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sábado, 1 de março de 2025

Formação teológica e renovação monástica

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Pontificio Ateneo Sant'Anselmo, Roma
 

*Artigo de Dom Bernhard A. Eckerstorfer, OSB

Reitor do Ateneu Santo Anselmo, Roma


‘Lendo as novas publicações teológicas e monásticas, impressiona constatar que uma grande parte toca os desafios do nosso tempo. Não há dúvida de que estamos sendo confrontados com uma mudança, e até mesmo, para muitos, uma mudança para uma nova época. Como a Igreja no seu conjunto, também os mosteiros se esforçam por encontrar novos caminhos para o futuro. Esta procura é mesmo urgente quando a sobrevivência da comunidade depende disso. Nesta perspectiva a questão da formação para os beneditinos é de grande atualidade e por isso, explosiva. Mostra se, e como, a renovação monástica pode dar certo.

Este nº da AIM usa a palavra chave ‘hoje’ para apresentar a temática da formação. A formação monástica sempre se esforçou por transmitir a vida beneditina numa consciência desperta para a realidade de cada época. Houve, evidentemente, muitas vezes, um modelo único, considerado duradouro, pois os modelos de igreja e de sociedade também perduravam por várias gerações. Mas a nossa situação atual é muito confusa : em pleno meio de mudança de época, as coisas que antes eram evidentes, agora não o são mais; mas os novos paradigmas ainda não se impuseram, ninguém sabe como vai ser o futuro. Todos pressentimos que é preciso engajar-se em novos caminhos. Mas quais para chegar a novos horizontes?

Na situação atual estou convencido que a teologia é um fator decisivo para a formação dos beneditinos e para a nova orientação das nossas comunidades. Mas há que ter em conta outra coisa : o monaquismo poderá igualmente ter um papel importante na renovação da teologia. Como na vida política, social e cultural em que se constata uma desorientação, até mesmo uma ruptura com as antigas instituições e os modos de pensar, até então globalmente bem recebidos, há uma transição na Igreja e na teologia. Neste domínio a palavra ‘crise’ está em todas as bocas. A etimologia da palavra pode ter um papel revelador : crise significa discernimento, decisão, e exige mesmo as duas coisas.

Gostaria de tratar do assunto que me foi pedido em três pontos. Abordaria primeiro a iniciação monástica, seu sentido e formas. Fui Mestre de noviços durante doze anos, e ao longo desse tempo experimentei a necessidade de iniciações fundamentais. Depois gostaria de reler a prática monástica como um lugar teológico. Finalmente gostaria de apresentar o papel da universidade na renovação da vida monástica.

A formação monástica como processo teológico

Nos mosteiros constatamos que a transmissão da fé se faz essencialmente pela prática de um certo tipo de vida. Estando numa sociedade religiosa homogênea, seus pontos de vista, seus usos e costumes são considerados como evidentes – pois que são partilhados e sustentados pela maioria. A partir do momento que entramos num mundo pluralista, em que a fé é uma opção, como qualquer outra, é preciso refletir sobre os atos feitos até então de maneira automática, não para os perder, mas para os traduzir de outra maneira, para que sejam compreendidos no contexto atual.

Quando alguém entra no mosteiro, começa um processo de aprendizado complexo. Integrados nas práticas comunitárias, muitos elementos são conscientizados ao longo dos primeiros anos; conscientizados quer dizer pensados e, portanto, postos em questão. Este trabalho é importante para a pessoa se apropriar dos modos de fazer, que estão enraizados na comunidade. E é assim, que pela entrada de cada novo membro na comunidade, a vida monástica se renova, atualizada no processo de apropriação comunitária e individual, vivificado pelo sentimento de viver no hoje. Assim a vida monástica se mantém viva.

