terça-feira, 17 de junho de 2025

A economia monástica como motor de mudança [1]

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Abadia de Keur Moussa


*Artigo de Isabelle Jonveaux

 

‘Qualquer que seja o modelo economico desenvolvido pelas comunidades, observa-se ao longo da história monástica que os mosteiros foram sempre forças de mudança social . Philibert Schmitz, historiador da Ordem beneditina, fala da «obra civilizadora» [2] dos monges da Europa. Em que medida o monaquismo atual pode desempenhar um papel de inovação e de desenvolvimento? 

1. Porque são os mosteiros lugares de inovação?

Se os mosteiros estiveram sempre no meio da história dos focos de inovação e de desenvolvimento quando isto não constituía de nenhum modo o seu primeiro objetivo, isto significa que a estrutura monástica apresenta características próprias que podem conduzir a esta dinâmica. Segundo Olivier de Sardan [3], a inovação pode definir-se como um «enxerto de técnicas, de saberes ou de modos de organização inéditos (em geral sob forma de adaptações locais a partir de concessões ou de importações) sobre técnicas, saberes e modos de organização in loco [4]. Ele sublinha também que a inovação deve ser considerada como um processo social.

Para começar, uma comunidade monástica não é um grupo econômico que tem o lucro como objetivo a obter. A economia permanece teoricamente ao serviço da subsistência da comunidade. Isto tem por consequência a possibilidade de se incorrer em risco porque o objetivo imediato da comunidade não está no resultado de excedentes de exploração ao fim do ano. A comunidade monástica é por outro lado durável; este grupo tem uma duração de vida mais elevado do que uma empresa e pode assim assumir risco ou investir em capital humano. A comunidade monástica projeta-se em um longo termo ligado à ideia de estabilidade (stabilitas loci). Além disso, este grupo está na maioria das vezes em paz social; define-se a si próprio como um grupo de pessoas que procuram Deus. A dimensão durável da comunidade torna assim possível a transmissão de experiências e de conhecimentos. Vale lembrar por exemplo os trabalhos de copistas dos monges que permitiram conservar e de transmitir durante toda a Idade Média os seus conhecimentos em medicina, agricultura, botânica, etc. Enfim, a longa história do monaquismo permite melhorar diferentes dimensões e tomar como exemplo a experiência vivida por outras comunidades ou de outras épocas :

«A notável estabilidade do monaquismo é em grande medida uma estabilidade da memória, uma continuidade da compreensão que se estende por trinta gerações ». [5]

Mesmo que a comunidade seja recente, cada mosteiro integra-se na longa tradição do monaquismo, o que constitui um modo da sua legitimação. [6] 

2. Economia e desenvolvimento na África

Nos países em vias de desenvolvimento onde o monaquismo é frequentemente uma implantação recente, as comunidades realizam um papel importante para o desenvolvimento econômico e social. Jean-Pierre Olivier de Sardan definiu o desenvolvimento como um «conjunto de processos sociais induzidos por operações voluntaristas de transformação de um meio social, empreendidas pela direção de instituições ou de atores externos a esse meio, mas procurando mobilizar esse meio» [7]. No caso do monaquismo, o desenvolvimento assume no entanto diferentes dimensões. Como já foi mencionado, inovação e desenvolvimento não são em si objetivos da vida monástica, mas podem tornar-se elementos positivos. Isto significa que o desenvolvimento é uma consequência de atividades motivadas por um objetivo monástico, ou seja, que servem o fim religioso da vida monástica. Por exemplo, os monges da Idade Média desenvolveram a força hidráulica para ganhar tempo para a oração [8].

O desenvolvimento ocasionado pelos mosteiros na África contemporânea é mais frequentemente um acessório positivo que decorre das atividades ou inovações do mosteiro. Como diz o Abade de Keur Moussa : «Nós não procuramos o desenvolvimento, ele vem por acréscimo». As comunidades de inspiração beneditina têm na sua tradição desenvolver dentro e à volta do mosteiro as condições que lhes permitam prover às necessidades da comunidade. Isto significa no contexto de uma nova fundação que os monges e monjas trabalharão por tornar as suas terras aráveis, assegurar a presença de água e conduzir ou produzir eletricidade. A abadia de Keur Moussa no Senegal adotou como divisa esta frase : «E o deserto florirá» (Isaías 35, 1), tendo com efeito tornado possível a agricultura das suas terras até então áridas e introduz novas espécies no ambiente. O emprego de assalariados locais contribui também para o desenvolvimento dando trabalho às pessoas dos arredores. Para um monge queniano do mosteiro Our Lady of Mount Kenya, trata-se da dimensão principal da sua atividade de desenvolvimento. Enfim, a formação de monges e monjas é também uma parte direta do desenvolvimento. De maneira indireta, o mosteiro participa no desenvolvimento da sua região enquanto atrai populações que vêm se instalar nas imediações para se beneficiar de um trabalho, de um dispensário ou de uma escola.

Uma outra dimensão do desenvolvimento monástico vem com efeito da resposta dos monges e monjas às exigências locais. Dado que as primeiras comunidades religiosas presentes na África eram congregações missionárias que tinham por fim desenvolver escolas, dispensários e hospitais, este mesmo tipo de demanda foi dirigido aos monges logo que se instalaram num ambiente novo. É por esta razão que os monges de Keur Moussa vindos de Solesmes trazendo com eles um modelo estritamente contemplativo e enclausurado de vida monástica, tiveram de abrir uma escola e um pequeno dispensário. Todavia, logo que lhes foi possível, confiaram a escola a leigos e o dispensário a uma Congregação apostólica de irmãs. Conforme disse um monge numa entrevista : «As mulheres que chegavam prestes a dar à luz eram assistidas pelos monges, quando essa não é de todo a missão de um monge!» As comunidades monásticas sustentam também por vezes programas sociais, por exemplo o mosteiro Our Lady of Mount Kenya participa num projeto de agricultura sobre o solo para ajudar as famílias pobres a tornarem-se autosuficientes. 

