sábado, 14 de dezembro de 2019

História dos cristãos: entre manipulação e verdade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
'Conquista de Constantinopla', de David Aubert
(Wikipedia/ Domínio público)

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Como a história do cristianismo é transmitida para o público em geral? O que está por trás de uma seleção criteriosa dos fatos? Por que alguns eventos históricos e personagens receberam tanto destaque e outros não? Se formos analisar a fundo essa operação, chegaremos à conclusão que uma interpretação maniqueísta da história do cristianismo é algo que perdura há séculos.

Nos deparamos sempre com aquele antagonismo radical entre cristãos e pagãos, bárbaros e romanos, cruzados e invasores. É como se, no caso dos cristãos, seja um sacrilégio constatar que a história da religião com maior número de adeptos do mundo também é feita de sombras. É quase um pecado dizer que a maioria das campanhas militares das cruzadas medievais visavam muito mais a expansão dos territórios que a propagação da fé ou a defesa dos territórios sagrados, por exemplo. Negar fatos históricos, reproduzidos após anos de pesquisa criteriosa, é mais um indicativo dessa imaturidade na fé revestida de ‘zelo’ que caracteriza muitos católicos da atualidade.

Por outro lado, há quem, em vez de contribuir com a reflexão, acaba fazendo o contrário. Muitos ataques gratuitos contra a Igreja Católica também são desprovidos de qualquer fundamento científico. Se por um lado o iluminismo gerou um primeiro impulso na busca dessas respostas, no século 18, esse mesmo movimento também foi uma verdadeira fábrica de análises incompletas a respeito do catolicismo.

E muitos desses conceitos iluministas ainda hoje compõem as principais cartilhas da disciplina de história. Um deles foi a afirmação de que a Igreja teria propagado ‘o mito da terra plana’. A instituição, ao contrário, praticamente desconsiderava essa teoria, a qual foi desenvolvida por um monge grego do século 6, chamado Cosme Indicopleustes. Só para citar um exemplo.

Porém, em resposta aos ataques, a Igreja acabou respondendo mal. E assim ela passou a produzir uma narrativa paralela caracterizada majoritariamente por triunfos. Vemos essa tendência se repetir entre os religiosos que fazem sucesso nas redes sociais atualmente – o areópago virtual onde cada qual se sente no direito de antepor a ideologia à pesquisa científica. Absolutismo historiográfico : as redes sociais tem sido um antro daquelas que a praticam.

É difícil questionar um popstar da fé sem, no mínimo, ser tachado de herege. E assim se coloca em descrédito o trabalho sério de historiadores de carreira que simplesmente identificam que a história do cristianismo é composta por uma trajetória tão humana como a de qualquer outra religião ou instituição. Uma história feita de luzes e sombras, disputas e conquistas, erros e acertos.

Já nos primeiros séculos, os escritos hagiográficos eram alguns dos meios mais eficazes de propagação da religião nascente. Muitas dessas histórias, reunidas numa espécie de coletânea, elencavam os feitos heróicos de alguns personagens. Tal narrativa criou a consciência coletiva de que a perfeição e o heroísmo seriam as principais características de uma história protagonizada por cristãos.

Passou-se a reproduzir a história do cristianismo sem aquela interdisciplinaridade proposta pela Nouvelle Histoire dos anos 70, a qual combate justamente esse positivismo praticado por muitos escritores católicos na atualidade. Confiamos à teologia a tarefa de produzir veredictos por causa do medo que ainda temos de chegar às faíscas de verdade que muitos fragmentos nos deixaram. A resposta imediata de que ‘foi a providência divina’ é muito mais cômoda que os porquês salutares que perturbam, mas enriquecem a existência.’


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