sexta-feira, 30 de maio de 2025

Orar com as mãos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Irmão Bernard Guekan, OSB

Abadia de Keur Moussa, Senegal

 

`O trabalho monástico em Keur Moussa foi desde o princípio da fundação orientado para a implementação de técnicas agrícolas e pecuárias, a alfabetização, os cuidados de saúde elementares, a prevenção das doenças endêmicas e a educação em saúde materna e infantil, dispensados às populações num raio de trinta quilômetros. Estas atividades foram entendidas como o desenvolvimento visível de uma identidade humana e religiosa. A este propósito, um hóspede de passagem fazia a seguinte observação: «Vós orais enquanto trabalhais», como para traduzir que não há diferença entre o monge de coro e o monge das oficinas, na horta ou no galinheiro. O inverso parece igualmente verdadeiro. Não se encontra uma fórmula mais adaptada para abolir a tensão tão frequentemente vivida entre ora et labora. A questão levanta-se então sobre o que constitui o traço específico da nossa identidade monástica no nosso ambiente senegalês. 

O setor da atividade da suinocultura parece-me ser uma imagem que traduz, ainda que imperfeitamente, um aspecto da nossa vida quotidiana em Keur Moussa, não apenas pela atividade que é exercida enquanto tal, mas sobretudo pela maneira como ela determina, orienta as vidas e cria um espaço de diálogo. O porco, como é sabido, é um animal identitário que condensa em si a fronteira entre três grandes religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islão. Ora, o nosso país, sendo precisamente uma terra onde o Islã está fortemente enraizado, a visão de dejetos daquela origem nas descargas ou pelas ruas dos bairros suscita um olhar sobre o caráter multiconfessional e multicultural do meio social e ambiente. No mosteiro, o setor da suinocultura é mantido pelo noviciado. Ele constitui frequentemente a primeira provação do jovem que ingressou recentemente na vida monástica. De fato, a criação de porcos, tal como a das cabras e das vacas, não conhece domingos nem feriados e necessita consequentemente de uma presença regular, e sobretudo matinal. Para um jovem que imerge na vida monástica, o trabalho da pocilga, por exigir muita força, revela-se decisivo para a capacidade do jovem em perseverar, pelo menos no princípio, na sua iniciação à vida monástica. Logo, este setor é, parece-nos, um indício revelador sobre o «risco» de empenhar hoje a sua vida na vida singular da vida monástica.


Uma arte espiritual


Sobre o trabalho manual, São Bento declara justamente isto na sua Regra : «Então serão verdadeiramente monges, se viverem do trabalho das suas mãos, como os nossos pais (da Igreja) e os apóstolos» (RB 48,8). Evidentemente, ele entende aqui o trabalho manual cotidiano como uma estrutura a partir da qual o destino do monge adquire efetivamente forma. Isto não deixa de causar certo espanto pois na Regra, onde trata do Ofício divino, São Bento afirma simplesmente que serão monges preguiçosos, indolentes, inertes no serviço que lhes foi confiado (nimis iners devotionis suae servitium, RB 18,24) aqueles monges que não recitarem o saltério em uma semana. Ele sugere aqui a ideia de uma qualidade intrínseca, ao passo que no propósito relativo ao trabalho manual, põe em jogo o próprio processo de se tornar monge. No capítulo que trata do trabalho manual, São Bento insere ao mesmo tempo os momentos da prática da lectio divina ao longo do dia, para pôr bem em evidência o caráter orante do labora. Isto significa que a prática de toda a atividade manual no mosteiro, além de «conservar um saudável equilíbrio de espírito e de corpo, de exercer e desenvolver as diversas faculdades que Deus (nos) deu» (cf. Declarações da Congregação de Solesmes, nº 63), é uma exposição ao olhar de Deus e à sua salvação. Se a lectio divina é assim considerada em São Bento como um gênero de trabalho, segue-se a necessidade de redefinir ou de requalificar os termos ora et labora. O trabalho manual, enquanto oração, é, para a oração, o fruto maduro da palmeira que se transforma em óleo depois de moído, triturado, e posto na prensa. Em contrapartida, a oração enquanto oração das mãos é, para o trabalho, a bigorna por meio da qual o ferro aquecido toma forma. Este é modelado segundo a intenção do ferreiro. É por isto que no mosteiro o trabalho manual deve ser executado em silêncio, salvo quando a palavra se torna uma necessidade. Sendo assim, o trabalho manual não mais é simplesmente uma atividade feita às pressas pelo monge para se dedicar à oração. Ele é ao mesmo tempo preparação e prolongamento da oração. 

