sexta-feira, 30 de abril de 2021

A voz da Palavra: um breve ensaio sobre a sacramentalidade da voz

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Daniel Reis


‘Concorde ao princípio da Encarnação, onde Deus se fez acessível à nossa humanidade para nos salvar, o escopo de todo e qualquer sacramento é comunicar-nos essa salvação por Ele oferecida através de sinais sensíveis à nossa condição humana. Um desses sinais sacramentais, componente da estrutura simbólico-ritual da Liturgia, é a voz.

A voz é o elemento sensível que embala a Palavra de Deus proclamada, cantada e rezada. Como som que é, toda voz aspira a tornar-se palavra, a ganhar forma e sentido, contribuindo ou prejudicando para a manifestação do conteúdo da fala ou do significado das palavras. Como afirmava Santo Agostinho em um de seus sermões : ‘Suprime a palavra; o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.’ (Sermo 293).

Especialmente para a fé cristã, a voz deve estar sempre a serviço da Palavra divina e, com ela, em perfeita simbiose, a fim de ultrapassar seu caráter informativo e alcançar o seu condão performativo, ou seja, sua força transformadora, animadora, libertadora e salvadora. Com o auxílio da voz, pode-se potencializar a eficácia sacramental da proclamação da Palavra de Deus, para que ela seja, efetivamente, Palavra da Salvação.

Nesse sentido, voltando ao sermão do bispo de Hipona, encontramos : ‘O som da voz te faz entender a palavra; e quando te fez entendê-la, esse som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração’. Assim, no âmbito pastoral-ministerial, deve-se dar a máxima importância aos gêneros literários da Sagrada Escritura, bem como aos gêneros musicais e oracionais (suplicante, laudatório, penitencial, etc.), para que através de um adequado revestimento vocal das leituras, da música e das orações, as vozes contribuam para uma fecunda comunicação da Palavra à assembleia litúrgica, fazendo com que, mesmo depois de passada a voz, permaneça gravada no coração do ouvinte a Palavra que não passa (cf. Mt 24,35).

A responsabilidade da qualidade comunicacional da Palavra pela voz não recai somente sobre o aspecto vocal, uma vez que dependerá também de uma boa e dócil acolhida por parte dos interlocutores. E aqui reside uma grande dificuldade : o Povo de Deus, de ontem e de hoje, ‘é um povo de cabeça dura’ (Ex 32,9), de ‘dura cerviz e incircuncisos de coração e ouvido’ (At 7,51). Por isso o tema da ‘escuta’ nas Sagradas Escrituras é frequente, seja para denunciar a ‘surdez’, seja para exaltar a audição atenta.

No Monte Sinai, Deus instrui Moisés : ‘Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos.’ (Ex 19,5). Assim, por diversas vezes, Moisés, a mando do Senhor, dirige-se ao povo clamando : ‘Escuta ('Shemá'), ó Israel, as normas que eu hoje proclamo aos vossos ouvidos!’ (Dt 5,1. 6,3. 4,1). O profeta Jeremias se revolta com os ‘ouvidos fechados’ do povo, dizendo : ‘A quem falarei, para que ouça? Eis que seus ouvidos estão incircuncisos e não podem ouvir!’ (Jr 6,10). Por outro lado, o profeta Samuel, na narrativa de sua vocação, responde confiante : ‘Fala, Senhor, que o teu servo te escuta.’ (1Sm 3,10). Neemias, narrando uma autêntica Liturgia da Palavra em seu tempo, detalha a atitude da assembleia ali formada : ‘[...] Então o sacerdote Esdras leu o livro da Lei de Moisés desde a aurora até o meio-dia, na presença dos homens, das mulheres e dos que tinham o uso da razão. E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei.’ (Ne 8,3).

Nos evangelhos, a temática também está ‘na boca’ de Jesus. Quando avisado da chegada de sua família, responde a seus discípulos : ‘Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática!’ (Lc 8,21). Anunciando as bem-aventuranças, apresenta a maior delas : ‘Felizes, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a observam.’ (Lc 11,28). Sobre a maior prudência humana, diz : ‘Todo aquele que ouve as minhas palavras e as põe em prática são como o homem prudente que constrói sua casa sobre a rocha.’ (Mt 7, 24). Sobre nossa pertença e filiação a Deus, Jesus exclama : ‘Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus.’ (Jo 8,47). Temos também o que parece ser um bordão utilizado por Jesus : ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!’ (Mc 4,23; Mt 11,15).

Ainda no Novo Testamento, encontramos no episódio da Transfiguração a voz do Pai que sai da nuvem mandando ouvir o Filho muito amado (cf. Mc 9,7). Também Paulo, em sua carta aos romanos, onde assevera : ‘A fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a Palavra de Cristo.’ (Rm 10,17).

O lugar por excelência onde escutamos a voz de Deus, na Palavra que é Cristo, falada sob o fôlego do Espírito, é a Liturgia. Assim afirmou o papa Bento XVI : ‘Considerando a Igreja como 'casa da Palavra', deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia Sagrada. Esta constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida : fala hoje ao seu povo, que escuta e responde.’ (Verbum Domini, nº 52).

A Liturgia, assim, é o especial e primeiro locus theologicus, porque nela escutamos, sacramentalmente, o próprio Cristo se dirigir a nós, ‘pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura’, bem como ‘quando a Igreja reza e canta’ (Sacrosanctum Concilium, nº 7). É nela que podemos e devemos escancarar os ouvidos do coração para escutarmos a voz do nosso amado (cf. Ct 2,8), a voz do nosso Pastor (cf, Jo 10,3-4), para que a Palavra se faça carne em nós, e assim possamos anunciá-la ao mundo, reverberando nele o amor do Verbo.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1513321/2021/04/a-voz-da-palavra-um-breve-ensaio-sobre-a-sacramentalidade-da-voz/ 

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