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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

“Precisamos de uma formação litúrgica séria e vital”

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Irmão Patrick Prétot, OSB

Abadia de la Pierre qui Vire (França)

 

‘A carta Desiderio desideravi do Papa Francisco, publicada em Roma em 29 de junho de 2022, é um ato importante deste pontificado em termos de liturgia [1]. É certo que ela parece tratar de uma questão específica, a saber, ‘a formação litúrgica do Povo de Deus’, mas, na realidade, ela aborda a questão litúrgica hoje, pois é apresentada pouco mais de 50 anos após a reforma geral solicitada pela Constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II (4 de dezembro de 1963). Sem pretender oferecer um comentário detalhado sobre o texto, o objetivo aqui é introduzir sua leitura, destacando algumas das questões em jogo nesse documento magisterial. Em um cenário de mudanças aceleradas, Desiderio desideravi desvia o foco dos debates ruins em que a Igreja parece ter ficado presa desde a reforma solicitada pelo Concílio Vaticano II [2]. O papa reposiciona a reflexão, por um lado, sobre a formação e, por outro, sobre uma dupla questão à qual ele atribui grande importância.

Por um lado, ele está questionando a capacidade do homem moderno de entrar em um processo simbólico e, portanto, no universo relacional no qual a liturgia cristã se baseia. A publicação, em 17 de julho de 2024, de uma carta ‘sobre o papel da literatura na formação’ é um documento no qual a preocupação do Papa Francisco com a ‘capacidade simbólica’ do homem contemporâneo [3] é expressa com força especial. Na liturgia, a questão é se, e se sim, como a vida litúrgica de hoje pode oferecer um caminho de encontro com Deus.

Por outro lado, o Papa denuncia incansavelmente duas tendências profundamente arraigadas que ele descreve como ‘o veneno do mundanismo espiritual’ : o ‘neopelagianismo’, que tende a enfatizar o trabalho do homem com o risco de transformar a liturgia em uma performance ritual, e o ‘neognosticismo’, que tende a reduzir a liturgia a um conhecimento destinado a uma elite. Nesse ponto, o Papa traz para a Igreja os reflexos do mundo latino-americano, que leva muito a sério os recursos da piedade popular. O treinamento litúrgico que Francisco pretende promover não tem como objetivo principal criar ‘conhecedores’, ou mesmo especialistas em liturgia, mas prestar realmente atenção ao que a liturgia nos dá a experimentar. Poderíamos dizer que é uma questão de formar o ser interior por meio da celebração  e na celebração.

A liturgia : uma preocupação constante do magistério da Igreja

A partir do século XVII, mas especialmente no século XIX e início do século XX, a ciência histórica entrou no campo da liturgia.  Essa abordagem histórica demonstrou amplamente que as práticas aceitas têm uma história e que as instituições mudaram muito, às vezes radicalmente, ao longo do tempo. Com base nisso, não podemos mais falar, de um ponto de vista histórico, de uma continuidade formal entre a Última Ceia de Jesus e a missa, seja a de São Paulo VI ou a de São Pio V. Essa consciência, que hoje muitas vezes não existe, nos levou a reconsiderar a relevância dos legados que herdamos.  E foi nessa linha que, entre 1951 e 1956, o Papa Pio XII decidiu por uma grande reforma da Semana Santa, um passo decisivo para a renovação litúrgica. Mas é claro que a dinâmica de aggiornamento do Vaticano II levaria a um grande projeto de reforma que seria realizado nos anos seguintes ao Concílio. Com um conhecimento muito amplo das fontes, esse trabalho deveria seguir um princípio duplo : um ‘reabastecimento da tradição’ por meio de um retorno a práticas antigas esquecidas (por exemplo, a oração dos fiéis) e uma abertura para inovações de acordo com as necessidades de nosso tempo (por exemplo, o uso de línguas vernáculas). Desse ponto de vista, muitas das ‘inovações’ do Missal de 1970 foram inspiradas e justificadas por práticas antigas, muitas vezes da antiguidade cristã. Esse projeto se beneficiou da atenção constante e vigilante, do apoio e até mesmo do compromisso direto de Paulo VI. Em uma catequese em 19 de novembro de 1969, pouco antes da implementação do novo Missal Romano, ele declarou que a reforma era ‘um ato de obediência’ (ao Concílio) e ‘um passo adiante em sua autêntica tradição’. [4]

Apesar dessas afirmações, no entanto, constatamos uma rejeição dessa reforma, essencialmente realizada sob a autoridade do Papa Paulo VI. O debate foi relançado várias vezes, sem que se vislumbrasse um resultado possível. Está além do escopo deste artigo reconstituir a complexa história da rejeição do aggiornamento litúrgico desde o Vaticano II até o motu proprio Traditionis custodes (16 de julho de 2021), que pôs fim ao regime introduzido por Bento XVI (motu proprio Summorum pontificum, 7 de julho de 2007).