O trabalho manual em contexto monástico é uma via cósmica de acesso a si, do crescimento em si do ser monge. Pode-se dizer, parafraseando Michel Foucault – num outro contexto –, que o trabalho manual se revela como um perfeito exercício do cuidado de si, não egoísta, mas enquanto ações que se exercem de si sobre si, ações pelas quais nos responsabilizamos, pelas quais nos modificamos, pelas quais nos purificamos e pelas quais nos transformamos e transfiguramos.


Na realidade, o tomar conta de si é necessário, pois evita toda a dependência (econômica) que prejudicaria o ideal de unidade (monos). Pode-se comparar esta ideia do cuidado de si mediante o trabalho manual com a divisa do nosso mosteiro (O deserto florescerá). Há aqui a ideia de pôr à prova os desertos das nossas afetividades, da nossa necessidade de reconhecimento pela invocação da misericórdia, da paz e da compaixão: é o meio de fazer crescer, proteger e de preservar.


O hóspede muçulmano, com frequência presente na nossa mesa sem se ter anunciado, pode mais ou menos acusar a exigência e a delicadeza que lhe devemos, a fim de que se sinta bem no mosteiro, confeccionando-lhe um outro prato que lhe trará gosto e paz, no caso em que o famoso é o menu do dia. O diálogo interreligioso apresenta-se e atravessa então o prato de cada um. O deserto começa a florir para nós nesse instante, quando não pretendemos reduzir o hóspede a nós. 

Voltando ainda à nossa pocilga, há interesse em notar que nos acontece frequentemente solicitar os serviços de um vizinho muçulmano para o transporte de alimentos para uma localidade próxima do mosteiro. Este serviço, depreende-se, não é gratuito, mas é sempre com alegria no coração que o nosso vizinho o faz, reservando uma parte do produto para os seus carneiros de que ele gosta tanto quanto da nossa pocilga. Este trabalho de circunstância permite-lhe um aumento dos seus magros recursos sem o que não poderia alimentar as suas mulheres e os numerosos filhos.

A explicação


O propósito beneditino que acaba por conferir ao trabalho manual monástico o seu estatuto de explicação da identidade oculta do monge situa-se no mesmo capítulo 48 da Regra, consagrado ao trabalho, onde São Bento recomenda de maneira precisa tratar os utensílios do mosteiro como os vasos sagrados do altar. Deus não está ausente do trabalho humano. Ele está presente aí tanto quanto entre a comunidade reunida para a oração. Assim, dever-se-ía compreender este outro propósito de São Bento: «Que nada se sobreponha à obra de Deus», no sentido da aproximação da mesma proposição (injunção) que faz a respeito do trabalho manual: «É então que serão verdadeiramente monges, se viverem do trabalho das suas mãos, como os nossos pais (da Igreja) e os apóstolos». Trata-se aqui fundamentalmente de não se preferir a si a Cristo, que é a vida do monge, segundo esta afirmação de São Paulo: «Para mim, viver é Cristo». As nossas principais atividades, a saber: a horta, o ateliê de aperfeiçoamento da kora e os diferentes ateliês de profissionalização dirigidos, desde a fundação, aos jovens desejosos de se auto-empregar, foram e são ainda o marcador de uma presença beneditina na aldeia de Keur Moussa.