3. A economia monástica como economia alternativa

A economia monástica pode também constituir uma força de mudança no próprio interior da economia trazendo modos alternativos de vivê-la. Em contexto europeu por exemplo, os mosteiros procuram oferecer uma alternativa à abordagem capitalista e desenvolvem em certos casos reais reflexões e propõem cursos sobre este tema [9]. A irmã francesa Nicole Reille fala assim da economia das Congregações como de uma «economia profética», graças ao testemunho que ela pode prestar ao mundo através de investimentos éticos nas pessoas.

A dimensão alternativa da economia dos mosteiros africanos é observável também em ligação com o contexto específico, porque a alteridade não se constrói a não ser em relação com as normas da sociedade. Uma primeira dimensão concerne a maneira cujo trabalho é vivido e justificado na vida monástica. Dado que o trabalho poderia à primeira vista entrar em contradição com o ideal monástico, os monges e monjas utilizam diferentes formas de justificação nos relacionamentos. Por exemplo, uma jovem irmã de Karen :

«Eu pratico o trabalho com amor, não simplesmente para cumpri-lo. Faço-o com muito amor. Ao ponto de as irmãs sentirem elas próprias que o seu hábito é lavado com amor. Se fizerdes a limpeza de um espaço com amor alguém vai repará-lo e dizer : ‘Sim, isto foi feito com amor’. Importa pouco para isso saber o que aprendestes na escola, mas o que trazeis assim para a comunidade.»

Um exemplo interessante vem de Séguéya na Guiné Conackry na situação particular deste Estado comunista onde os monges contribuem dando um novo valor ao trabalho : os monges trabalham com as suas mãos, eles tentam tudo fazer para obter uma atividade lucrativa.

«A Guiné tem como particularidade não ter uma verdadeira cultura do trabalho, por causa do sistema político. As pessoas perderam a cultura do trabalho. E o fato de ver os irmãos trabalhar e lavrar a terra deu às pessoas o desejo de fazer a mesma coisa. Penso que é uma mensagem que passa.» (04/07/2016)

Uma segunda dimensão é o management humano e social desenvolvido pelas comunidades para com os seus assalariados. A dimensão social do recrutamento é um critério que prevalece por vezes sobre o desempenho econômico. Em Keur Moussa, o celeireiro explica :

«Primeiro a dimensão social. Desde o começo, teve-se esta exigência social de querer ajudar aqueles que não têm trabalho à nossa volta e que vêm pedir trabalho. Gostaríamos de fazer mais, mas os nossos meios são limitados. Ajudamos muita gente à nossa volta.» (04/07/2016)

Por outro lado, certas comunidades africanas pagam as contribuições sociais dos seus assalariados, o que não observamos sempre nas nossas sociedades.

Enfim, o desenvolvimento durável e a ecologia são assuntos que se implantam cada vez mais na agricultura biológica. No Kenya, os monges desenvolvem a energia solar e a reciclagem da água para contornar esta dificuldade esperando ligar-se à rede central. O mosteiro de Agbang (Togo), que vive também da energia solar, constitui uma fonte de eletricidade para os Peuls da selva que vêm recarregar os seus aparelhos celulares no mosteiro.

Conclusão

O que é a economia monástica? Neste ponto, podemos dizer que não existe uma economia monástica em si, mas diferentes formas de economia dos mosteiros que dependem da história política e religiosa de cada país e do presente contexto econômico e social. Todavia, observam-se certas tendências comuns no sentido que as comunidades desejam imprimir à sua atividade econômica. A forma da economia toca um papel importante para a plausibilidade da vida monástica numa sociedade porque ela constitui frequentemente um dos primeiros vetores de comunicação com o mundo. Ela influencia por outro lado a forma de vida monástica e inversamente.

A economia dos mosteiros africanos é uma economia que ainda procura frequentemente a estabilidade e reflete as especificidades do contexto socioeconômico bem como as influências do modelo do fundador. Mas é também frequente que pelas suas atividades econômicas os mosteiros possam desempenhar um papel no desenvolvimento do seu meio ambiente. Sem que seja um objetivo da vida monástica em si, observa-se, segundo as palavras de Max Weber, uma «afinidade eletiva» entre economia monástica e desenvolvimento econômico, social e cultural do ambiente no qual o mosteiro está integrado. A vida monástica pode pois ter uma influência sobre o seu ambiente local e mesmo, quando a base monástica é suficientemente densa, influenciar a própria sociedade como se pôde ver na história europeia.’ 

 

[1] Isabelle Jonveaux é socióloga, responsável por cursos na Universidade de Graz e membro do CéSor (Paris). Trabalha principalmente sobre as questões da vida monástica (economia, trabalho, ecologia, relações de gênero, disciplina do corpo, ascese), internet e religião (práticas religiosas online, jejum de internet), mas também de jejum e consumo alternativo (períodos de jejum e abstinência, sobriedade positiva...). Desenvolve atualmente um projeto de investigação sobre a vida monástica católica na África. O artigo proposto aqui é uma parte da sua intervenção no colóquio do Instituto monástico de Santo Anselmo em Roma sobre «Vida monástica e economia» (cf. Studia Anselmiana Monasticism and Economy: Rediscovering an Approach to Work and Poverty, Acts of the Fourth International Symposium, Roma, 7-10 de junho de 2016.

