quinta-feira, 4 de junho de 2020

O que Santo Agostinho pode nos ensinar sobre como viver uma pandemia?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

Para o bispo de Hipona, embora o perfeito amor abnegado possa ser difícil para nós, existem maneiras de nutrir sua semente
*Artigo de Kathleen Bonnette, Th.D., 
diretora assistente do Escritório de Justiça, Paz e Integridade da Criação das Irmãs Escolares de Notre Dame, Província Atlântico Centro-Oeste
Tradução : Ramón Lara


‘Nos últimos anos da vida de Santo Agostinho, no início do século 5º, ele teve que testemunhar como os vândalos germânicos marchavam pelo norte da África, saqueando e ocupando cidades pelo caminho até finalmente cercar sua própria cidade de Hipona. Hoje, enquanto assistimos o Covid-19 percorrer o mundo, devastando nações e instilando o medo, podemos aprender muito com as ideias deste santo. Embora Agostinho possa parecer uma fonte improvável de esperança (dada sua reputação de pessimismo), sua espiritualidade pode oferecer inspiração e orientação neste momento.

A ética política de Agostinho baseia-se no ceticismo sobre as intenções da autoridade política e a busca pelo poder, mas afirma que o Estado de Direito é fundamental para a formação de uma sociedade justa : ‘Muitas pessoas são beneficiadas por serem compelidas em primeiro lugar através de medo... para que, posteriormente, possam ser ensinados e, em seguida, busquem em ação o que aprenderam em palavras... No entanto, assim como as pessoas guiadas pelo amor são melhores pessoas, aquelas reformadas pelo medo também podem ser mais numerosas’.

Ao considerarmos a ordem de ficar em casa com o objetivo de preservar a saúde dos mais vulneráveis entre nós, os cristãos devem liderar o esforço de aderir ao mandato por amor ao próximo. Talvez se estivéssemos dispostos a manter a distância social voluntariamente, as autoridades não precisariam ser tão invasivas. No entanto, mesmo aqueles que protestam contra as ordens não devem ignorar as recomendações das autoridades de saúde pública. Não devemos tentar o Senhor ‘esperando uma intervenção miraculosa e divina em todas as ocasiões’.

Agostinho não incentiva riscos físicos desnecessários como forma de fé ou devoção; o completo desrespeito à saúde física de alguém é incompatível com sua ética. Enquanto Agostinho prioriza o bem-estar espiritual e reconhece que pode haver circunstâncias em que isso exige o sacrifício da segurança física, também afirma que a saúde física faz parte de todo o desenvolvimento humano. Nossos corpos são bens a serem protegidos, desde que ‘façamos muito bem com eles, mas nenhum mal por eles’.

Estamos equivocados se nos colocamos em perigo desnecessário, mesmo para bens espirituais. Vemos isso, por exemplo, na recomendação de Agostinho de que o jejum deve ser praticado ‘segundo a capacidade de cada pessoa, sem prejudicar sua saúde física’. Notavelmente, durante o cerco militar de Hipona, Agostinho se recusou a enviar cartas aconselhando um amigo sobre assuntos espirituais porque estava preocupado com o risco físico para o portador da carta.

De maneira semelhante, nosso distanciamento social não deve ser egocêntrico. Embora possa ser fácil cair em uma mentalidade individualista e focar apenas em nossas lutas pessoais, precisamos expandir nossos horizontes de preocupação. Para Agostinho, a saúde espiritual requer servir aos outros. As homilias de Agostinho sobre a Primeira Carta de São João refletem sobre o discernimento do apóstolo de que o amor não reside em ninguém que fecha seu coração àqueles que precisam. Tomando o auto sacrifício de Cristo como a essência do amor, Agostinho nos exorta a ‘ver onde o amor começa. Se você ainda não é capaz de morrer por sua irmã ou seu irmão, seja capaz agora mesmo de lhe dar alguns de seus bens. Deixe o amor entrar em seu coração para agir agora’.