As populações das proximidades, logo no início das nossas atividades, certamente apreenderam melhor quem éramos vendo-nos trabalhar, como diz o provérbio wolof : «Liguèye jamou Yalla la », que se traduz literalmente : «Trabalhar é orar a Deus». Hoje ainda, com as mudanças sociais, a savana arborizada transformou-se numa pequena coletividade e aqueles que passam pelo mosteiro espantam-se que ela não seja de fato particularmente luxuriante, mas sempre em devir, enfrentando as mudanças climáticas que a tocam gravemente; a salinização dos lençóis de água do sub-solo devida aos défices pluviométricos, o desaparecimento das espécies vegetais e o afluxo das aves e os seus efeitos devastadores sobre a horta.


A audácia de se reorientar


A nossa comunidade, ela mesma, aprendeu a compreender a sua identidade a partir dos lugares de ação e das mutações do seu ambiente sociocultural e político. Desde o princípio, os fundadores tiveram a audácia de se orientar bem diferentemente, não mais partindo de questionamentos vindos de exigências autoritárias da vida monástica, mas inversamente a partir da resposta aos apelos do lugar da fundação que faziam urgir a reformulação de um discurso monástico verdadeiro. As teorias missionárias de então, como a da plantação, não ajudam muito com efeito a enfrentar este tipo de desafios, pois não se tratava de replantar o jovem rebento a mais de cinco mil quilômetros do seu lugar de proveniência, e esperar que ele desse a mesma folhagem e os mesmos frutos da sua terra de origem.


Procurar encontrar

 

O profetismo desta divisa do mosteiro de Keur Moussa e a promessa que ela contém traçaram a fenda do desejo da transformação do local doravante tornado habitável. Isto conduziu os nossos vizinhos agricultores de então, e os citadinos, na maior parte hoje, a nos revelarmos também como pessoas economicamente fortes e detentoras de um saber-fazer prático. Inversamente, apercebemo-nos também que não nos compreendemos ainda suficientemente quando não nos compreendemos a nós próprios. O risco possível da recusa em levar em conta a necessidade de procurar caminhar e de reconduzir a utopia, continua a petrificar-se numa identidade mais ou menos mal assumida.

Compreender-se com efeito a si mesmo como contemplativos, categoria que nos é habitualmente atribuída, assume paradoxalmente um duplo efeito, por um lado pela redução da nossa identidade a pessoas que renunciaram a toda a atividade; por outro lado, a tendência ao afastamento das diversas formas de produção econômica, até mesmo à negação imaginária de tomadas de responsabilidade em cargos econômicos. É como se a melhor forma de conservar a priori a integridade da utopia monástica residisse na negação pura e simples do trabalho manual.


O termo «procurar Deus» qualifica profundamente o monge como tal, segundo São Bento e a antiga tradição espiritual. Esta expressão, parece-me, é a que melhor serve para definir o sentido da vida monástica, como procura de unidade (monos). Longe de toda a divisão, consequentemente, o labora, entendido doravante como a oração das mãos, constitui a essência da vida monástica e reveste, por este mesmo fato, o caráter de exercício espiritual; enquanto que Cristo é o sentido.`

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/118


quarta-feira, 28 de maio de 2025

Madre Anna Maria Cànopi

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo da Irmã Maria Madalena Magni, OSB



`A ilha San Giulio é um montículo rochoso que emerge das águas de um dos lagos mais sugestivos do norte de Itália junto ao Alpes. No seu centro encontra-se uma antiga basílica edificada em honra do evangelizador desta terra : o padre grego Jules, morto – segundo a tradição – entre o fim do século 4º e o princípio do 5º, após ter edificado a sua centésima igreja.


A história despontou neste lugar, ao longo dos séculos, a sua marca majestosa, sem nunca conseguir apagar a graça e o encantamento produzidos pela sua beleza solitária. As águas atraentes e tão sedosas do lago conservaram uma espécie de clausura natural que não deixou de seduzir um grupo de monjas chamadas pelo bispo da época a tornarem-se guardiãs da herança de fé do santo evangelizador bem como da procura – nesses tempos atribulados e difíceis – de um lugar adaptado a uma vida de oração. É assim que a 11 outubro de 1973 começou a história da Abadia beneditina «Mater Ecclesia ».


