Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Dom Bernhard A. Eckerstorfer, OSB
Reitor do Ateneu Santo Anselmo, Roma
‘Lendo as novas publicações teológicas e monásticas, impressiona
constatar que uma grande parte toca os desafios do nosso tempo. Não há dúvida
de que estamos sendo confrontados com uma mudança, e até mesmo, para muitos,
uma mudança para uma nova época. Como a Igreja no seu conjunto, também os
mosteiros se esforçam por encontrar novos caminhos para o futuro. Esta procura
é mesmo urgente quando a sobrevivência da comunidade depende disso. Nesta
perspectiva a questão da formação para os beneditinos é de grande atualidade e
por isso, explosiva. Mostra se, e como, a renovação monástica pode dar certo.
Este nº da AIM usa a palavra chave ‘hoje’ para apresentar a temática da
formação. A formação monástica sempre se esforçou por transmitir a vida
beneditina numa consciência desperta para a realidade de cada época. Houve,
evidentemente, muitas vezes, um modelo único, considerado duradouro, pois os
modelos de igreja e de sociedade também perduravam por várias gerações. Mas a
nossa situação atual é muito confusa : em pleno meio de mudança de época, as
coisas que antes eram evidentes, agora não o são mais; mas os novos paradigmas
ainda não se impuseram, ninguém sabe como vai ser o futuro. Todos pressentimos
que é preciso engajar-se em novos caminhos. Mas quais para chegar a novos
horizontes?
Na situação atual estou convencido que a teologia é um fator decisivo
para a formação dos beneditinos e para a nova orientação das nossas
comunidades. Mas há que ter em conta outra coisa : o monaquismo poderá
igualmente ter um papel importante na renovação da teologia. Como na vida
política, social e cultural em que se constata uma desorientação, até mesmo uma
ruptura com as antigas instituições e os modos de pensar, até então globalmente
bem recebidos, há uma transição na Igreja e na teologia. Neste domínio a
palavra ‘crise’ está em todas as bocas. A etimologia da palavra pode ter um
papel revelador : crise significa discernimento, decisão, e exige mesmo as duas
coisas.
Gostaria de tratar do assunto que me foi pedido em três pontos.
Abordaria primeiro a iniciação monástica, seu sentido e formas. Fui Mestre de
noviços durante doze anos, e ao longo desse tempo experimentei a necessidade de
iniciações fundamentais. Depois gostaria de reler a prática monástica como um lugar
teológico. Finalmente gostaria de apresentar o papel da universidade na
renovação da vida monástica.
A formação
monástica como processo teológico
Nos mosteiros constatamos que a transmissão da fé se faz essencialmente
pela prática de um certo tipo de vida. Estando numa sociedade religiosa
homogênea, seus pontos de vista, seus usos e costumes são considerados como
evidentes – pois que são partilhados e sustentados pela maioria. A partir do
momento que entramos num mundo pluralista, em que a fé é uma opção, como
qualquer outra, é preciso refletir sobre os atos feitos até então de maneira
automática, não para os perder, mas para os traduzir de outra maneira, para que
sejam compreendidos no contexto atual.
Quando alguém entra no mosteiro, começa um processo de aprendizado
complexo. Integrados nas práticas comunitárias, muitos elementos são
conscientizados ao longo dos primeiros anos; conscientizados quer dizer
pensados e, portanto, postos em questão. Este trabalho é importante para a
pessoa se apropriar dos modos de fazer, que estão enraizados na comunidade. E é
assim, que pela entrada de cada novo membro na comunidade, a vida monástica se
renova, atualizada no processo de apropriação comunitária e individual,
vivificado pelo sentimento de viver no hoje. Assim a vida monástica se mantém
viva.
A introdução à vida beneditina é um processo teológico. O monaquismo
sempre viu o monge como uma pessoa que procura a Deus, e isso exige um modo de
pensar bem ajustado ao modo de vida. Para se ser teólogo, no primeiro sentido
do termo, não precisa fazer um doutorado em teologia. São as pessoas
espiritualmente competentes que levam uma vida ‘teológica’ e que aí introduzem
os outros. Gostaria de ilustrar com um testemunho pessoal como a iniciação de
base é essencial. Entrei no mosteiro com 29 anos, depois de longos estudos no
meu país e no estrangeiro. O Abade e o mestre de noviços me disseram : ‘já tens
um doutorado em teologia, o que poderemos ensinar-te ainda?’ Eles pensaram que
poderia ajudar uma missa pontifical, sem dificuldade. Ora eu nunca fui
coroinha, e nunca me ensinaram nada sobre cerimônias pontificais durante meu
curso de teologia protestante, na América do Norte, estava bem mais atrapalhado
e desajeitado do que meu co-noviço, que tinha vindo diretamente da escola
monástica para o noviciado.
