segunda-feira, 19 de março de 2012

Dúvida e Angústia

Por Denis Cabrerizo Silva




                   Desditosa caminhada nossa, pois, mesmo que desconheçamos onde, quando, ou como aportamos neste mundo, sabemos, no entanto, para qual fim seguiremos.

                   Com a sentença acima, da qual me baseio para principiar esta breve análise, gostaria de introduzir uma pequena reflexão no que concerne os mistérios de nossa existência intramundana. Desde os primórdios da raça humana, uma de suas atribuições mais peculiares e de inegável importância – e inclusive uma das características que a distingue das demais formas de vida que caminham ou já caminharam sobre a terra - tem consistido na perquirição sobre a morte e de suas implicações. Com o intuito de mitigar as dores excruciantes advindas com o fim da vida e conferir sentido a uma existência que, necessariamente,  há ter um desfecho trágico, as sociedades humanas não se furtaram de utulizar toda sorte de artifícios, como a elaboração dos mitos e as diversificadas religiões, para atulhar o vazio deixado pela dúvida do que há depois deste lado e assim justificar ou legitimar uma forma de comportamento ético ou racional. Com isso criaram-se inumeráveis crenças na continuidade da vida após o desterro, que, falaciosas ou não, abrandaram, ao menos, a sensação atordoante de que um dia se deixará de existir.

                  Não obstante, com o afluir das inovações no campo tecnológico e com a ascensão da razão e seu uso instrumental, utilizando o termo de um grande pensador e sociólogo alemão, Max Weber ( 1864-1920), procedeu-se ao que se pode denominar, sem exageros e titubeios, “desencantamento do mundo”, em que todo este sistema vigoroso de crenças,  fábulas, estórias mágicas e sobrenaturais, cujas funções remetiam-se a explanação dos fenômenos testemunhados pelo Homem, são sufocadas em detrimento do domínio da razão e da Ciência, como novas formas de explicação racional destes mesmos fenômenos. Todavia, a despeito de todos os avanços científicos e tecnológicos alcançados pelo Homem que sobrepujam os desafios e obstáculos outrora tomados como inatacáveis segundo o seu parecer, um efeito desmedido de alcance, talvez, ainda desconhecido, súbito se interpôs à sua febricitante realidade: o mundo e em igual medida a humanidade defenestraram-se de sua mágica, de seu encantamento enternecedor.
                       Se nos tempos pretéritos, nos quais a fé, a crença e a imaginação assenhoravam-se dos meandros da existência individual e social humanas, havia   um suplício esperançoso pela vida e o descanso eternos e post mortem,  na modernidade e, especificamente, em nossa contemporaneidade, tal clamor esvaneceu-se a ponto crítico, defronte às realizações magnificentíssimas do processo racional e científico que a fé no impossível,  no inexeqüível, na mágica da vida, depurou-se de todos os seus sentidos essenciais, findando por tornar-se uma simples palavra infecunda e inócua. E pior, ao passo que nos tempos de outrora à indagação “por que e para que sofrer ou existir” despontava uma resposta amenizadora, ainda que claudicante ou infensa à realidade, nos tempos de agora encontramo-nos reduzidos a uma angústia incomensurável e arrebatadora em virtude, por um lado, de não mais acreditarmos na crença e, por outro, de não acharmos, segundo os novos meios, uma resposta satisfatória ao mesmo perquirir persistente. Em suma, agora  deparamo-nos reduzidos em nossa aterradora impotência, face ao desalento de uma razão e de uma Ciência insuficientes para atender-nos no que tange à solução dos mistérios da existência;  no que diz respeito a factibilidade de fazer menos torturante, a angústia de existir, isto é, a angústia gerida da necessidade de se ter certeza de que se acertou na escolha e da necessidade de que sempre se terá que optar, a todo instante que permeia nossa existência, entre decidir se a vida vale a pena ser vivida ou que talvez seja melhor arrefecê-la finalmente. Assim, desprovidos da crença e da fé, lançados a nós mesmos, não nos resta senão reelaborar-nos a todo o momento.
                     Destarte, ao se debruçar sobre a proclamação que principia este pequeno monólogo, aqui não se tenciona maldizer toda a Ciência e a Razão humanas, porquanto tenham estas contribuído enormemente com primores tais ao desatino da humanidade, que hoje se encontra ela em todo seu esplendor de facilidades materiais mundanas e outros avanços inestimáveis à consecução e preservação de sua saúde; mas, antes, o que se intenta levar a efeito aqui é compelir você, caro leitor, a nunca se furtar do sonho, da mágica, da imaginação e, principalmente, da fé de que há um sentido para a vida, um porquê, uma finalidade transcendente que, senão explicada pela Ciência, pode ainda preencher este vazio que corresponde ao absurdo de existir.
                     Portanto, a fim de rematar, sem mais devaneios, esta análise e esta reflexão, eis um pequeno trecho que, não obstante seus mais de quatrocentos anos, fez-se, indizivelmente, adequado a sua época e ainda o é, a nossos tempos, no que se refere à mencionada angústia da existência:
Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre

Em nosso espírito sofrer pedras e setas

Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,

Ou insurgir-nos contra um mar de provações

E em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.

Dizer que rematamos com um sono a angústia

E as mil pelejas naturais herança do homem:

Morrer para dormir... é uma consumação

Que bem merece e desejamos com fervor.

Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:

Pois quando livres do tumulto da existência,

No repouso da morte o sonho que tenhamos

Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita

Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.

Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,

O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,

Toda a lancinação do mal-prezado amor,

A insolência oficial, as dilações da lei,

Os duetos que dos nulos têm de suportar

O mérito paciente, quem o sofreria,

Quando alcançasse a mais perfeita quitação

Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,

Gemendo e suando sob a vida fatigante,

Se o receio de alguma coisa após a morte,

–Essa região desconhecida cujas raias

Jamais viajante algum atravessou de volta –

Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?

O pensamento assim nos acovarda, e assim

É que se cobre a tez normal da decisão

Com o tom pálido e enfermo da melancolia;

E desde que nos prendam tais cogitações,

Empresas de alto escopo e que bem alto planam

Desviam-se de rumo e cessam até mesmo

De se chamar ação (...).

(Hamlet, William Shakespeare)

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