segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A heresia do cristianismo simplista e simplificado

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

Detalhe do desenho a bico de pena de  

Detalhe do desenho a bico de pena de "A parábola do cisco e da trave (Mateus 7: 3)", do artista alemão Ottmar Elliger, o Jovem, por volta de 1700 (Museu Metropolitano de Arte/NCR)

*Artigo de Daniel P. Horan,

professor


‘Uma das melhores definições de heresia que ouvi ao longo dos anos é a descrição da experiência de confundir parte da verdade com toda a verdade em uma questão de fé ou de doutrina. Essa descrição revela claramente o que há de tão atraente nas heresias e por que tantos cristãos inevitavelmente se apaixonam por elas. As heresias são sempre parcialmente corretas, mas na ausência de perspectivas, de reflexão e das complexidades necessárias que a teologia cristã requer, um herege inconscientemente falha em aceitar a totalidade da posição ortodoxa.

A maioria das heresias cristãs clássicas condenadas pelos concílios da Igreja seguem esse tipo de padrão. Em cada caso, cristãos bem-intencionados e fiéis debatem a definição de crenças, procurando entender melhor sua fé. Eventualmente, alguns campos ideológicos se formam e a história revela que muitas vezes é o lado ultra simplificado e reducionista aquele que cai no erro.

pelagianismo é herético não porque entende de maneira errada a liberdade humana, mas porque falha em considerar adequadamente a realidade e a consequência do pecado original que afeta de forma perniciosa o exercício da liberdade humana. Várias formas de gnosticismo são heréticas, não porque a fé cristã não tem nada a ver com o intelecto ou com o conhecimento, mas porque falham em reconhecer que o cristianismo autêntico não é redutível ao conhecimento – muito menos ao ‘conhecimento secreto’ reservado para poucos escolhidos – e em reconhecer que o mundo criado é realmente bom e foi amorosamente trazido à existência pelo único Deus.

Como o papa Francisco observou no segundo capítulo de sua exortação apostólica Gaudete et Exsultate, ‘sobre o chamado à santidade no mundo de hoje’, os fantasmas do pelagianismo e do gnosticismo continuam assombrando a Igreja hoje, embora de formas renovadas. Mas mesmo sem os rótulos de erros antigos, a predisposição geral e o desejo subjacente de simplicidade, de um enquadramento binário e de um pensamento em preto e branco, continua ameaçando a crença ortodoxa para os cristãos modernos.

É compreensível que as pessoas ao longo da história tenham buscado respostas fáceis e estruturas simples em um esforço para dar sentido a um mundo em mudança e, às vezes, inexplicável. Especialmente durante períodos de turbulência e adaptação social e cultural acelerada, muitas pessoas olham para a religião como uma âncora de significado e uma fonte de segurança. E, de fato, deveriam.

O princípio mais central do cristianismo é que Deus amou o mundo de tal maneira que se encarnou nesse mundo como um de nós para revelar totalmente quem ele é e quem somos nós. Essa crença fundamental sobre o amor incompreensivelmente generoso e incondicional de Deus deve ser reconfortante e fonte de sentido.

O problema não está na atração pela religião em geral e pelo cristianismo em particular como âncora no mar tempestuoso da modernidade. A questão é que muitas pessoas remodelam o Cristianismo – seus ensinamentos doutrinários e orientação moral – em ídolos de sua própria criação, a fim de compreender uma mensagem equivocadamente simples e falsamente clara.

Normalmente, essas pessoas caem involuntariamente em uma espécie de heresia porque se apropriam de ideias, proposições, perspectivas e elementos da fé cristã apenas em parte e só na medida em que atende a sua visão de mundo, em uma tentativa de amenizar sua ansiedade sobre as complexidades da vida. Ironicamente, esses hereges desconhecidos pretendem ser ‘tradicionais’ ou ‘ortodoxos’, promovendo uma linha absolutista de sua visão de mundo proposicional à sua conveniência e que, por sua vez, rejeita a ampla gama de perspectivas cristãs legítimas e o desenvolvimento da doutrina.

Podemos ver isso em muitas discussões contemporâneas sobre a fé e a moral cristã.

Vemos isso na maneira como alguns católicos ficam obcecados com a presença real de Cristo na Eucaristia, mas com exclusão das três outras maneiras como a Igreja ensina que Cristo se torna presente na celebração da liturgia. E como as espécies eucarísticas de pão e vinho consagrados se tornam as armas em batalhas sectárias, em vez de representarem o meio pelo qual a verdadeira presença sacramental de Cristo é comunicada à Igreja, que também é o corpo de Cristo.

