara, filha de Raquel. Tobias, queimando o coração e o fígado dum peixe, afugentou-o para o deserto.

(78) Tecido grosseiro de lã que servia para hábitos de frades.

(79) Lançar-se, atirar-se. A predicação de Santo António era violenta, era uma luta constante com os homens. O termo muito enérgico é próprio das novelas de cavalaria e dos relatos militares.

(80) Assustar-se.

(81) Entenda-se: lavar dos pecados.  
  
(82) Rémora: peixe cujas estanhas propriedades aparecem relatadas na História Natural de Plínio (séc. I D.C.), livro que funcionou como uma enciclopédia, no mundo antigo. 

(83) A ordem de São Francisco era uma ordem Menor.  

(84) Teólogo e bispo nascido em Nazianzo, na Capadócia, cerca de 330 onde veio a morrer em 390. A sua cultura deve-se ao facto de ter frequentado as academias de Cesareia, Alexandria e Atenas. O poder oratório e a sabedoria atraíam muitos ouvintes aos seus sermões e homílias, cuja doutrina lhe veio a merecer o cognome de "Teólogo".

(85) São Gregório Nazianzeno (N. de V.). Trad.: Na verdade a língua é pequena mas vence tudo em esforço.
 
(86) Epístola de São Tiago, 3, 3-5.

(87) Livre arbítrio, isto é, capacidade de se autodeterminar, independentemente das razões justificativas dum facto.

(88) Nau do orgulho ou soberba que gera o desprezo dos inferiores ou menos dotados da fortuna.

(89) Baixios, bancos de areia.

(90) A nau que tudo pratica para obter satisfação do ódio e que tantos crimes acarreta.

(91) Apontada.  

(92) Pau com um morrão na ponta, que servia para pegar fogo às peças de artilharia.  

(93) A nau em que embarca a cobiça ou ambição, por quanto ela nada poupa desde que sirva os seus desejos imoderados.  

(94) A nau dos prazeres que vem dos sentidos e principalmente do sexo, cujo abuso faz perder as faculdades, como a ciência demonstra amplamente. 
 
(95) Escolhos no estreito de Messina onde se afundavam muitos navios. Cila era um monstro marinho que devorou seis dos companheiros de Ulisses; Caríbdes, outro monstro, filha da Terra e de Poseidon. Zeus fulminou-a pela sua voracidade e precipitou-a no mar, transformando-a em monstro que devorava quantos passassem ao alcance, mesmo os barcos. Ulisses logrou escapar duas vezes ao seu insaciável apetite. Foram divinizados pela imaginação dos antigos.  

(96) Existe como relíquia na sua basílica de Pádua.  

(97) Torpedo: hoje dito tremelga, peixe que produz descargas elétricas com as quais se defende.  

(98) Artimanhas, astúcias.  

(99) Lança ou bastão próprio dos capitães.  

(100) Pequeno bastão que serve de insígnia da autoridade. 
  
(101) Varas, ginetes, bengalas e bastões eram as insígnias respectivamente dos cargos de juíz, capitão, mestre-de-campo e do posto designado por "grau de bastão".  

(102) Bastão que simboliza a autoridade régia.

(103) Peixe das costas do Brasil, de olhos tão salientes que posto à superfície da água, consegue observar o que se passa fora e dentro dela.  

(104) Com os olhos.

(105) Generosidade, prodigalidade.

(
106) Mamífero carnívoro, famoso pela agudeza visual, cujo comprimento atinge um metro, com vinte centímetros de cauda e um pincel de pelos pretos nas orelhas.

(107) Entenda-se: "Como uma alma racional daria forma, vida e sentido verdadeiro a estes quatro olhos".

(108) Aduzir, invocar, argumentar.

(109) Salmo, 11, 37 (N. de V.) . ( Trata-se na verdade do Salmo, 117, 37).


(110) Rei de Israel (1001 – 970). Dedicava-se à pastorícia quando Deus o indicou ao profeta Samuel para substituir o rei Saul. Na corte, tocando harpa, distrai o rei nas suas melancolias. Entretanto, em duelo singular com o gigante Golias dos Filisteus, e valendo-se apenas da sua funda de pastor, derruba o adversário e torna-se famoso. Saul emprestara-lhe a sua armadura mas ele rejeitou-a porque não conseguia combater com ela. O rei, cioso da fama de David, intenta matá-lo. Saul morre e David vê-se obrigado a combater contra os seus descendentes e reconquista a Palestina até ser reconhecido rei. Morreu aos setenta anos tendo reinado cerca de quarenta. Deixou salmos inspirados, isto é, cânticos patriótico-religiosos dos israelitas, cuja leitura (na Bíblia) o deleita certamente.

(111) Eclesiastes, 1, 2 (N. de V.).

(112) Duas ordens contemplativas, a cartuxa e a carmelita: esta última criara um cenóbio na mata do Buçaco.

(113) Ainda que.

(114) Os dias de abstinência eram então sexta-feira e sábado.

(115) Gênesis, 1,5, Sept. (N. de V.). Trad.: O espírito do Senhor fecundava as águas.

(116) Alusão ao milagre da multiplicação dos pães, relatado nos 4 Evangelhos.