A 21 março de 2019, dia do Transitus de São Bento, as irmãs em torno, com todo o seu afeto, do leito de Madre Anna Maria Cànopi, prodigaram-lhe o seu último adeus, ela que durante tanto tempo, quarenta e cinco anos, foi, pela graça, a Madre toda cheia de sabedoria e guia da comunidade. Ao longo do tempo, tinha sido uma personalidade amada e reconhecida por milhares de pessoas de todas as origens e camadas sociais. Nos dias que precederam o seu funeral deu-se conta das pessoas de lugares extremamente diversos, aproximando-se com grande emoção da urna da Madre para o último adeus…


Madre Anna Maria nasceu a 24 abril 1931 num bairro próximo de Pavia, no seio de uma família numerosa de agricultores na qual reinava um autêntico amor cristão, muito simples, mas expresso em profundas relações de afeto. Os seus irmãos e irmãs, vendo a sua compleição delicada, depressa compreendendo que não era da mesma constituição física que eles, decidiram então, de comum acordo com os seus pais, fazerem-na prosseguir os estudos. Provações familiares – não esqueçamos que eram os cruéis anos da guerra – não a pouparam, fazendo-a conhecer o sofrimento. Além disso, durante os estudos, teve que suportar o afastamento do lar, fazendo rapidamente experimentar a solidão da cidade, e abriu-a ainda mais a uma profunda ligação ao Único que pode preencher o coração humano… Além da frequência dos estudos universitários, paralelamente, tornou-se assistente social, comprometendo-se generosamente no serviço aos mais desprotegidos. Escreveu a este propósito: «Sentia uma imensa compaixão para com todas estas pobres pessoas, e porque me dava conta que tinham acima de tudo necessidade de salvação, senti-me cada vez mais atraída não tanto a fazer qualquer coisa de material por eles, mas a oferecer-me a mim mesma, toda inteira, na oração, unindo-me ao sacrifício redentor de Jesus, que só ele pode renovar o interior dos corações.» (Uma vida para amar, Interlinea, Novara 2012, p. 27).


Tendo compreendido que para dar Jesus aos homens teria de se consagrar inteiramente a ele, no silêncio e oração contínua, começou a amadurecer no seu interior a vocação monástica, e foi assim que entrou a 9 julho 1960 na Abadia de São Pedro e São Paulo, em Viboldone, nos arredores de Milão. Entre os sacrifícios e renúncias que mais lhe custaram, foi a interrupção de um começo de carreira literária promissor. Com efeito, alguns dos seus poemas haviam já atraído da atenção dos críticos. Bem depressa, no entanto, o Senhor devolveu-lhe largamente o que ela deixara por ele. As circunstâncias concretas puseram-lhe a pena nas mãos, pena que se torna desde essa época instrumento privilegiado do testemunho da sua fé: desde os primeiros trabalhos de revisão literária da nova tradução da Bíblia italiana, até à redação da Via Sacra no Coliseu, em 1993, desejada por João Paulo II – foi a primeira mulher chamada a uma tal iniciativa. Madre Cànopi, dotada de um estilo simples e claro, atravessada por um grande fôlego poético, chega assim a uma notoriedade em que nunca havia verdadeiramente pensado. Despontou uma obra consequente, feita de uma centena de livros traduzidos em várias línguas. Estes livros foram o fruto da sua lectio divina sobre a Palavra de Deus, ou também do ensinamento monástico, como por exemplo a obra «Mansidão, caminho de paz», que se revelou um sucesso inesperado, mesmo junto do público laico. Esta grande atividade literária era evidentemente fruto de todas as suas horas de oração, de retiros dados às irmãs, durante os diferentes períodos da sua vida monástica, e sobretudo de um imenso desejo de ajudar qualquer um a aproximar-se da Palavra de Deus.


