sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Investigação vaticana de congregações religiosas não é caça às bruxas


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 A congregação dos Apóstolos de Jesus recebeu intervenção do Vaticano.
A congregação dos Apóstolos de Jesus recebeu intervenção do Vaticano. (Apostles of Jesus Missionaries)

*Artigo de Jose Carlos Rodriguez Soto
Tradução : Ramón Lara


‘A recente intervenção do Vaticano aos Arautos do Evangelho mais uma vez causou uma cascata de reações de certos comentaristas religiosos que usam um clichê repetitivo. Segundo alguns, sob o pontificado de Francisco, teria sido desencadeada uma caça às bruxas – liderada pelo cardeal João Braz de Aviz – contra novas congregações religiosas abençoadas com abundância de vocações, graças a uma alegada fidelidade à tradição católica. Temo que as coisas sejam muito mais complicadas.

Não conheço os Arautos do Evangelho ou outras congregações em situações semelhantes, como os Franciscanos da Imaculada, além do que pude ler sobre eles. Mas desde os anos 1980, tive a oportunidade de ver de perto, em vários países africanos, congregações religiosas de criação mais ou menos recente na África ou na América Latina que obedecem a um padrão semelhante e acabaram sofrendo intervenção vaticana.

Regras, liturgias e sinais externos

Fundados por um caráter mais ou menos carismático, geralmente com fortes vínculos com líderes políticos muito conservadores, eles seguem regras de vida, liturgias e sinais externos anteriores ao Concílio Vaticano II e se estabelecem em uma diocese, onde um bispo os recebe na ausência de pessoal apostólico e, no final, acabam criando desastres reais. Às vezes, por ignorar totalmente os planos pastorais oficiais e criar divisões nas paróquias em que antes trabalhavam em harmonia; outras vezes, por absorver em suas fileiras jovens problemáticos que foram expulsos do seminário ou de outros noviciados sem se preocupar em saber o porquê, abriram-lhes as portas e quase sempre por causa de escândalos financeiros. Em muitos casos, as divisões internas criaram conflitos ferozes ao eleger superiores provinciais, por exemplo. Isso, sem mencionar as irregularidades flagrantes, como a nomeação de um novo religioso como mestre de noviços, que acabara de fazer os primeiros votos.

Entre os casos que conheci de perto, posso mencionar os Apóstolos de Jesus, a primeira congregação religiosa africana exclusivamente missionária, que é investigada pelo Vaticano há mais de um ano. Foi fundada em 1968, em Uganda, pelo padre comboniano Giovanni Marengoni, que morreu em 2007. Eu o conheci pessoalmente e nunca tive a menor dúvida de que era um homem santo de Deus, de profunda espiritualidade e grande vontade de sacrifício. Nunca aceitou de bom grado as mudanças que ocorreram em sua congregação e, ao fundar os Apóstolos de Jesus, escreveu algumas regras da ordem que eram, com poucas diferenças, praticamente iguais às dos combonianos antes das mudanças pós-conciliares. A congregação conheceu um grande florescimento vocacional durante os anos 1970, 1980 e 1990 e atraiu jovens de países como Uganda, Quênia, Tanzânia e Sudão para serem missionários em sua própria terra africana.

Confrontos na comunidade

Logo as coisas começaram a mudar. Durante meus anos em Uganda, conheci várias paróquias em que os Apóstolos de Jesus deixaram um triste legado de confrontos na comunidade católica, peculato financeiro e colapso de planos pastorais que levaram muitos anos para serem erguidos. Em alguns casos, tiveram que sair correndo para não serem vítimas de agressões de catequistas e líderes de conselhos pastorais fartos de seus pequenos desastres apostólicos.

Após a morte do padre Marengoni, os novos superiores decidiram abrir comunidades nos Estados Unidos, onde muitos bispos aceitam padres africanos como terra árida acolhe água, para servir suas comunidades de maioria afro-americana, supondo (muitas vezes erradamente) que entenderão melhor sua mentalidade.

Chegou um momento em que um número desproporcional de membros da congregação se estabeleceu confortavelmente nos Estados Unidos, deixando de lado o carisma original da congregação como missionários em locais de primeira evangelização na África. A isso juntaram-se lutas internas pela liderança. Basta pensar que um de seus recentes superiores gerais cumpriu um período muito curto de dois meses antes de ser removido do cargo.

Quando soube que a congregação havia sido investigada – com um novo general superior imposto de fora para ordenar suas fileiras – fiquei um pouco surpreso. Contra os argumentos simplistas dos descontentamentos com Francisco, que veem injustiças e ambiguidades, é preciso pensar que, geralmente, antes de tomar decisões fortes, como a intervenção de uma congregação religiosa, o Vaticano envia um visitante apostólico que comumente lidera uma equipe competente de pesquisadores. Eles examinam detalhadamente os problemas durante períodos que normalmente duram pelo menos dois anos. Não creio que uma decisão baseada em uma investigação séria possa ser descrita como arbitrária.

Um ‘comissário político’

Termino com uma anedota que uma vez me fez rir, embora não deve ter sido tão engraçado para os padres e jovens seminaristas da história. Durante meus anos de formação, vivi a uma curta distância do seminário menor de uma daquelas congregações tradicionalistas que ostentam grandes massas de vocações. Para os meninos, durante seus períodos de férias em família, seus superiores enviaram os jovens acompanhados por um seminarista mais velho para garantir sua boa saúde espiritual e impedir que se ‘desviassem’ atraídos pelas tentações do mundo.

Um dos pais, que conhecia, deve ter pensado erroneamente que eu tinha algo a ver com esses religiosos e se queixou de que seu filho foi enviado de férias acompanhado por ‘um comissário político’. Essa foi uma das muitas coisas raras que se encontra em congregações desse tipo sobre as quais não me surpreende que sejam investigadas e expostas.


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