Vemos isso na forma como alguns católicos reduzem os ricos e matizados ensinamentos morais da Igreja para se concentrar exclusivamente no aborto, excluindo outros pecados sociais igualmente graves ou maiores, como pena de morte, tortura, desigualdade econômica, eutanásia, injustiça racial, entre outros. E como esse reducionismo distorcido focado em uma questão única é implantado contra aqueles que são percebidos como inimigos políticos.

Vemos isso na maneira como alguns católicos tratam a Sagrada Escritura com zelo fundamentalista, alegando que certas coisas são imutáveis ou pelo menos incontestáveis de acordo com sua hermenêutica biblicista, apesar da proibição clara da Igreja Católica de uma interpretação literal das Escrituras. A Escritura deve ser interpretada, contextualizada e compreendida por seu público em seu próprio tempo e contexto, a fim de compreender como o Espírito Santo fala conosco em nosso tempo.

A verdade é que o Cristianismo não é uma religião para aqueles que buscam respostas fáceis ou pensamento em preto e branco. Enquanto esse falso cristianismo promove abordagens ‘absolutas’ da fé e da moral, o verdadeiro cristianismo sempre foi uma tradição do ‘tanto quanto’. A encarnação não pode ser reduzida nem à divindade nem à humanidade, mas sempre a Deus e ao homem. A tradição moral também não pode ser reduzida à preocupação com uma questão de vida, mas ela só faz sentido na promoção de uma ética de vida consistente que inclua todas as populações.

Enquanto a temporada política deste ano nos Estados Unidos se encaminha para a reta final, antes de uma histórica eleição presidencial, durante uma pandemia global histórica, muitos debates públicos e comentários sobre o que constitui o catolicismo ‘genuíno’ ou ‘verdadeiro’ ou ‘ortodoxo’ têm e continuarão afetando o palco a nível nacional. Com o ex-vice-presidente Joe Biden, católico devoto, como candidato democrata à presidência, essas discussões e debates estão fadados a se tornarem mais acalorados e contenciosos, à medida que os políticos procuram aproveitar um cristianismo simplificado demais para promoverem seus objetivos eleitorais.

Já vimos como alguns clérigos guerreiros da cultura, incluindo bispos, rejeitaram a catolicidade de Biden de acordo com esse tipo de lógica. A ideia é que, por causa da filiação a partidos políticos ou apoio legislativo para políticas em conflito com o ensino católico (uma realidade que afeta igualmente as plataformas republicana e democrática, nenhuma das quais está totalmente alinhada com o ensino da Igreja), um cristão católico individual é indevidamente demitido ou rejeitado como ilegitimamente ou insuficientemente católico. A heresia aqui é a redução do Cristianismo a uma única questão – geralmente uma questão de preferência ou escolha pessoal de alguém – como o único padrão para julgamento sem qualquer consideração necessária de avaliação prudente ou consciente.

Mas também é importante perceber que aquilo que começa como heresia na fé leva à hipocrisia em ação. Esses guerreiros culturais que pintam o cristianismo em geral e o catolicismo em particular como redutíveis a uma única questão não consideram a si próprios ou seus partidos políticos e líderes preferidos com os mesmos padrões. Lembro-me de Jesus dizendo algo sobre esse tipo de comportamento em relação ao cisco e traves no olho (Mateus 7,5). O que os reducionistas proclamam como ortodoxia é, na verdade, uma heresia, porque é apenas uma parte de todo o quadro; o que eles fazem na prática é na verdade hipocrisia, porque são culpados das mesmas coisas que acusam dos outros em termos de heterodoxia.

A maneira de evitar cair nesse tipo de heresia involuntária é evitar simplificar demais o Cristianismo e aceitar a tradição maravilhosamente diversa e maravilhosamente complexa que nos foi transmitida. Pode ser desconcertante para alguns que a doutrina não pode ser justificadamente reduzida a afirmações proposicionais ou que as Escrituras nem sempre podem ser lidas meramente pelo seu valor literal ou que dilemas morais não podem ser resolvidos pela memorização de uma lista de regras.

No entanto, vamos nos confortar no fato de que o Espírito Santo está vivo e ativo no desenvolvimento da doutrina, na interpretação da Escritura e na formação de nossas consciências. Abraçar esta verdade fundamental sobre a complexidade e alcance inevitáveis da tradição é o início de uma fé cristã autêntica e madura.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1467228/2020/08/a-heresia-do-cristianismo-simplista-e-simplificado/

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