Se o contexto envolvente dos começos da aventura deixava pressagiar uma espécie de vida semi-eremítica, na realidade, o germe da vida monástica caído entre as pedras floresceu com abundância, e floresceu para lá de toda a esperança. A pobreza que vivíamos era alegre, e deixava-nos tudo esperar da parte do Senhor. A oração do coro era a nossa principal atividade, acompanhada do trabalho manual, assim como da hospitalidade. Com efeito, desde os começos, numerosas foram as pessoas que desejaram partilhar a liturgia, a escuta da Palavra, e pôr-se na escola da orientação espiritual plena de amor da nossa Madre Anna Maria. Bem depressa, chegaram novas irmãs, e tivemos que resolver a espinhosa questão da restauração dos edifícios doravante demasiado obsoletos. O crescimento não parava, e fomos, se se pode exprimir assim, literalmente obrigadas a aceitar a proposta de fundar um priorado em Saint Oyen, no coração dos Alpes, depois um outro em Fossano no Piemonte. Cedo, estávamos igualmente em medida de enviar irmãs para ajudar outros mosteiros que necessitavam de ajuda. Atualmente, a nossa comunidade é composta de aproximadamente setenta monjas, provindas de outros países europeus e igualmente de outros continentes: América do Norte, América do Sul, África. Temos em comum o desejo de viver o Evangelho no seio da fraternidade monástica, a fim de reunir na oração o coração de cada irmão.


Na certeza que, segundo o ensinamento do nosso Pai São Bento, o mosteiro deve ser «casa de Deus», temos igualmente acolhido entre nós monjas que se encontravam em Roma para estudos, e que não podiam ir aos seus países de origem durante o tempo das suas férias. Isto abriu-nos o coração à riqueza do monaquismo vivido em culturas diferentes. Nasceram aí amizades duradouras… Aconteceu até que uma monja budista em particular se ligou de amizade com a nossa Madre. Esta atitude de grande abertura para com aqueles que se hospedavam entre nós ou nos escreviam, por exemplo missionários, ajudou-nos sempre a sentir «em casa » em todos os países do mundo, certas de que com a oração podíamos estar presentes em todo o mundo, lá onde outra ajuda humana seria impossível. Quando, a 11 outubro de 1980, Madre Teresa de Calcutá visitou a nossa diocese de Novara, foi pedido a Madre Anna Maria que lhe escrevesse uma carta em nome de todas as irmãs contemplativas de clausura. Neste texto de tonalidade profética, a Madre escreveu: «A tensão que te habita, o desejo ardente de universalidade que te faz ultrapassar todas as fronteiras, mantem-me toda imóvel sob a cruz para unir-me à única fonte que vence o ódio e consegue reunir o que está dividido.»


Este olhar todo dirigido para reunir a realidade de cada um, para dar uma nova esperança a cada homem, fez-nos profundamente sentir o coração da nossa sociedade tão doente de egoísmo, de desilusões, de solidões aflitivas e dolorosas. A Madre Anna Maria partilhava conosco, com uma grande sensibilidade, o peso de sofrimento e de dor que tantas pessoas vinham depositar cotidianamente no seu coração maternal, recebendo em retorno o reconforto de uma escuta cheia de amor. Nem os prisioneiros eram excluídos: segundo as suas próprias palavras, visitava-os espiritualmente todas as manhãs, antes de imergir na oração do coro, movida por um intenso desejo de acolher no seu coração todos os homens para apresentá-los ao Senhor. Durante muitos anos, manteve uma correspondência epistolar com certos detidos.


É a procura incessante, sem tréguas, do coração humilde, que sustenta a fidelidade de Madre Cànopi, hora a hora, dia após dia, neste testemunho amante de fidelidade à vida monástica. A Madre Anna Maria amava profundamente, naturalmente, a vida, como o bem mais precioso, o que lhe conferia um particular dom de intercessão junto de casais à espera de um filho. Nunca se sentiu «uma personagem excepcional», nunca adotou a atitude de uma «grande mestra », mas o seu comportamento constituía um eloquente testemunho. Uma indomável vontade acompanhou-a até aos últimos dias da existência terrestre. Estava sempre pronta a oferecer uma palavra a quem lhe solicitasse um conselho, e a agradecer a todos quantos, ao longo dos anos, haviam sustentado o crescimento da comunidade. Dotada pela natureza de dons excepcionais de inteligência e sensibilidade, purificadas pelo contato constante com o Senhor e a sua Palavra, abordava cada pessoa com a maior naturalidade, sabendo simplificar os problemas que lhe eram submetidos, fazendo partilhar a sua imensa compaixão, uma incrível capacidade para sofrer com os que sofrem, a alegrar-se com os que se alegram… Acima de tudo, foi uma mulher de paz, esquecida de si mesma, capaz de perdoar, ou melhor ainda, incapaz de se sentir ofendida. A sua divisa, Humiliter amanter, exprime aquilo que viveu. Apontou também à comunidade uma diretiva expressa na invocação Funda nos in pace: estabelece-nos nesta paz que é o próprio Cristo, nosso único amor e desejo.


