Desditosa caminhada nossa, pois, mesmo que desconheçamos onde, quando, ou como aportamos neste mundo, sabemos, no entanto, para qual fim seguiremos.
Com a sentença acima, da qual me baseio para principiar esta breve análise, gostaria de introduzir uma pequena reflexão no que concerne os mistérios de nossa existência intramundana. Desde os primórdios da raça humana, uma de suas atribuições mais peculiares e de inegável importância – e inclusive uma das características que a distingue das demais formas de vida que caminham ou já caminharam sobre a terra - tem consistido na perquirição sobre a morte e de suas implicações. Com o intuito de mitigar as dores excruciantes advindas com o fim da vida e conferir sentido a uma existência que, necessariamente, há ter um desfecho trágico, as sociedades humanas não se furtaram de utulizar toda sorte de artifícios, como a elaboração dos mitos e as diversificadas religiões, para atulhar o vazio deixado pela dúvida do que há depois deste lado e assim justificar ou legitimar uma forma de comportamento ético ou racional. Com isso criaram-se inumeráveis crenças na continuidade da vida após o desterro, que, falaciosas ou não, abrandaram, ao menos, a sensação atordoante de que um dia se deixará de existir.
Não obstante, com o afluir das
inovações no campo tecnológico e com a ascensão da razão e seu uso
instrumental, utilizando o termo de um grande pensador e sociólogo alemão, Max
Weber ( 1864-1920), procedeu-se ao que se pode denominar, sem exageros e
titubeios, “desencantamento do mundo”, em que todo este sistema vigoroso de
crenças, fábulas, estórias mágicas e
sobrenaturais, cujas funções remetiam-se a explanação dos fenômenos
testemunhados pelo Homem, são sufocadas em detrimento do domínio da razão e da
Ciência, como novas formas de explicação racional destes mesmos fenômenos.
Todavia, a despeito de todos os avanços científicos e tecnológicos alcançados
pelo Homem que sobrepujam os desafios e obstáculos outrora tomados como
inatacáveis segundo o seu parecer, um efeito desmedido de alcance, talvez,
ainda desconhecido, súbito se interpôs à sua febricitante realidade: o mundo e
em igual medida a humanidade defenestraram-se de sua mágica, de seu
encantamento enternecedor.
Se nos tempos pretéritos,
nos quais a fé, a crença e a imaginação assenhoravam-se dos meandros da existência
individual e social humanas, havia aí um suplício esperançoso pela vida e o descanso
eternos e post mortem, na modernidade e, especificamente, em nossa
contemporaneidade, tal clamor esvaneceu-se a ponto crítico, defronte às
realizações magnificentíssimas do processo racional e científico que a fé no
impossível, no inexeqüível, na mágica da
vida, depurou-se de todos os seus sentidos essenciais, findando por tornar-se
uma simples palavra infecunda e inócua. E pior, ao passo que nos tempos de outrora
à indagação “por que e para que sofrer ou existir” despontava uma resposta amenizadora,
ainda que claudicante ou infensa à realidade, nos tempos de agora
encontramo-nos reduzidos a uma angústia incomensurável e arrebatadora em
virtude, por um lado, de não mais acreditarmos na crença e, por outro, de não
acharmos, segundo os novos meios, uma resposta satisfatória ao mesmo perquirir persistente.
Em suma, agora deparamo-nos reduzidos em
nossa aterradora impotência, face ao desalento de uma razão e de uma Ciência
insuficientes para atender-nos no que tange à solução dos mistérios da
existência; no que diz respeito a
factibilidade de fazer menos torturante, a angústia de existir, isto é, a
angústia gerida da necessidade de se ter certeza de que se acertou na escolha e
da necessidade de que sempre se terá que optar, a todo instante que permeia
nossa existência, entre decidir se a vida vale a pena ser vivida ou que talvez
seja melhor arrefecê-la finalmente. Assim, desprovidos da crença e da fé,
lançados a nós mesmos, não nos resta senão reelaborar-nos a todo o momento.
Destarte, ao se debruçar
sobre a proclamação que principia este pequeno monólogo, aqui não se tenciona
maldizer toda a Ciência e a Razão humanas, porquanto tenham estas contribuído
enormemente com primores tais ao desatino da humanidade, que hoje se encontra
ela em todo seu esplendor de facilidades materiais mundanas e outros avanços
inestimáveis à consecução e preservação de sua saúde; mas, antes, o que se
intenta levar a efeito aqui é compelir você, caro leitor, a nunca se furtar do
sonho, da mágica, da imaginação e, principalmente, da fé de que há um sentido
para a vida, um porquê, uma finalidade transcendente que, senão explicada pela
Ciência, pode ainda preencher este vazio que corresponde ao absurdo de existir.
Portanto, a fim de rematar, sem mais devaneios,
esta análise e esta reflexão, eis um pequeno trecho que, não obstante seus mais
de quatrocentos anos, fez-se, indizivelmente, adequado a sua época e ainda o é,
a nossos tempos, no que se refere à mencionada angústia da existência:
Ser ou
não ser, eis a questão: será mais nobre
Em
nosso espírito sofrer pedras e setas
Com
que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou
insurgir-nos contra um mar de provações
E em
luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.
Dizer
que rematamos com um sono a angústia
E as
mil pelejas naturais herança do homem:
Morrer
para dormir... é uma consumação
Que
bem merece e desejamos com fervor.
Dormir...
Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois
quando livres do tumulto da existência,
No
repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem
fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que
impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem
sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O
agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda a
lancinação do mal-prezado amor,
A
insolência oficial, as dilações da lei,
Os
duetos que dos nulos têm de suportar
O
mérito paciente, quem o sofreria,
Quando
alcançasse a mais perfeita quitação
Com a
ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
Gemendo
e suando sob a vida fatigante,
Se o
receio de alguma coisa após a morte,
–Essa
região desconhecida cujas raias
Jamais
viajante algum atravessou de volta –
Não
nos pusesse a voar para outros, não sabidos?
O
pensamento assim nos acovarda, e assim
É que
se cobre a tez normal da decisão
Com o
tom pálido e enfermo da melancolia;
E
desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas
de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se
de rumo e cessam até mesmo
De se
chamar ação (...).
(Hamlet, William Shakespeare)
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