sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Getsêmani, Amor e Angústia: Ou, sobre o perigo de se cristalizar a figura de Deus


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
Não podemos projetar nossas relações pai e filho à paternidade divina porque Deus vai além de nossa imaginação
Não podemos projetar nossas relações pai e filho
à paternidade divina porque Deus vai além de nossa imaginação

*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


‘A história de Jesus no Getsêmani – pouco antes de sua prisão e processo que culminou na crucificação – relata-nos os momentos difíceis e de grande angústia encarados por ele sem o auxílio dos que lhe eram próximos. Como exemplo, basta lembrarmos que os discípulos dormiram enquanto ele orava; Pedro o negou enquanto era julgado; o povo que o seguiu durante algum tempo foi voz decisiva ao gritar com clareza ‘crucifica-o!’.

Nossa condição humana – tantas vezes em extrema solidão, sem socorro e perspectiva – encontra no que Jesus enfrentou, em período tão curto e derradeiro, o paradigma para ser pensada. Ele, como todo homem, sentiu em sua pele a experiência do abandono e a sofreu como quem ‘chora gotas de sangue’. Em horas como essa, a maioria das pessoas acaba por se voltar a uma visão infantil, romântica ou mesmo cristalizada de Deus.

Claro que não há nada de errado em clamar o Senhor e ver nele o auxílio para os momentos de angústia, solidão e abandono. Isso é algo que o próprio Jesus fez e é exemplificado por sua oração no Getsêmani : ‘Passe de mim este cálice’, pediu. Mas, ao invés do alívio, veio apenas o silêncio de Deus, algo que muita gente não consegue entender. Acostumados à visão romântica que o coloca como um pai sempre presente, seu silêncio é incômodo e o simples fato de se pensar uma possível ausência divina atemoriza os mais infantilizados.

Se Deus aparece apenas como projeção da figura paterna, realmente ele não passa de uma ilusão que deve ser abandonada com o desenvolvimento do homem. Freud chega a esta conclusão ao tratar da questão religiosa. Para ele era muito fácil considerar a religião como grande ilusão, uma vez que o crente se coloca como criança diante de um pai que tudo pode, recusando encarar a realidade do mundo de forma adulta. É como se precisasse que o pai estivesse sempre presente pois não consegue andar sozinho. O crente infantil estabelece sempre uma relação ambivalente em relação a Deus. Ama-o pois este lhe protege, guarda etc. como um pai. Contudo, ao mesmo tempo, odeia-o e o teme porque lhe pune e vigia constantemente. Deus aparece, dessa maneira, como esse ser que não passa de uma das mais infantis projeções humanas em relação ao pai.

Jesus nos mostra uma outra relação com o Pai. Para além do drama edípico e de toda ambivalência em relação à figura paterna, Jesus encara a Deus como um Outro que não precisa ser temido, pensado dentro de uma estrutura punitiva, nem visto como alguém que sempre está ali. O Deus de Jesus é amor. Entretanto, por ser amor, é capaz de silenciar diante da dor para que o homem possa experimentar a realidade do mundo por si só. O Deus de Jesus não é sempre presente, mas um Deus que aparece como grande ausência para além de toda projeção. Apenas um Deus que ama é capaz de permitir a vivência do outro sem interferência, que o homem se responsabilize por suas decisões sem se portar como ‘muleta psicológica’ (para usarmos aqui uma expressão de Bonhoeffer).

O silêncio talvez seja o grande paradigma desse Deus que é presença de uma ausência. Um Deus que não responde, mas permite a dor, o sofrimento, ao passo que também permite a alegria e o riso sem interferências de nenhum tipo, milagres ou metafísica. Um Deus que se faz ‘sentido para a existência’ e, por isso mesmo, amor para além de toda ambivalência. O Deus de Jesus se mostra, talvez, como um grande vazio, mas que por isso mesmo é sempre buscado assim como ‘a corça anseia por água’.

Diante do silêncio de Deus, Jesus poderia simplesmente negar seu martírio, poderia voltar atrás sem precisar sofrer tudo o que sofreu. Contudo, resolveu seguir pois cria a ponto de morrer por aquilo. Acreditava tanto, que mesmo diante da morte, na hora mais sofrida de sua vida, foi capaz de dar o salto de fé e dizer ‘em tua mão entrego o meu espírito. Mesmo nada ouvindo, mesmo sem nenhuma intervenção, mesmo sem nenhum milagre, mesmo no abandono, Jesus é capaz de se render àquele Deus em quem acreditava, que não via dentro de uma estrutura ambivalente de amor e ódio, a quem podia chamar Aba Pai. Este não era simplesmente projeção paterna, mas transcendia a estrutura edípica e culminava em amor que não se manifesta como representação, mas como ação para com o outro.

Jesus nos mostra que a relação com Deus deve ser adulta e não infantil. Mostra que nossa relação com Deus deve ser capaz de compreender que, mesmo no seu abandono, somos capazes de dar o salto de fé e nos lançarmos em direção a ele que, por ser amor, nos acolherá. Mesmo nada garantindo esse acolhimento, Jesus nos ensina que vale a pena entregar nosso espírito nas mãos de Deus.

É exatamente neste sentido que vemos o perigo, sempre presente, de romancear as figuras de Deus e de Jesus. Transformar este em um tipo de santo, para quem nada nesse mundo era objeto de sofrimento, é ignorar sua humanidade. Da mesma forma, romancear a figura de Deus como quem sempre reponde, está presente e traz solução é transformá-lo em uma espécie de super-herói, algo longe do Deus bíblico. Ao procedermos assim com essas figuras, perdemos o cerne da questão bíblica, que consiste na tentativa de um povo falar do seu Deus e de sua relação com ele, evidenciando todas as ambivalências e angústias dessa relação e a característica maior da religião cristã que é o amor.

Cristalizar a imagem de Deus é não se abrir para a experiência traumática de amar e ser amado, amar e deixar-se ser amado pelo outro. Consiste também em não entender que o vento sopra onde quer, em tentar ser maior que o criador ou transformá-lo em ser imóvel – quando, na realidade, se ele é amor, nada pode ser mais plástico e mais multifacetado.

Jesus nos aponta outra forma de lidar com Deus, uma forma não romanceada, não cristalizada, e se pensarmos bem, aí está o cerne do cristianismo. Um Deus que não se deixa cristalizar, mas sempre se revela em amor que se revela de diversas formas.’


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