À medida que com o tempo declinavam as suas forças físicas, parecia que, pelo contrário, acrescia a sua capacidade de acolher e oferecer com doçura cada despojamento vivido, até se tornar toda inteira oração. Tinha sempre entre os dedos o terço do santo Rosário, e não deixava nunca de seguir com a mais viva atenção a liturgia a partir do seu leito de doente.


Soube igualmente gerir com humildade e sabedoria a sua sucessão, participando da nomeação da abadessa que, após ela, teria a assumir cargo tão delicado. Tudo isto nos permitiu viver uma profunda continuidade na nossa história, e nos obriga a ir em frente sem ressentimentos estéreis sobre o passado.


Madre Anna Maria foi e permanece um imenso dom que o Senhor fez à sua Igreja, em particular ao mundo monástico. Reasseguradas pela promessa que ela mesma nos fez de permanecer sempre conosco, desejamos vivamente dar graças, continuando a viver tudo o que ela nos transmitiu, no seu ser inteiro. Somente assim poderemos, o mais dignamente possível, ser e permanecer suas filhas espirituais.`



Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/118



segunda-feira, 26 de maio de 2025

Renunciar ao sono da morte

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo do Irmão Irineu Jonnart

Abadia de Chevetogne, Bélgica  



`A vinda do Filho do Homem vai ser semelhante ao que aconteceu no tempo de Noé` (Mat 24,37) : identificar a boa nova da salvação com a violência de um dilúvio que vai engolir todos os seres vivos, parece uma coisa inaceitável. A não ser que se veja atrás deste quando apocalítico, a chegada de um mundo novo, regenerado e rico em promessas - começar pela que o Senhor fez, quando disse que nunca iria fazer de novo tal destruição. (Gen 8,21) !

E de fato, o contexto evangélico convida a entender a referência a Noé, como um apelo à vigilância, à espera confiante de um acontecimento feliz, que se deve acolher desde já. Mas para isso convém acordar. É que o mundo está dormindo! Não se vê dormir, mas ontem como hoje, comiam, bebiam, davam-se em casamento… Mas há uma diferença entre uma existência biológica, indispensável – alimentar-se e procriar – e uma vida em plenitude, consistindo em pôr-se em diapasão com um élan vindo do além e que age na pessoa de modo irresistível, assim como o movimento do amor.

É esta vida em plenitude que vem a Noé, ao penetrar na arca, símbolo da interioridade humana mais profunda. Neste santuário está a fonte da luz e da vida, como o comutador a que se deve estar ligado. É lá também que reside o Filho do homem. Assim convém acolher a vida que dorme em cada um de nós. Isto exige uma purificação : tal é o sentido do dilúvio! Um banho que regenera o homem mergulhado no coração das águas primordiais, as dos primeiros dias do mundo, como as águas onde vive o feto, um batismo que acorda a memória profunda das origens da vida, em si e no seu desenvolvimento.

Mas e os outros homens que estão fora da arca salvadora? `Dois homens estarão no campo, um será tomado e o outro deixado`. Aqui como sempre que dois tipos de pessoas aparecem nos evangelhos, temos de ter consciência que os dois são um só, são as duas faces de uma mesma pessoa, ou seja nós mesmos.