Em outras palavras, embora o perfeito amor abnegado possa ser difícil para nós, existem maneiras de nutrir sua semente : ‘Dê sua abundância temporal para libertar uma irmã ou um irmão do sofrimento temporal. É aqui que o amor começa’.

Para Agostinho, tudo o que fazemos é resultado de nosso amor – uma busca do que desejamos. Garantir que nosso amor seja formado adequadamente – que valorizemos os outros corretamente, à luz de sua participação no conjunto mais amplo – é fundamental para a busca da justiça. Ao servir os necessitados, podemos desenvolver esse amor que ‘foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo’.

Durante essa pandemia, as oportunidades de servir são muitas e cabe a nós persegui-las. Desde doações a organizações na linha de frente desta crise, até chegar aos vizinhos que precisam de mantimentos ou apoio emocional, devemos encontrar maneiras de servir – com foco especial naqueles que são especialmente vulneráveis devido à idade, raça, classe ou status legal. Deve-se notar que isso cabe a todos nós na medida em que somos capazes : todos temos algo a compartilhar; mas aqueles com mais privilégios, devem compartilhar mais. Este ponto, no entanto, não deve ser mal interpretado para incentivar os idosos a darem suas vidas pelo bem da economia, porque certamente existem outros meios menos perigosos de preservar a saúde econômica de nossa sociedade.

Por fim, como toda ação provém do amor, na visão de Agostinho, nossas estruturas políticas serão boas ou ruins na medida em que forem desenvolvidas por pessoas com um amor ordenado ou malformado. A pandemia expôs injustiças estruturais que não são apenas moralmente repugnantes, mas prejudiciais à saúde pública – divisões raciais e econômicas, desigualdade na assistência à saúde, reticência a medidas de proteção ambiental e criminalização da migração vêm à mente. Agostinho defende a proteção de ‘uma vida de saúde corporal [e] os meios de permanecer vivo’ para todas as pessoas. Ele enfatiza a igualdade, sustentando que ninguém deve ‘dizer que é mais digno da vida do que outros’.

Se quisermos praticar o amor, devemos nos esforçar, da melhor maneira possível, em desenvolver sistemas e adotar políticas que promovam o bem comum e promovam a plena dignidade e participação de todos – um objetivo ilusório, talvez, mas que, no entanto, exige nosso esforço incessante.

O novo ritmo de vida mais lento para muitos de nós agora oferece a oportunidade de refletir sobre essas questões. De fato, a espiritualidade de Agostinho está centrada na integração da contemplação com a ação. Agostinho sustenta que, quando amamos a Deus, dedicamos tempo à contemplação, e o bem-estar que encontramos nessa contemplação nos obrigará a realizar ‘um engajamento justo nas ações’. Ele escreve : ‘Ninguém deve ser tão laxo a ponto de não pensar nesse bem-estar pelo interesse do próximo, nem tão ativo a ponto de não sentir necessidade da contemplação de Deus’.

Durante essa pandemia, devemos abraçar a lentidão da vida e reabastecer nosso reservatório espiritual – mas isso deve nos levar ao coração do mundo a agir por justiça. Deveríamos dedicar esse tempo antes da reabertura de nossa sociedade para melhorar nossa saúde física e espiritual, nutrir a semente do amor e começar a desenvolver maneiras de advogar por mudanças. A lembrança de Agostinho de um período de luto em sua própria vida é encorajadora : ‘O tempo nunca para, nem passa ocioso sem afetar nossos sentimentos ou deixa de fazer maravilhas na mente. Ele veio e foi, dia após dia, e conforme passou me encheu de novas esperanças e novos pensamentos para lembrar. Pouco a pouco, me reuniu novamente. Essa pandemia pode ser o começo de algo bonito se nos decidimos a fazê-lo – através da graça.’



Fonte :
*Artigo na íntegra

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