Meu mosteiro superestimou a importância dos meus estudos universitários
para a vida monástica; por outro lado subestimou a necessidade de uma iniciação
monástica para um jovem teólogo. Esta iniciação faz-se por osmose. Em todos os
mosteiros há irmãos e irmãs que vivem sua vida monástica fielmente há anos.
Estão espiritualmente bem modelados, e tornam-se modelos para a geração
seguinte, mais pelo que são, do que pelo que fazem, mais pelo seu ser do que
pelos seus discursos. Quando penso nos meus primeiros anos monásticos, foram
eles os meus mestres, incluindo o abade e o mestre de noviços, de quem já
falei, que não se consideravam grandes teólogos.
É evidente que tive de aprender a minha nova identidade; tive de
entendê-la refletindo. Durante o noviciado foi-me dada a oportunidade de ler,
entre outras obras de base, uma boa parte das obras do meu novo padroeiro São
Bernardo de Claraval. Foi uma nova experiência de aprendizado. Pude saborear a
leitura sem estar sob a pressão de valorizar o que tinha lido em provas ou
deveres acadêmicos. Aprender a ler os grandes textos do monaquismo e da
história da espiritualidade não foi fácil nem evidente. Foi uma bênção que logo
após o noviciado fui enviado para Santo Anselmo por dois anos, ali onde já mais
de 100 de meus irmãos tinham estudado durante decênios. O Credo do nosso abade
na época era : ‘Cada um dos irmãos deveria ter a possibilidade, se quiser, de
passar pelo menos um semestre em Santo Anselmo’.
Em Roma encontrei uma teologia nova para mim. De repente vi-me a rezar e
a comer com os professores e os estudantes. Eis um semestre em Santo Anselmo, o segredo da formação dos beneditinos. O modo de viver e o modo de pensar
interpenetram-se. No entanto, a reflexão teológica sobre a vida beneditina
estava no primeiro plano. Acedi a essa reflexão por meio de alguns cursos,
porém mais ainda pela atenção pessoal de teólogos beneditinos que me ajudaram a
integrar minha formação teológica antecedente na vida monástica. É, justamente,
esta mistura entre um estilo concreto de vida e uma compreensão mais profunda
que caracteriza a vida monástica. Esta junção não pode resistir às exigências
da vida atual, separar-se em diferentes setores sem ligação uns com os outros.
Pouco antes de minha profissão solene passei por uma crise. Outros modos
de vida me atraíram e tive a impressão que os meus quatro anos de monge eram
uma experiência que tinha chegado ao fim. Olhando para trás, tomei consciência
que minha decisão de me engajar pela profissão monástica se deveu, em grande
parte, à reflexão teológica, que pude fazer sobre meu novo gênero de vida, incluindo
os contatos que fiz com o monaquismo mundial, sobretudo durante meus dois anos
em Santo Anselmo.
O exercício
concreto da prática monástica
O germe de uma renovação beneditina está nas práticas monásticas que é
preciso redescobrir, compreender de novo e pôr em prática de modo atualizado. A
formação monástica não serve para nada, quando pressupõe demais. Nada é
evidente quando temos de lidar com jovens nas nossas comunidades. Partamos do
mais elementar : as experiências que nos parecem banais na vida cotidiana devem
ser repensadas. Que atitudes ter? Quais são os ritmos e as estruturas que nos
dão estabilidade? Convém não só imitar o gênero de vida monástico, mas de o
compreender a partir do interior, e – por consequência – pô-lo em questão, e
mudá-lo; até mesmo transformá-lo. Para isso é preciso pôr em ação uma
mistagogia das práticas monásticas, para desenvolver os elementos fundamentais
na sua rica tradição – mas também transferi-los para o mundo contemporâneo : stabilitas e
conversatio, a pequena cela monástica e o grande recinto claustral, a
leitura e a autodisciplina, a solidão e a comunidade etc.
Um ponto essencialíssimo é aprender uma nova maneira de ler. É
impossível a nível mundial, prever o impacto da revolução digital nas nossas
civilizações e a mudança que isso terá na sociedade. Pode dar novas
possibilidades ao monaquismo. Mas não fechemos os olhos ao fato que ela impõe
uma realidade estranha ao espírito beneditino. Os media baseiam-se
em mensagens concisas, com sinais e abreviações que são atuais enquanto duram e
cujo acesso é temporário. A abertura numérica ao mundo não combina com o
processo refletido e a redação laboriosa de escritos cuidadosamente
construídos, nem com a cultura livresca tradicional, mas será que os mosteiros
podem passar sem os meios digitais?
Na lectio os jovens irmãos adquirem não só conhecimentos
religiosos, mas também competência teológica : poder passar uma hora, ou pelo
menos meia hora exclusivamente para ler, cada dia, e isto durante meses e anos!
Na meditatio a leitura sedimenta-se e torna-se sabedoria. Sapientia vem
de sapere, que se pode traduzir por ‘saborear’. É o fundamento da oratio.
