Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Abadia de la Pierre qui Vire (França)
‘A carta Desiderio desideravi do Papa Francisco, publicada
em Roma em 29 de junho de 2022, é um ato importante deste pontificado em termos
de liturgia [1]. É certo que ela
parece tratar de uma questão específica, a saber, ‘a formação litúrgica do Povo
de Deus’, mas, na realidade, ela aborda a questão litúrgica hoje, pois é
apresentada pouco mais de 50 anos após a reforma geral solicitada pela
Constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II (4 de
dezembro de 1963). Sem pretender oferecer um comentário detalhado sobre o
texto, o objetivo aqui é introduzir sua leitura, destacando algumas das
questões em jogo nesse documento magisterial. Em um cenário de mudanças
aceleradas, Desiderio desideravi desvia o foco dos debates ruins em que
a Igreja parece ter ficado presa desde a reforma solicitada pelo Concílio
Vaticano II [2]. O papa reposiciona
a reflexão, por um lado, sobre a formação e, por outro, sobre uma dupla questão
à qual ele atribui grande importância.
Por um lado, ele está questionando a capacidade do homem moderno de
entrar em um processo simbólico e, portanto, no universo relacional no qual a
liturgia cristã se baseia. A publicação, em 17 de julho de 2024, de uma carta ‘sobre
o papel da literatura na formação’ é um documento no qual a preocupação do Papa
Francisco com a ‘capacidade simbólica’ do homem contemporâneo [3] é expressa com força especial. Na
liturgia, a questão é se, e se sim, como a vida litúrgica de hoje pode oferecer
um caminho de encontro com Deus.
Por outro lado, o Papa denuncia incansavelmente duas tendências
profundamente arraigadas que ele descreve como ‘o veneno do mundanismo
espiritual’ : o ‘neopelagianismo’, que tende a enfatizar o trabalho do homem
com o risco de transformar a liturgia em uma performance ritual, e o ‘neognosticismo’,
que tende a reduzir a liturgia a um conhecimento destinado a uma elite. Nesse
ponto, o Papa traz para a Igreja os reflexos do mundo latino-americano, que
leva muito a sério os recursos da piedade popular. O treinamento litúrgico que
Francisco pretende promover não tem como objetivo principal criar ‘conhecedores’,
ou mesmo especialistas em liturgia, mas prestar realmente atenção ao que a
liturgia nos dá a experimentar. Poderíamos dizer que é uma questão de formar o
ser interior por meio da celebração e na celebração.
A liturgia :
uma preocupação constante do magistério da Igreja
A partir do século XVII, mas especialmente no século XIX e início do
século XX, a ciência histórica entrou no campo da liturgia. Essa
abordagem histórica demonstrou amplamente que as práticas aceitas têm uma
história e que as instituições mudaram muito, às vezes radicalmente, ao longo
do tempo. Com base nisso, não podemos mais falar, de um ponto de vista
histórico, de uma continuidade formal entre a Última Ceia de Jesus e a missa,
seja a de São Paulo VI ou a de São Pio V. Essa consciência, que hoje muitas
vezes não existe, nos levou a reconsiderar a relevância dos legados que
herdamos. E foi nessa linha que, entre 1951 e 1956, o Papa Pio XII
decidiu por uma grande reforma da Semana Santa, um passo decisivo para a
renovação litúrgica. Mas é claro que a dinâmica de aggiornamento do
Vaticano II levaria a um grande projeto de reforma que seria realizado nos anos
seguintes ao Concílio. Com um conhecimento muito amplo das fontes, esse
trabalho deveria seguir um princípio duplo : um ‘reabastecimento da tradição’
por meio de um retorno a práticas antigas esquecidas (por exemplo, a oração dos
fiéis) e uma abertura para inovações de acordo com as necessidades de nosso
tempo (por exemplo, o uso de línguas vernáculas). Desse ponto de vista, muitas
das ‘inovações’ do Missal de 1970 foram inspiradas e justificadas por práticas
antigas, muitas vezes da antiguidade cristã. Esse projeto se beneficiou da
atenção constante e vigilante, do apoio e até mesmo do compromisso direto de
Paulo VI. Em uma catequese em 19 de novembro de 1969, pouco antes da
implementação do novo Missal Romano, ele declarou que a reforma era ‘um ato de
obediência’ (ao Concílio) e ‘um passo adiante em sua autêntica tradição’. [4]
Apesar dessas afirmações, no entanto, constatamos uma rejeição dessa
reforma, essencialmente realizada sob a autoridade do Papa Paulo VI. O debate
foi relançado várias vezes, sem que se vislumbrasse um resultado possível. Está
além do escopo deste artigo reconstituir a complexa história da rejeição do aggiornamento litúrgico
desde o Vaticano II até o motu proprio Traditionis custodes (16 de julho de
2021), que pôs fim ao regime introduzido por Bento XVI (motu proprio
Summorum pontificum, 7 de julho de 2007).