[2] P. Schmitz, História da ordem de São Bento, tomo II. Obra civilizadora até ao século XII, Maredsous, 1943, p. 18.

[3] Jean-Pierre Olivier de Sardan é um antropólogo francês nigeriano, atualmente professor de antropologia (diretor de estudos) na Escola de altos estudos em ciências sociais de Marselha.

[4] J.-P. Olivier de Sardan, «Antropologia e desenvolvimento. Ensaio de socio-antropologia sobre a mudança social», Marselha-Paris, 1995, http://classiques.uqac.ca/contemporains/olivier_ de_sardan_jean_pierre/anthropologie_et_developpement/anthropo_et_developpement.pdf [acesso:11-11-18].

[5] R.H. Winthrop, «Leadership and Tradition in the Regulation of Catholic Monasticism», Anthropological Quarterly 58 (1985) 30.

[6] B. Delpal, «O Silêncio dos monges. Os Trapistas no século XIX», Paris, 1998, p. 15.

[7] Olivier de Sardan, «Antropologia e desenvolvimento».

[8] M. Derwich, «A vida quotidiana dos monges e cônegos regulares na Idade Média e Tempos Modernos», Wroclaw, 1995.

[9] I. Jonveaux, O Mosteiro no trabalho, Paris, 2011.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/119

domingo, 15 de junho de 2025

Dom Basílio Penido (1914-2003)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Matias Fonseca de Medeiros, OSB

 

I – Christo nihil praeponere (Nada preferir a Cristo)

‘Assim que na tarde de 24 de novembro de 1961, Dom Basílio Penido recebeu da Nunciatura apostólica o decreto da Santa Sé nomeando-o abade-coadjutor da abadia de Olinda (Brasil), o jovem prior e vigário geral da abadia nullius do Rio de Janeiro, «não soube o que dizer». Inesperada, esta notícia comoveu-o profundamente! Monge feliz e homem de coração, Dom Basílio amava a sua comunidade, era amado pelos seus irmãos monges e não queria deixar nem o seu mosteiro nem a sua cidade natal onde a sua família vivia. Entretanto, o decreto não lhe deixava opção : devia obedecer e... partir! A sua intenção entretanto era dizer «não» uma segunda vez.

Para apaziguá-lo, o seu abade, tendo ainda em mãos o documento romano, pediu-lhe que fosse diante do sacrário e que «se pusesse à escuta do bom Deus». Durante este momento de oração e também de angústia, duas palavras lhe vieram ao espírito : obediência e humildade! Antigo aluno dos jesuítas, aprendera com Santo Inácio a virtude de «obedecer como um cadáver»; mas sabia também, como filho de São Bento, que «o primeiro degrau da humildade é a obediência sem demora; ela caracteriza aqueles que estimam nada ter de mais caro que Cristo». Oração cumprida, a alma em paz, tomou logo como divisa abacial : Christo nihil praeponere (Nada preferir a Cristo). A sucessão dos fatos mostraria que esta escolha não era somente coerente mas sobretudo consequente com tudo o que se iria passar durante o tempo do seu ministério como abade de Olinda (1962-1987) e presidente da Congregação brasileira (1972-1996). A partida para Olinda foi para ele «um verdadeiro sacrifício de Abraão».

Em 1966, pela primeira vez, viajou para Roma a fim de tomar parte do Congresso dos Abades da Confederação Beneditina, o primeiro após o Concílio Vaticano II. Graças às cartas circulares enviadas à sua comunidade de Olinda, de grande riqueza de deta-lhes, os leitores puderam acompanhar passo a passo o desenrolar do Congresso, pautado sobre a renovação da vida monástica na ótica do Concílio : um assunto nada simples ou fácil! Dom Basílio fez-se notar!

Nascido no Rio de Janeiro em 1914, viveu aí até à idade de seis anos quando o seu pai, nomeado adido militar da Sociedade das Nações, teve de mudar-se para Paris com toda a sua família. Muito dotado para as línguas, além do português, a sua língua materna, o pequeno José Maria (seu nome de batismo) dominava à vontade o francês, aprendido no colégio de Santa Cruz de Paris onde frequentou a escola primária; e, simultaneamente, o inglês em casa com a sua «nurse» britânica. Após fazer a sua primeira comunhão na paróquia parisience de Nossa Senhora das Graças de Passy, a sua família regressou ao Brasil após três anos de ausência.

Terminados os seus estudos no colégio de Santo Inácio, no Rio de Janeiro, o jovem José Maria entrou no noviciado dos jesuítas. Entretanto, a vivacidade do seu temperamento não correspondia às exigências da disciplina inaciana. Esgotado, deixou o noviciado e entrou na faculdade de medicina para, após seis anos, tendo obtido o seu doutoramento, fazer-se monge. Seguir as «observâncias monásticas» tal como eram na época, foi-lhe igualmente penoso. «Atingi o limite das minhas forças», dizia. E no entanto todas estas experiências o modelaram; sem nada perder da sua autenticidade e sem a menor mágoa, havia amadurecido!

Enquanto estudante de medicina, começou a frequentar a «Ação Universitária Católica», que reunia a juventude universitária católica, e que esteve na origem do «Instituto Superior de Estudos Católicos». Muito interessado pela renovação litúrgica e patrística, um bom número destes jovens entraram na vida religiosa e no clero secular.

Homem de comunicação fácil sempre cheio de entusiasmo, a sua cultura geral e muito ampla, aliada a uma grande simplicidade, fez dele, muito cedo, um verdadeiro «leader». Personalidade aberta e acolhedora, sedenta de tudo ver e compreender sem ser mundano, nenhum problema de ordem moral, política ou social lhe escapava.