Mas quanta paciência e perseverança são precisas para chegar lá, e justamente
no nosso mundo tão capaz tecnologicamente! O ensino no noviciado deve encorajar
a leitura de textos teológicos, que deverão depois ser discutidos. Nesta
partilha não se trata de dizer logo o que eu acho, mas ‘que diz o autor?’ o que
significa ter compreendido bem o texto.
A formação monástica deve permitir uma compreensão mais profunda da
realidade e estabelecer o laço entre a leitura constante de pedaços do texto e
um experiência de leitura holística. Vejamos se nossos mosteiros são viáveis :
a biblioteca é ainda um lugar de vida, ou é um armazenamento, ou no melhor dos
casos uma sala de exposição de um passado de uma procura viva de Deus? Uma
missão teológica do monaquismo hoje não seria fazer renascer a cultura da
leitura? Não seria a primeira vez que os mosteiros seriam vetores,
transmissores de civilização.
Do mosteiro à
universidade e vice-versa
Hoje, mais do que no passado, constatamos que os candidatos precisam de
uma iniciação à fé. O monge forma-se exercitando-se a saborear a leitura e a
descobrir nela todo um universo de significado religioso. Um professor de
teologia experimentado, de uma universidade do Estado me dizia um dia : ‘os que
fizeram um noviciado estudam de maneira diferente’. Mas eu devo dizer que, pelo
menos conforme minha experiência na Europa Central, alguns dos que entram nos
nossos mosteiros têm aversão à teologia universitária. Isso vem, provavelmente,
por causa de uma diminuição científica, quando a teologia é estudada como uma
ciência sem ligação com a fé vivida. Mas por outro lado, revela também a falta
de consciência do que a teologia acadêmica pode e deve fazer para os nossos
mosteiros.
O ensino e a pesquisa teológicos na universidade, em diálogo com as
outras disciplinas, oferece um quadro próprio para a prática e a reflexão acima
descritas. Depois de ter passado vinte anos no meu mosteiro na Áustria,
reencontro em Santo Anselmo a liberdade oferecida pelo quadro acadêmico, no
qual os estudos são prioritários, mas não separados da vida espiritual. Assim
os estudantes podem consagrar-se a uma especialização em filosofia, teologia e/ou
liturgia fazendo frutificar as outras coisas que os atraem. A crise do Corona
mostrou como a missão educativa pode ser realizada por meio das novas
tecnologias. Continuamos com o ensino direto, que integra uma discussão pessoal
no lugar e faz valorizar a cidade de Roma, e nela da Igreja universal, como
experiência teológica. No entanto, alargamos sempre mais nossas possibilidades ‘on
line’ para abrir para as pessoas que não podem vir para a Cidade Eterna uma
participação no ensino e na pesquisa de Santo Anselmo.
Não devemos subestimar o trabalho de colegas religiosos, ou faculdades
de Estado que contribuem para vivificar e tornar plausível nossa existência
beneditina. Conforme posso observar, as novas fundações monásticas vão
juntamente com uma reelaboração teológica, enraizando-se nas fontes do
monaquismo; como havia previsto o Vaticano II, uma volta às fontes, junto com a
procura de modalidades adaptadas às condições atuais (aggiornamento). A
teologia científica pode, neste domínio, dar uma grande contribuição. A fé
vivida, tal como se expressa nas práticas monásticas, necessita de uma reflexão
crítica e da apresentação da rica Tradição neste nosso tempo. Isto protegerá os
nossos mosteiros de se fecharem no unilateralismo, no devocionismo e nas
ideologias de todo o tipo.
Os mosteiros ricos de sua tradição monástica têm muito a dizer ao mundo
universitário de hoje. O decano da faculdade de teologia de uma universidade do
Estado declarou recentemente, que lamenta que a teologia universitária não
apareça na sociedade e na cultura de hoje. Vemos que o mundo leigo está
interessado no testemunho vivido da fé (no testemunho de uma fé viva). Quando
se pratica a teologia como uma forma inspirada pela experiência da fé e a
expressão de uma liturgia viva, então as outras disciplinas (acadêmicas)
começam a interessar-se e até as pessoas que estão à procura de alternativas
convincentes. Ao menos para a Europa Central, posso testemunhar que para além
de todas as crises que afetam atualmente a Igreja e seu trabalho pastoral
tradicional, do qual os mosteiros não estão excluídos, o interesse pela vida
beneditina é grande e constante, tanto nos que creem, como nos céticos.
Encontram nos mosteiros a realização de suas aspirações por uma ‘vida
alternativa’ e gostariam de se inspirar na riqueza e na força espiritual das
antigas tradições. Isto deveria nos encorajar em nossos mosteiros a ajustar
nosso tipo de vida beneditina com uma maneira de pensar adequada, desde o
noviciado até aos altos níveis de formação religiosa. O monaquismo poderia assim
contribuir para uma teologia renovada, no seio de uma Igreja missionária, que,
segundo o Papa Francisco não deveria contar só com os especialistas das
universidades de teologia e os burocratas da organização eclesial.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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