Esse último procurou resolver a oposição à reforma introduzindo um
regime duplo para a liturgia : a ‘forma ordinária’, de acordo com os livros
litúrgicos revisados, e a ‘forma extraordinária’, de acordo com os livros
litúrgicos anteriores à reforma.
As aproximações de linguagem nessa área complexa foram, e ainda são,
muito frequentes, com o risco de multiplicar os debates irrefletidos. Falar do ‘Rito
Tridentino’ ou do ‘Rito Tradicional’ é contrário ao pensamento de Bento XVI. Ao
mesmo tempo em que autorizou amplamente o uso de livros litúrgicos anteriores à
reforma, Bento XVI especificou que não é ‘apropriado’ falar de ‘dois ritos’.
Além disso, ele afirmou que ‘o Missal publicado por Paulo VI (...) é e
obviamente continua sendo a forma normal - a forma ordinária - da liturgia
eucarística’, pedindo que ‘em princípio, a celebração de acordo com os novos
livros não pode ser excluída’.
Depois de consultar os bispos, Francisco pôs fim a esse regime
declarando : ‘Os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI
e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única
expressão da lex orandi do Rito Romano’ (Traditionis custodes,
art. 1). Em Desiderio desideravi, como guardião da unidade da Igreja,
ele explica mais uma vez sua posição, pedindo que uma compreensão ‘superficial’
e ‘redutora’ do valor da liturgia ou ‘sua instrumentalização a serviço de uma
visão ideológica’ não desfigure a celebração da liturgia, que é o ‘sinal da
unidade’ e o ‘vínculo da caridade’ (nº 16). Ele resume seu convite a todos em
uma frase : ‘A não aceitação da reforma, bem como uma compreensão superficial
dela, nos distrai da tarefa de encontrar respostas para a pergunta que repito :
como podemos crescer em nossa capacidade de viver plenamente a ação litúrgica?
(nº 31) [5]. E, para remediar esses
obstáculos, ele propõe dois caminhos, que podemos esperar que contribuam para
superar a ferida da Igreja em relação à sua vida litúrgica.
Prestar
atenção à liturgia
A ideia é ‘permitir que nos surpreendamos com o que está acontecendo
diante de nossos olhos na celebração’ (nº 31). Em um mundo que constantemente
captura os sentidos de várias maneiras, a atenção à ação litúrgica tornou-se
frágil. Os muitos debates e até mesmo conflitos sobre hinos ou gestos são
sintomáticos dessa dificuldade de entrar profundamente na liturgia como um
lugar de encontro com o mistério de um Deus que vem ao homem para salvá-lo.
Essa exigência de atenção se baseia na novidade permanente desse
encontro. Na liturgia, a repetição de palavras e gestos serve a essa novidade.
Para aqueles que estão dispostos a entrar nessa aparente repetição, por
exemplo, na oração dos salmos, a novidade vem na forma de uma prontidão para
acolher o grande diálogo entre Deus e a humanidade. Pois é o Espírito de Deus
que faz novas todas as coisas.
Maravilhar-se
com a beleza do Mistério Pascal
O Papa Francisco desenvolve esse caminho de atenção convidando-nos a nos
maravilharmos como ‘uma parte essencial do ato litúrgico’ e como ‘uma
experiência do poder do símbolo’ (nº 26). Entretanto, essa não é uma abordagem
estética : a beleza não combina necessariamente com a riqueza ou a profusão de
meios, uma tentação frequente que corre o risco de alinhar as celebrações com
as modas de uma sociedade do espetáculo. Nessa linha, o Papa denuncia os dois
excessos que impedem que a beleza na liturgia alcance a verdade. Por um lado,
ter prazer ‘apenas em cuidar da formalidade externa de um rito’ ou contentar-se
‘com a observância escrupulosa das rubricas’. Por outro lado, há ‘a atitude
oposta, que confunde simplicidade com banalidade desleixada, essencialidade com
superficialidade ignorante, ou a concretude da ação ritual com um exasperante
funcionalismo prático’ (n° 22).
Na realidade, trata-se de maravilhar-se com a beleza da Encarnação e do
Mistério Pascal que salva toda a humanidade, a beleza do dom de Deus, porque ‘os
esforços para melhorar a qualidade da celebração, embora louváveis, não são
suficientes, nem o apelo a uma maior interioridade’. Ainda precisamos acolher a
revelação do mistério cristão : ‘O encontro com Deus não é fruto de uma busca
interior individual, mas um acontecimento dado’ (nº 24).
Uma formação ‘séria’
O segundo caminho é o da formação : ‘Temos necessidade de uma formação
litúrgica séria e vital’ (nº 31). E nesta frase, é preciso sublinhar os
adjetivos que qualificam este projeto de formação.