A sua espiritualidade, profundamente ancorada nos Exercícios de Santo Inácio de Loyola e na regra de São Bento, não o fez esquecer outros autores espirituais que ele também apreciava : São João da Cruz, Santa Teresa do Menino Jesus, Charles de Foucauld, Thomas Merton.

Leitor apaixonado da literatura francesa, conhecia bem os escritos de Jacques Maritain, Paul Claudel, François Mauriac, Julien Green, Charles Péguy entre outros, como também Georges Bernanos, que se tornou seu amigo pessoal quando do exílio deste último no Brasil.

A renovação da Igreja, do pensamento teológico e sobretudo da vida monástica dos anos pós-conciliares encontraram nele uma ardente e fiel adesão. A prática desta renovação num mundo em mudança exigia muita sabedoria e prudência. Diante dos desafios que se apresentavam ele não hesitou, no momento certo, em fazer o que devia.

A sua capacidade de escuta e de diálogo com a comunidade permitiu-lhe, pouco a pouco, introduzir as reformas conciliares. Entre estas é preciso sublinhar a sua abertura ecumênica. Em 1966, acolheu em Olinda três irmãos de Taizé. Vivendo numa casa junto à abadia, os irmãos integraram-se bem na comunidade : tomavam parte em certos Ofícios litúrgicos, nas refeições comunitárias e no trabalho manual.

O cuidado dos pobres, que numa lamentável e aflitiva situação viviam à volta do mosteiro, não lhe escapava menos. Vastos terrenos da propriedade da abadia, com o consentimento da comunidade e das autoridades civis, foram doados aos mais desvalidos para que pudessem aí ter o seu domicílio. Assim nasceu em Olinda um novo bairro chamado até hoje «Vila São Bento».

Para uma ‘caminharem juntos’, quando do Congresso dos abades de 1967, convidados por Dom Basílio, os abades e priores dos mosteiros brasileiros presentes reuniram-se para refletir sobre o seu projeto de estabelecer laços mais fraternos e mais próximos entre as diversas comunidades no Brasil sob a regra de São Bento. Era preciso encontrar uma linguagem comum que pudesse exprimir o carisma monástico, a sua vocação e missão na sociedade e em face desta. Por medo de perder as suas próprias tradições, os abades tiveram discussões «particularmente difíceis». Tendo compreendido que o objetivo principal deste reunião não era senão «fazer a unidade na diversidade, os superiores finalmente aceitaram o projeto de se reaproximar. A decisão foi fundar a Conferência de Intercâmbio Monástico do Brasil – CIMBRA. Dom Basílio foi eleito o primeiro presidente da organização. 

II – In carcere eram (Eu estava preso)

O ano de 1964 marcou uma transição decisiva na vida política do Brasil e também da Igreja. A 31 de março, um golpe de estado impôs ao país uma ditadura militar que duraria vinte e um anos. Algumas semanas depois, Monsenhor Hélder Câmara tornou-se arcebispo de Olinda e Recife. Num primeiro momento, as relações do novo arcebispo com as autoridades no poder eram respeitosas, o diálogo era possível. Todavia, ao endurecimento do regime seguiram-se atos de repressão. Encarcerados os oponentes, tortura, perseguição política tornavam cada vez mais difíceis as relações entre ambas as partes. Graças às suas boas relações com alguns oficiais, Dom Basílio torna-se o intermediário entre Dom Hélder, franca e abertamente oposto a todo o tipo de violência, e o comando militar do Recife. Sempre do lado do arcebispo, de quem era amigo fiel e mesmo um confidente, cumpriu com sucesso esta missão tão complexa!

Homem de grande coragem – por vezes audacioso – durante estes anos obscuros, assim que a perseguição, seguida de prisão e tortura, tocou jovens estudantes universitários, não hesitou, correndo grandes perigos, em esconder alguns deles no mosteiro para em seguida facilitar a sua fuga e salvar as suas vidas!

Os prisioneiros políticos, jovens ou não, eram então muito numerosos. Como padre e médico (!) chegou a visitá-los regularmente na prisões. Antes de aí entrar sofreria toda a sorte de humilhações da parte dos agentes de polícia encarregados da vigilância. Suportava-os com uma paciência e uma resignação admiráveis. Quando das reuniões comunitárias, muito discretamente, de tempos em tempos relatava alguma coisa. A um irmão indignado que lhe perguntou como podia ele tolerar todos estes inconvenientes, dava com toda a simplicidade a seguinte resposta : «Santa Teresa do Menino Jesus dizia que ‘tudo é graça’ : vê, Deus concedeu-me uma graça muito especial de poder assim tomar parte dos sofrimentos de Cristo na sua paixão; e depois, no dia do juízo final, é Jesus que me dirá : ‘Eu estava preso, e tu visitaste-me’». Dom Basílio foi sempre um homem de perdão e de misericórdia!

A sua cruz peitoral era em madeira com a sua divisa – «Christo nihil praeponere» – gravada nela. Um dia, quando de uma visita, um prisioneiro que, curioso, observava a cruz pediu-lhe que o deixasse vê-la de perto, sem nada dizer. Duas semanas depois, este jovem, que tinha algum conhecimento de marcenaria, em sinal de reconhecimento e de amizade, ofereceu-lhe, em nome dos seus companheiros de prisão e em seu próprio, uma nova cruz peitoral também em madeira, exatamente igual à original mas com uma nova divisa : «In carcere eram» («Eu estava preso»). Muito emocionado, a partir de então dom Basílio começou a utilizá-la.