Trata-se de purificar o velho homem que está em cada um de nós, a fim de fazer espaço, de deixar vir um homem novo, um ser despertado para a vida, capaz de se tornar vigilante. Uma pessoa vigilante, estando sempre não em estado de alerta permanente – velar não quer dizer vigiar – mas despertar para lutar contra a própria inércia e suas ideias concebidas sobre o que deve acontecer, pois `é na hora em que menos pensais que virá o Filho do homem`. Não se apoiar sobre esquemas de pensamento preestabelecidos, mas acolher o que vem. E pelos outros homens, pois vigiar consiste também em cuidar dos outros, vigiar pelos outros.

Tal é o ensinamento de Noé : ele tem consciência de uma certa responsabilidade na chegada de uma nova criação. Depois dele, cada um é convidado a experimentar que a purificação do mundo, e o desenvolvimento da Vida em plenitude passa por sua própria interioridade e acontece graças a sua capacidade de vigiar.`



Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/118


quarta-feira, 21 de maio de 2025

E continua o espetáculo…

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Crianças refugiadas sírias olham para o lixo espalhado nas áreas comuns da janela do apartamento de sua família no bairro de baixa renda Masaken Osman, nos arredores de Cairo (Egito). Crédito: S.Nelson/ACNUR - set.2015

*Artigo do Padre Alfredo J. Gonçalves, CS


‘Contam-se aos milhões o número de crianças famintas e subnutridas, sonhando com ao menos uma refeição diária; mas há quem brinque de dar mamadeira a bonecos de plástico (ou qualquer outra matéria inorgânica)…

Milhões de crianças não dispõem de água potável e têm de conviver com esgoto a céu aberto, perigosamente expostas a todo tipo de doença; mas há quem brinque em trocar fralda de bonecos de plástico (ou outro material sintético).

Uma multidão de crianças, em todo mundo, não sabe o que é assistência médica nem hospitalar, e não têm acesso a remédios; mas há quem brinque de levar ao médico bonecos de plástico (de plástico?).

Quantas crianças sedentas ao nosso redor, ansiando por um copo de água, ao lado de gente que insiste em usar mangueiras irresponsavelmente abertas para lavar carros e calçaldas; mas há quem brinque em dar banho a bonecos de plástico (plástico?), num jogo insano e absurdo.

Inúmeras crianças seguem abandonadas no fundo dos porões da sociedade e em suas longíquas periferias; mas há quem, seguindo a moda, brinque de adquirir bonecos de plástico (de plástico?), pequenos ‘fantasminhas’, a preços exorbitantes.

Um número incontável de crianças não conhece escola, nunca entrou numa sala de aula, nem sabe o que é lápis e caneta, caderno ou livro; mas há quem teime no brinquedo ridículo de ‘ensinar’ bonecos de plástico (de plástico?) que nada sabem e nada aprendem.

São crianças reais, nuas e concretas, aos milhares e milhões – que riem, choram, amargam a solidão e experimentam hostilidade, sentem frio, dor e fome – estendendo o olhar e a mão por socorro; mas há quem abrigue no aconchego de lares nus e vazios bonecos de plástico (plástico?) ‘bonitinhos’, mas inanimados.

Olhares e palavras de ódio e rancor, em desmedida, cobrem crianças solitárias, esfarrapadas ou sem roupa, como abortos vivos da indiferença e do desamor; mas há quem prefira o jogo doentio de brincar em ser pai/mãe de bonecos de plástico (plástico?) artificiais.

Passam de milhões os órfãos desamparados pelos becos, ruas e praças de tantas vilas e cidades rumorosas e apressadas; mas há quem brinque de chamar de ‘filhinho’ ou ‘filhinha’ a bonecos de plástico (de plástico?), sem vida e sem calor humano.

Incontáveis as crianças migrantes e refugiadas, órfãos fugitivos da fome, da violência e das catástrofes climáticas; mas há quem, em lugar de adotar uma delas, adota um boneco de plástico (de plástico?) ao qual dedica toda sua enfermidade patológica.

Que humanidade é essa, que troca os valores por desvalores, a realidade pela aparência, o ser pelo ter, as crianças por bonecos ocos e insípidos. Civilização do faz de conta, sociedade do espetáculo… E continua o espetáculo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://migramundo.com/e-continua-o-espetaculo/