Para colocar-se opostamente os slogans e convicções infundadas, sério se
opõe ao diletantismo tão frequente em uma sociedade do Zap. A formação
litúrgica requer um esforço contínuo apoiado em trabalhos de qualidade. Assim,
só podemos enfatizar a importância de publicações e de periódicos sabendo que
as opções nesse campo são diversas e, algumas, opostas. Diante do que se
apresenta como um verdadeiro emaranhado de opiniões, a formação em liturgia
requer a aquisição de algumas bússolas para não permanecer na confusão e poder
entrar numa escuta comunitária, pois não podemos discernir sozinhos.
Uma formação ‘vital’
Para o adjetivo ‘vital’, Francisco nos traz uma marca específica, que
ele desenvolveu na carta apostólica Gaudete et exsultate (19 de março de
2018), que propõe um verdadeiro tratado de vida espiritual para o nosso tempo.
Ele também nos convida a não nos fecharmos na busca de uma atuação ritual,
esquecendo a missão e a vida de caridade. Os pilares da vida cristã não podem
ser separados : martyria (proclamar o Evangelho e dar testemunho), diakonia
(serviço, especialmente aos pobres e aos pequenos) e leiturgeia (o
culto prestado a Deus). Contra a tentação de transformar a liturgia em um meio
de evasão, ele nos recorda que a liturgia oferece um caminho, o da vida do
Espírito, sem o qual o testemunho se perde na propaganda e a caridade no
ativismo.
Falar de ‘formação vital’ é, portanto, vislumbrar uma experiência
espiritual. Dizer que somos formados ‘pela liturgia’ significa que esta não é
um serviço que avaliamos com critérios subjetivos (o ambiente, a ‘beleza’, os
cantos, etc.), mas um caminho de conversão. Enquanto distingue a formação ‘para’
a liturgia (para conhecê-la) e a formação ‘pela’ liturgia (deixar-se formar por
ela), ele deixa claro que, se a formação ‘pela’ liturgia é ‘funcional’, a
formação ‘para’ a liturgia é a seus olhos ‘essencial’ (nº 34). A prioridade
dada a uma pesquisa de ambiente e de uma preocupação para ‘fazer algo’ conduz
ao esquecimento deste aspecto ainda essencial : nós somos ‘feitos cristãos’
pela própria liturgia.
Esta realidade se manifesta, antes de tudo, nos sacramentos da Iniciação
Cristã seguramente. Mas também dizendo juntos ‘Pai Nosso’, que os fiéis se unem
ao Filho de Deus que reza ao Pai do céu. É dizendo juntos ‘Eu creio’, que os
fiéis se tornam confessores da fé diante do mundo e por ele. É aclamando ‘mistério
da fé’ durante a anamnese que os fiéis confessam a glória do Ressuscitado. É
ainda respondendo ‘Amém’ durante a Comunhão que eles ratificam sua vocação de
membros do Corpo de Cristo.
Conclusão
Finalmente, o convite a conjugar inseparavelmente formação ‘para’ e formação ‘pela’ liturgia manifesta quanto a atenção (e não o julgamento) deveria ser a atitude primordial. Mas, trata-se de tornar-se atento a um mistério invisível que se percebe através de sinais visíveis. Num mundo de hipercomunicação (onde, no entanto, a relação verdadeira é tão frágil e mesmo tão difícil), surge o convite a manter-se longe da vontade de manipular a liturgia, para transmitir uma mensagem, suscitar uma adesão ou cultivar convicções. Porque se trata, acima de tudo, de comungar desta vida divina que nos é comunicada pela celebração dos mistérios.’
[1] PAPA FRANCISCO, Carta Apostólica Desiderio Desideravi, 29 de
junho de 2022; utilizamos a versão online disponível no site do Vaticano.
[2] Cf. Pio X, Motu proprio Abhinc duos annos, 23 de outubro de
1913, que exprimia esta necessidade não hesitando em falar da necessidade de ‘limpar’
a ‘sujidade’ que se tinha instalado no edifício litúrgico herdado do passado.
[3] PAPA FRANCISCO, Carta sobre o papel da literatura na formação, 17 de
julho de 2024.
[4] Cf. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Vicesimus quintus annus para
o 25º aniversário da Constituição Conciliar sobre a Liturgia, 4 de dezembro de
1988, nº 4, que elogia o fruto de um ‘trabalho considerável e desinteressado de
um grande número de peritos e pastores de todas as partes do mundo’ e,
sobretudo, de um funcionamento ‘estritamente tradicional’.
[5] Desiderio desideravi é útil para todos. A falta de formação continua a ser flagrante, mesmo entre aqueles que se referem à reforma do Vaticano II. Os princípios aqui expostos permitem abordar em profundidade a grande questão litúrgica, como fator de unidade e não de divisão (Nota do Editor).
Fonte : *Artigo na íntegra
Um comentário:
Assunto bastante pertinente. Obrigada pela publicação!
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