O amor de Cristo preferido a qualquer outro era a única grande paixão de toda a sua vida! A sua profunda ligação à Igreja e aos irmãos, o seu incansável combate por «aqueles que têm fome e sede de justiça», sobretudo os pobres e os prisioneiros, os seus firmes compromissos para a renovação de uma vida monástica autêntica e fiel à tradição, mas ao mesmo tempo aberta e acolhedora aos valores da modernidade, testemunharam sem sombra de dúvida, a sua fidelidade a Cristo e ao Evangelho. Os últimos anos da sua vida, já doente, passou-os no seu mosteiro de profissão. É lá que ele regressa a Deus a 2 de junho de 2003 com a idade de 88 anos. Na alegria e na paz de Cristo ressuscitado, abriu novos caminhos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/119


sexta-feira, 13 de junho de 2025

A formação dos beneditinos e das beneditinas na Coreia do Sul

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo da Irmã Marie-Enosh Cho, OSB
Prioresa de Busan, Coreia do Sul
 

I- Formação inicial e noviciado

‘Cada Congregação faz seu próprio programa de formação para o período inicial. A formação é sobre a oração, o estudo, o trabalho, a vida comunitária : pode haver seminários, ou sessões para melhor compreender a natureza humana.

Entre a entrada na comunidade e a primeira profissão passam, em geral, quatro anos para as mulheres (um ano de aspirantado, um ano de postulantado, dois anos de noviciado) e dois ou três anos e meio para os homens.

Certas Congregações têm suas aulas sobre espiritualidade, catequese e teologia na formação inicial; outras enviam os candidatos/as para o Instituto de teologia de uma outra Congregação religiosa ou diocesana. Durante esta formação insiste-se na vida de oração, na educação, na experiência da vida religiosa.

- Cursos : Bíblia, teologia dogmática, liturgia, espiritualidade, psicologia, doutrina social da Igreja, regra de São Bento, constituições, estatutos, usos e costumes da Congregação, psicologia, ecologia, inglês, latim, música litúrgica, órgão.

- Seminários sobre compreender-se a si mesmo, (auto conhecimento), as relações, a comunicação.

- Acompanhamento espiritual regular e ajuda psicológica, se necessária.

- Experiência temporária de apostolado. 

II- Juvenato

1- Duração

. Mulheres : 5 a 6 anos

. Homens : 3 a 7 anos

2- Conteúdo da formação

Para as mulheres :

– orientação espiritual com a Mestra das professas temporárias : reuniões e retiros regulares;

– ‘Segundo noviciado’ de um ano antes dos votos perpétuos : trabalho e estudos; retiro inaciano de 30 dias;

– reuniões regulares de jovens professas no seio de cada Congregação;

– formações diversas sobre as missões de apostolado;

– trabalho no seio da Congregação e / ou missões apostólicas para a Igreja;

– experiência da missão e estudo de inglês para as futuras missionárias;

– encontros regionais mensais para as professas temporárias.

Para os homens :

– estudos de filosofia e de teologia em vista do sacerdócio. Os monges que não são destinados a ser padres estudam também a teologia e outras matérias necessárias para a missão apostólica;

– participação em seminários de psicologia espiritual para a compreensão de si mesmo (autoconhecimento);

– aconselhamento individual ou em grupo;

 – participação em missões e obras apostólicas.

Para os homens :

– estudos de filosofia e de teologia em vista do sacerdócio. Os monges que não são destinados a ser padres estudam também a teologia e outras matérias necessárias para a missão apostólica;

– participação em seminários de psicologia espiritual para a compreensão de si mesmo (autoconhecimento);

– aconselhamento individual ou em grupo;

 – participação em missões e obras apostólicas. 

3- Programas de formação intercongregacionais

Reuniões anuais para jovens professos das ordens beneditinas coreanas.

Conferências internacionais para os jovens professos de cada congregação.

III- Formação contínua

1- Programas de formação contínua organizados independentemente por cada Congregação

Para as mulheres :

– participação em programas de formação contínua propostos cada ano e também sobre a doutrina da Igreja, a renovação da vida religiosa, o conhecimento da natureza humana;

– participação em programas de formação contínua organizados pelas Congregações;

– retiro de 30 dias por ocasião de 10, 25 e 40 anos de profissão religiosa;

– participação no programa de formação para uma renovação, seis a doze meses antes, ou depois do jubileu de prata (25 anos);

– seminários de formação para as irmãs (mais velhas);

– peregrinação ao estrangeiro.

Para os homens :

– participação nas formações e seminários previstos no seio da Congregação;

– peregrinação ao estrangeiro.

2- Participação em cursos

Estes cursos sobre o crescimento pessoal, o meio-dia da vida, a responsabilidade pelos movimentos são propostos pelo Instituto de Teologia e o Instituto de Formação e organizados pela associação dos superiores maiores. 

IV- Seminários e Encontros para Responsáveis de Formação

1- Preparação destinada aos formadores que assumem a formação inicial ou contínua.

Depois da profissão perpétua, cursos sobre teologia, Escritura, Monaquismo, Regra de São Bento, Psicologia espiritual etc.

Cursos de formação de formadores na Coreia ou no estrangeiro.

Formação para o acompanhamento espiritual : a associação dos superiores maiores anima um estágio de um ano. 

2- Formação contínua dos responsáveis de formação

Os formadores reúnem-se cada ano : fazem o programa das reuniões e organizam as sessões sobre os assuntos escolhidos.

As reuniões de formadores são muito ativas na associação (formação inicial, formação contínua, vida religiosa e idade avançada…)

Participação em encontros internacionais de formadores organizadas pela Confederação Beneditina. 