Esse último procurou resolver a oposição à reforma introduzindo um regime duplo para a liturgia : a ‘forma ordinária’, de acordo com os livros litúrgicos revisados, e a ‘forma extraordinária’, de acordo com os livros litúrgicos anteriores à reforma.

As aproximações de linguagem nessa área complexa foram, e ainda são, muito frequentes, com o risco de multiplicar os debates irrefletidos. Falar do ‘Rito Tridentino’ ou do ‘Rito Tradicional’ é contrário ao pensamento de Bento XVI. Ao mesmo tempo em que autorizou amplamente o uso de livros litúrgicos anteriores à reforma, Bento XVI especificou que não é ‘apropriado’ falar de ‘dois ritos’. Além disso, ele afirmou que ‘o Missal publicado por Paulo VI (...) é e obviamente continua sendo a forma normal - a forma ordinária - da liturgia eucarística’, pedindo que ‘em princípio, a celebração de acordo com os novos livros não pode ser excluída’.

Depois de consultar os bispos, Francisco pôs fim a esse regime declarando : ‘Os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano’ (Traditionis custodes, art. 1). Em Desiderio desideravi, como guardião da unidade da Igreja, ele explica mais uma vez sua posição, pedindo que uma compreensão ‘superficial’ e ‘redutora’ do valor da liturgia ou ‘sua instrumentalização a serviço de uma visão ideológica’ não desfigure a celebração da liturgia, que é o ‘sinal da unidade’ e o ‘vínculo da caridade’ (nº 16). Ele resume seu convite a todos em uma frase : ‘A não aceitação da reforma, bem como uma compreensão superficial dela, nos distrai da tarefa de encontrar respostas para a pergunta que repito : como podemos crescer em nossa capacidade de viver plenamente a ação litúrgica? (nº 31) [5]. E, para remediar esses obstáculos, ele propõe dois caminhos, que podemos esperar que contribuam para superar a ferida da Igreja em relação à sua vida litúrgica.

Prestar atenção à liturgia

A ideia é ‘permitir que nos surpreendamos com o que está acontecendo diante de nossos olhos na celebração’ (nº 31). Em um mundo que constantemente captura os sentidos de várias maneiras, a atenção à ação litúrgica tornou-se frágil. Os muitos debates e até mesmo conflitos sobre hinos ou gestos são sintomáticos dessa dificuldade de entrar profundamente na liturgia como um lugar de encontro com o mistério de um Deus que vem ao homem para salvá-lo.

Essa exigência de atenção se baseia na novidade permanente desse encontro. Na liturgia, a repetição de palavras e gestos serve a essa novidade. Para aqueles que estão dispostos a entrar nessa aparente repetição, por exemplo, na oração dos salmos, a novidade vem na forma de uma prontidão para acolher o grande diálogo entre Deus e a humanidade. Pois é o Espírito de Deus que faz novas todas as coisas.

Maravilhar-se com a beleza do Mistério Pascal

O Papa Francisco desenvolve esse caminho de atenção convidando-nos a nos maravilharmos como ‘uma parte essencial do ato litúrgico’ e como ‘uma experiência do poder do símbolo’ (nº 26). Entretanto, essa não é uma abordagem estética : a beleza não combina necessariamente com a riqueza ou a profusão de meios, uma tentação frequente que corre o risco de alinhar as celebrações com as modas de uma sociedade do espetáculo. Nessa linha, o Papa denuncia os dois excessos que impedem que a beleza na liturgia alcance a verdade. Por um lado, ter prazer ‘apenas em cuidar da formalidade externa de um rito’ ou contentar-se ‘com a observância escrupulosa das rubricas’. Por outro lado, há ‘a atitude oposta, que confunde simplicidade com banalidade desleixada, essencialidade com superficialidade ignorante, ou a concretude da ação ritual com um exasperante funcionalismo prático’ (n° 22).

Na realidade, trata-se de maravilhar-se com a beleza da Encarnação e do Mistério Pascal que salva toda a humanidade, a beleza do dom de Deus, porque ‘os esforços para melhorar a qualidade da celebração, embora louváveis, não são suficientes, nem o apelo a uma maior interioridade’. Ainda precisamos acolher a revelação do mistério cristão : ‘O encontro com Deus não é fruto de uma busca interior individual, mas um acontecimento dado’ (nº 24).

Uma formação ‘séria’

O segundo caminho é o da formação : ‘Temos necessidade de uma formação litúrgica séria e vital’ (nº 31). E nesta frase, é preciso sublinhar os adjetivos que qualificam este projeto de formação.