V- Formação dos Superiores

A Associação dos Superiores Maiores organiza Conferências e reuniões para os superiores e superioras beneditinos.

Os superiores das congregações reúnem-se também para ouvir conferências, ou falar sobre um assunto determinado.

Os superiores das pequenas comunidades beneditinas reúnem-se cada ano para sua própria formação e para falarem de seu cargo e de sua responsabilidade.

Há também reuniões para os celeireiros (as). 

Informações suplementares sobre formação dos beneditinos coreanos

As Ordens beneditinas presentes na Coreia pertencem às Congregações dos Beneditinos de St Otilien ou de Tutzing (Alemanha), irmãs Olivetanas (Suíça), irmãos Olivetanos (Itália). Estas Congregações – com exceção da dos irmãos Olivetanos que se instalaram na Coreia do Sul nos anos 1980 – todas começaram na China ou na Coreia do Norte, país agora sob regime comunista. As comunidades que viveram expatriações, exílios e prisões por parte dos governos comunistas, foram para a Coreia do Sul.

Os beneditinos coreanos cresceram e encontraram estabilidade; podem dar testemunho da espiritualidade beneditina na Igreja católica coreana e servem a Igreja em diversos ministérios apostólicos.

As Beneditinas de Tutzing e as Olivetanas não são de clausura e assumem ministérios apostólicos; formam um grande grupo, com centenas de membros. O que distingue a vida das irmãs beneditinas coreanas é que têm ministérios apostólicos e vivem em pequenas comunidades.

Mesmo se o número de vocações diminuiu muito na Coreia, nos últimos 20 anos, ainda é muito grande em relação a outros países, e é provável que isto se deva ao esforço pela formação inicial e aos estudos. A Coreia era um país de missão; a catequese, a teologia, a Escritura, a Espiritualidade foram consideradas primordiais para a formação inicial e o aprofundamento do espírito cristão; tudo isto influenciou favoravelmente a aprendizagem e a compreensão dos princípios fundamentais da vida consagrada.’

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/119

quarta-feira, 11 de junho de 2025

As relíquias que contam a vida de Santo Antônio

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo do Frei Augusto Luiz Gabriel, OFM

 

Santo Antônio de Pádua, também conhecido como Santo Antônio de Lisboa (1195-1231), é celebrado não apenas por sua fecunda pregação e amor à Eucaristia, mas também pelo mistério da incorruptibilidade das relíquias que permanecem visíveis até hoje. Dentre essas preciosidades, destaca-se a relíquia de sua língua, conservada em um relicário na Capela do Tesouro da Basílica de Pádua, cujo estado preservado desafia a compreensão científica e enche de fé os peregrinos.

A língua incorrupta de Santo Antonio

Conta a história que, logo após sua morte, em 1231, durante o processo de canonização começaram a ser distribuídas várias relíquias de Santo Antônio. Em 30 de maio de 1232, o Papa Gregório IX, antigo amigo pessoal de Antônio, inscreveu-o no catálogo dos santos em cerimônia na catedral de Espoleto. 

Em 8 de abril de 1263, o ministro-geral da Ordem dos Frades Menores, São Boaventura da Bagnoregio, ao trasladar o corpo de Antônio para a basílica do santo em Pádua, encontrou sua língua incorrupta e mandou colocá-la em relicário. Em 14 de junho de 1310, o túmulo foi transferido para outra capela da mesma basílica.

Em 15 de fevereiro de 1350, o Cardeal Guy de Boulogne mandou colocar o queixo em um relicário e inventários posteriores mencionam fragmentos de braço, mão, dente, parte da túnica, cabelos, rádio, dedo e pele da cabeça. Parte do rádio foi, em 1968, remetida à Catedral de Lisboa.

De 6 de janeiro a 15 de fevereiro de 1981, realizou-se um segundo reconhecimento dos restos mortais, confirmando que as cartilagens do aparelho fonador continuavam incorruptas.

A relíquia mais famosa, sua língua, permanece visível e intacta no relicário da Capela do Tesouro da Basílica de Pádua, mistério que a ciência não explica e milagre que a fé celebra e reforça a devoção dos peregrinos.

Da vida de Fernando ao Frade Antonio

Originalmente batizado como Fernando, ingressou na Ordem dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho em Lisboa. Em 1220, diante das relíquias dos cinco primeiros mártires franciscanos – que partiriam para o Marrocos e ali deram a vida –, Fernando sentiu o impulso de imitar seu testemunho. Pediu para deixar os agostinianos e, adotando o nome de Antônio, quis partir para o norte da África, não fosse uma enfermidade que o obrigou a retornar à Itália, marcando-lhe outro destino.

Em 1221, participou do Capítulo das Esteiras em Assis, onde conheceu pessoalmente São Francisco de Assis. Reconhecendo seu talento, Francisco o convidou a ensinar Teologia aos frades, missão que Antônio exerceu em Bolonha e Paris, lançando as bases do pensamento franciscano que inspiraria depois São Boaventura e Duns Scotus e sendo o primeiro professor dos frades franciscanos. 

As relíquias não são apenas vestígios materiais, mas lembretes do sacrifício de Cristo e do chamado à santidade. Francisco alertou Antônio em carta a ensinar teologia aos frades “sem extinguir o espírito da santa oração e devoção” (Carta a Antônio), mostrando que estudo e contemplação caminham juntos.

Dotado de extraordinária eloquência, Santo Antônio pregava com poder e compaixão, convertendo muitos que se afastaram da Igreja. Seu zelo pastoral incluía o atendimento a confissões e o aconselhamento, mesmo enfrentando problemas de saúde. 

Diz‑se que qualquer fragmento de sua túnica ou contato com sua pessoa era causa de grande graça. Um exemplo famoso envolve a Irmã Oliva : após beijar-lhe as mãos, ela sofreu dores violentas até aplicar um pedaço da túnica, quando imediatamente foi curada, provando que qualquer relíquia sua era instrumento de graça (relato extraído da Biografia e Sermões de Santo Antônio).

Até hoje, peregrinos de todas as partes do mundo visitam a Basílica de Pádua para contemplar a língua incorrupta de Santo Antônio, testemunhando um milagre que une ciência e fé. Essa relíquia não apenas lembra o poder do testemunho cristão, mas também conserva viva a memória de um santo cuja palavra se fez vida para tantos corações. 

Santo Antônio, rogai por nós!’

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/as-reliquias-que-contam-a-vida-de-santo-antonio.html

segunda-feira, 9 de junho de 2025

O discernimento vocacional segundo a Regra de São Bento

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

O jovem São Bento recebe do padre Romano o hábito dos eremitas

Afresco do mosteiro de Subiaco (Itália)

*Artigo de Dom Bernardo Olivera, OCSO

Antigo Abade Geral dos Trapistas

 

Esta intervenção [1] de Dom Bernardo Olivera sobre a formação inicial nos pareceu útil para iluminar essa formação muito concretamente, a partir do que São Bento pensa na sua Regra

(Sl 4,7)

 

‘A abundância e a falta de vocações são, geralmente, causas que sublinham a importância do discernimento. A falta de vocações convida, muitas vezes, a correr o risco de ‘aceitar’ qualquer tipo de candidatos; a abundância leva não os passar pela peneira da colheita.

Nosso objetivo é consultar o ensino de São Bento na sua Regra: um ensinamento que vai desde o antes da entrada, até à profissão monástica.

São Bento tinha certamente o carisma do discernimento dos espíritos, mas quando se trata de vocações, é muito prático : baseia-se no que se vê e pode ser observado. Eis quatro critérios particulares e gerais oferecidos pela Regra.

A paciência perseverante

O primeiro critério da Regra está no começo do cap. 58, e diz assim :

‘Apresentando-se alguém para a vida monástica, não se lhe conceda fácil ingresso, mas como diz o Apóstolo : ‘provai os espíritos, se são de Deus’. Portanto se aquele que vem, perseverar batendo à porta e se depois de quatro ou cinco dias, sendo-lhe feitas injúrias e dificuldade para entrar, parece suportar pacientemente e persistir no seu pedido, conceda-se lhe o ingresso, e permaneça alguns dias com os hóspedes’ (RB 58,1-4).

Trata-se de um discernimento preliminar para examinar se o candidato está tocado pelo Espírito de Deus, no que diz respeito à sua vinda ao mosteiro.

Bento indica dois pontos fáceis de verificar : a perseverança e a paciência. O fator tempo ajudará a verificar estas duas realidades. Se, por um período de alguns dias, o candidato perseverar no seu pedido, e tiver paciência diante da demora que lhe impõem, pode-se dizer que é o Espírito de Deus que o traz ao mosteiro. O que não significa, evidentemente, que deva abraçar obrigatoriamente a vida monástica. A paciência é a primeira virtude que o candidato deve praticar. A paciência - consigo mesmo e com os outros – é um fator prioritário de perseverança na vida monástica. Sem paciência não há comunhão com os sofrimentos pascais de Cristo, nem comunhão profunda e misericordiosa com as deficiências dos irmãos da comunidade (RB Prol 50;72,5).

Comentário pastoral : Muitas vezes condicionados pela falta de vocações, alguns ou algumas se precipitam para admitir candidatos, deixando de lado este critério que todas as regras mencionam, assim como a tradição monástica em geral. Pela mesma razão também, se omite dizer, de antemão, ao candidato as coisas duras e ásperas pelas quais se vai a Deus (58,8).

A verdadeira procura de Deus

O segundo critério beneditino diz assim :

‘Que haja solicitude em ver se procura verdadeiramente a Deus, se é solícito para com o Ofício Divino, a obediência e os opróbrios’ (58,7).

             A procura de Deus, neste contexto, não é a procura de um Deus escondido, mas de um Deus de quem nos afastamos e para o qual decidimos voltar, um Deus que precede a nossa procura, procurando-nos por primeiro (Prol 2,14; 58,8). Note-se que Bento recomenda ‘observar’. Por outras palavras, os critérios de discernimento que propõe, necessitam de uma observação atenta. O texto sugere quem são os que ‘observam’, é o conjunto da comunidade. O que precede supõe que o ancião (sênior) capaz de ganhar almas (o mestre de noviços) seja particularmente responsável por esta observação… O cuidado que caracteriza esta observação é que seja solícita, observação atenta. Esta atenção particular refere-se à intensidade e à duração. O que a sutilidade e a perspicácia não fazem, faz-se facilmente com o tempo. O tempo revela o coração. O objeto da observação não é a intenção (invisível) do candidato à vida monástica, mas o seu comportamento (visível), e isto numa tríplice perspectiva : o dom de si à vida de oração, a aceitação da vontade dos outros e tudo o que coloca o orgulho do candidato debaixo de seus pés. Note-se que não se trata de se dedicar à oração, à obediência e à humildade, mas de se dar a isso numa aceitação dada, fervorosa e cheia de bom zelo.

- A obra de Deus

No que diz respeito à Obra de Deus, a oração tem o primeiro lugar. Bento é coerente com o que diz no começo da Regra :

‘Antes de tudo, quando encetares algo de bom, pede-lhe com oração muito insistente que seja por ele realizado’ (Prol. 4).