Para colocar-se opostamente os slogans e convicções infundadas, sério se opõe ao diletantismo tão frequente em uma sociedade do Zap. A formação litúrgica requer um esforço contínuo apoiado em trabalhos de qualidade. Assim, só podemos enfatizar a importância de publicações e de periódicos sabendo que as opções nesse campo são diversas e, algumas, opostas. Diante do que se apresenta como um verdadeiro emaranhado de opiniões, a formação em liturgia requer a aquisição de algumas bússolas para não permanecer na confusão e poder entrar numa escuta comunitária, pois não podemos discernir sozinhos.

Uma formação ‘vital’

Para o adjetivo ‘vital’, Francisco nos traz uma marca específica, que ele desenvolveu na carta apostólica Gaudete et exsultate (19 de março de 2018), que propõe um verdadeiro tratado de vida espiritual para o nosso tempo. Ele também nos convida a não nos fecharmos na busca de uma atuação ritual, esquecendo a missão e a vida de caridade. Os pilares da vida cristã não podem ser separados : martyria (proclamar o Evangelho e dar testemunho), diakonia (serviço, especialmente aos pobres e aos pequenos) e leiturgeia (o culto prestado a Deus). Contra a tentação de transformar a liturgia em um meio de evasão, ele nos recorda que a liturgia oferece um caminho, o da vida do Espírito, sem o qual o testemunho se perde na propaganda e a caridade no ativismo.

Falar de ‘formação vital’ é, portanto, vislumbrar uma experiência espiritual. Dizer que somos formados ‘pela liturgia’ significa que esta não é um serviço que avaliamos com critérios subjetivos (o ambiente, a ‘beleza’, os cantos, etc.), mas um caminho de conversão. Enquanto distingue a formação ‘para’ a liturgia (para conhecê-la) e a formação ‘pela’ liturgia (deixar-se formar por ela), ele deixa claro que, se a formação ‘pela’ liturgia é ‘funcional’, a formação ‘para’ a liturgia é a seus olhos ‘essencial’ (nº 34). A prioridade dada a uma pesquisa de ambiente e de uma preocupação para ‘fazer algo’ conduz ao esquecimento deste aspecto ainda essencial : nós somos ‘feitos cristãos’ pela própria liturgia.

Esta realidade se manifesta, antes de tudo, nos sacramentos da Iniciação Cristã seguramente. Mas também dizendo juntos ‘Pai Nosso’, que os fiéis se unem ao Filho de Deus que reza ao Pai do céu. É dizendo juntos ‘Eu creio’, que os fiéis se tornam confessores da fé diante do mundo e por ele. É aclamando ‘mistério da fé’ durante a anamnese que os fiéis confessam a glória do Ressuscitado. É ainda respondendo ‘Amém’ durante a Comunhão que eles ratificam sua vocação de membros do Corpo de Cristo.

Conclusão

Finalmente, o convite a conjugar inseparavelmente formação ‘para’ e formação ‘pela’ liturgia manifesta quanto a atenção (e não o julgamento) deveria ser a atitude primordial. Mas, trata-se de tornar-se atento a um mistério invisível que se percebe através de sinais visíveis. Num mundo de hipercomunicação (onde, no entanto, a relação verdadeira é tão frágil e mesmo tão difícil), surge o convite a manter-se longe da vontade de manipular a liturgia, para transmitir uma mensagem, suscitar uma adesão ou cultivar convicções. Porque se trata, acima de tudo, de comungar desta vida divina que nos é comunicada pela celebração dos mistérios.

 

[1] PAPA FRANCISCO, Carta Apostólica Desiderio Desideravi, 29 de junho de 2022; utilizamos a versão online disponível no site do Vaticano.

[2] Cf. Pio X, Motu proprio Abhinc duos annos, 23 de outubro de 1913, que exprimia esta necessidade não hesitando em falar da necessidade de ‘limpar’ a ‘sujidade’ que se tinha instalado no edifício litúrgico herdado do passado.

[3] PAPA FRANCISCO, Carta sobre o papel da literatura na formação, 17 de julho de 2024.

[4] Cf. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Vicesimus quintus annus para o 25º aniversário da Constituição Conciliar sobre a Liturgia, 4 de dezembro de 1988, nº 4, que elogia o fruto de um ‘trabalho considerável e desinteressado de um grande número de peritos e pastores de todas as partes do mundo’ e, sobretudo, de um funcionamento ‘estritamente tradicional’.

[5] Desiderio desideravi é útil para todos. A falta de formação continua a ser flagrante, mesmo entre aqueles que se referem à reforma do Vaticano II. Os princípios aqui expostos permitem abordar em profundidade a grande questão litúrgica, como fator de unidade e não de divisão (Nota do Editor).

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/127

Um comentário:

Anônimo disse...

Assunto bastante pertinente. Obrigada pela publicação!

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