E, querendo ser ainda mais claro, afirmará, para que não haja dúvidas : ‘Nada preferir à obra de Deus’ (43,3). Note-se que Opus Dei refere-se ao Ofício Divino, mas em relação com o esforço geral de atenção a Deus (cf. 19,1-2; 7,10 e ss).

Comentário pastoral : Não se trata somente de observar o pedido do candidato por meio da sua participação ativa e consciente na Obra de Deus… mas também seu modo de integrar o que os formadores lhe propõem na ordem da práxis  : utilização dos livros do coro, canto; estudo : história, teologia, estrutura da liturgia das horas; mistagogia : oração dos salmos, que o espírito esteja de acordo com o coração…

- A obediência

A obediência beneditina é uma consequência da oração (cf. 6,2), portanto comporta uma certa primazia. O 1º grau da humildade é a obediência sem demora (5,1).

O pedido de obediência (fervor, bom zelo) leva a obedecer não só aos superiores, mas também a todos os irmãos da comunidade (72,6). Esta obediência leva à união com Jesus Cristo, que disse ‘Eu não vim fazer a minha vontade, mas a daquele que me enviou’ (RB 7,32 citando Jo 6).

Comentário pastoral : não esquecer que existem dois tipos de obediência em relação à liberdade :

- obediência por coerção : é o medo que faz agir;

- obediência por convicção : é a escolha que faz agir.

Na primeira forma de obediência, a liberdade é condicionada pelo medo do castigo; no segundo caso, é o livre arbítrio que prevalece (liberdade motivada pela razão) : identifica-se com a obediência voluntária, de que fala Perfectae Caritatis.

- Opróbrios

Os opróbrios, se olharmos a possível fonte basiliana do texto (Basílio, Regra, 6-7), referem-se aos trabalhos modestos e seculares.

São Bento encarrega-se de toda a vida do candidato para ajudar na humildade por meio de inevitáveis humilhações (cf. 7,44-54). É assim que o candidato à vida monástica começa por aderir a Jesus Cristo, que se apresenta manso e humilde de coração, e que veio para servir e não para ser servido (Mt 11,29; Mc 10,45).

Comentário pastoral : não se trata de ser humilhado de propósito, intencionalmente, mas de aceitar uma vida de serviço e de simplicidade.

- Conclusão

São Bento é muito concreto : a procura de Deus manifesta-se combatendo o egoísmo e o orgulho, pois isso impede a comunhão com Jesus Cristo e com o próximo.

Note-se, igualmente, que os três critérios propostos pelo Patriarca têm uma certa correspondência na escada da humildade. De fato, o 1º grau corresponde à relação do monge com Deus; os graus 2 a 4 referem-se à obediência; os graus 5 a 8 propõem o modo de se abaixar com a vergonha e a humilhação.

Por que motivo São Bento não menciona o silêncio como critério de discernimento? Não sabemos. Talvez por motivos literários ou pedagógicos. No entanto, os graus 9 a 12 da humildade falam dele.

Resumindo, as propostas de São Bento podem ser reformuladas em duas perguntas : o candidato à vida monástica procura seguir e imitar o Cristo na sua oração, sua obediência e sua abnegação? Oração, obediência e humildade estão a serviço de uma verdadeira procura de Deus? 

A observância da Regra

O terceiro critério consiste na confrontação com a regra de vida da comunidade.

São Bento diz que ela deve ser lida ao candidato, por inteiro, três vezes antes da profissão final. A capacidade do candidato para observar pacientemente o que ela prescreve, é igualmente um critério de discernimento (58,9-16).

Comentário pastoral : Os comportamentos obedientes e humildes devem vivificar a observância da Regra inteira, sendo esta observância uma prova suplementar da procura de Deus. Além da Regra de São Bento o candidato deve conhecer os costumes da Ordem contidos nas Constituições e Usos da comunidade.

O bom zelo

O pedido que o candidato à vida monástica deve manifestar está intimamente ligado ao bom zelo, típico de quem decidiu afastar-se dos vícios e dirigir seus passos para Deus. Por conseguinte, o cap. 72 da Regra, sobre o Bom Zelo, ou o amor mais ardente, oferece critérios suplementares para verificar o dom da vida e o crescimento na vida divina.

Em resumo, os critérios do bom zelo podem ser apresentados assim :

- respeitar-se uns aos outros (honra);

- ajudar-se mutuamente (paciência);

- obedecer-se mutuamente (obediência);

- renunciar a si mesmo, não ao vizinho (abnegação – oblação);

- amar-se (fraternidade, irmandade);

- temer a Deus com amor (começo da sabedoria);

- amar o abade / com afeição sincera (filiação);

- nada preferir ao Filho único! (Cristocentrismo).

Comentário pastoral : um noviço que não arde, pelo menos algumas vezes, com um zelo ardente, mesmo que seja excessivo, corre o risco de se tornar um professo solene medíocre. A sabedoria popular diz : ‘vassoura nova varre bem’ e ‘burro velho não anda a trote’.

Conclusão

É evidente que estes critérios, em particular o do bom zelo, valem, não só para a entrada na vida monástica e a perseverança, mas também para a passagem do monge e da monja para a vida eterna.

A doutrina do Patriarca, por causa de sua base evangélica, conserva seu valor. O ensinamento de São Bento exposto aqui deve ser levado em conta e traduzido para as circunstâncias do mundo de hoje.

O modo como seus princípios são encarnados pode mudar e enriquecer-se.’

 [1] Intervenção na sessão dos formadores da ABECCA (2019).

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/119