A introdução à vida beneditina é um processo teológico. O monaquismo sempre viu o monge como uma pessoa que procura a Deus, e isso exige um modo de pensar bem ajustado ao modo de vida. Para se ser teólogo, no primeiro sentido do termo, não precisa fazer um doutorado em teologia. São as pessoas espiritualmente competentes que levam uma vida ‘teológica’ e que aí introduzem os outros. Gostaria de ilustrar com um testemunho pessoal como a iniciação de base é essencial. Entrei no mosteiro com 29 anos, depois de longos estudos no meu país e no estrangeiro. O Abade e o mestre de noviços me disseram : ‘já tens um doutorado em teologia, o que poderemos ensinar-te ainda?’ Eles pensaram que poderia ajudar uma missa pontifical, sem dificuldade. Ora eu nunca fui coroinha, e nunca me ensinaram nada sobre cerimônias pontificais durante meu curso de teologia protestante, na América do Norte, estava bem mais atrapalhado e desajeitado do que meu co-noviço, que tinha vindo diretamente da escola monástica para o noviciado.

Meu mosteiro superestimou a importância dos meus estudos universitários para a vida monástica; por outro lado subestimou a necessidade de uma iniciação monástica para um jovem teólogo. Esta iniciação faz-se por osmose. Em todos os mosteiros há irmãos e irmãs que vivem sua vida monástica fielmente há anos. Estão espiritualmente bem modelados, e tornam-se modelos para a geração seguinte, mais pelo que são, do que pelo que fazem, mais pelo seu ser do que pelos seus discursos. Quando penso nos meus primeiros anos monásticos, foram eles os meus mestres, incluindo o abade e o mestre de noviços, de quem já falei, que não se consideravam grandes teólogos.

É evidente que tive de aprender a minha nova identidade; tive de entendê-la refletindo. Durante o noviciado foi-me dada a oportunidade de ler, entre outras obras de base, uma boa parte das obras do meu novo padroeiro São Bernardo de Claraval. Foi uma nova experiência de aprendizado. Pude saborear a leitura sem estar sob a pressão de valorizar o que tinha lido em provas ou deveres acadêmicos. Aprender a ler os grandes textos do monaquismo e da história da espiritualidade não foi fácil nem evidente. Foi uma bênção que logo após o noviciado fui enviado para Santo Anselmo por dois anos, ali onde já mais de 100 de meus irmãos tinham estudado durante decênios. O Credo do nosso abade na época era : ‘Cada um dos irmãos deveria ter a possibilidade, se quiser, de passar pelo menos um semestre em Santo Anselmo’.

Em Roma encontrei uma teologia nova para mim. De repente vi-me a rezar e a comer com os professores e os estudantes. Eis um semestre em Santo Anselmo, o segredo da formação dos beneditinos. O modo de viver e o modo de pensar interpenetram-se. No entanto, a reflexão teológica sobre a vida beneditina estava no primeiro plano. Acedi a essa reflexão por meio de alguns cursos, porém mais ainda pela atenção pessoal de teólogos beneditinos que me ajudaram a integrar minha formação teológica antecedente na vida monástica. É, justamente, esta mistura entre um estilo concreto de vida e uma compreensão mais profunda que caracteriza a vida monástica. Esta junção não pode resistir às exigências da vida atual, separar-se em diferentes setores sem ligação uns com os outros.

Pouco antes de minha profissão solene passei por uma crise. Outros modos de vida me atraíram e tive a impressão que os meus quatro anos de monge eram uma experiência que tinha chegado ao fim. Olhando para trás, tomei consciência que minha decisão de me engajar pela profissão monástica se deveu, em grande parte, à reflexão teológica, que pude fazer sobre meu novo gênero de vida, incluindo os contatos que fiz com o monaquismo mundial, sobretudo durante meus dois anos em Santo Anselmo.

O exercício concreto da prática monástica

O germe de uma renovação beneditina está nas práticas monásticas que é preciso redescobrir, compreender de novo e pôr em prática de modo atualizado. A formação monástica não serve para nada, quando pressupõe demais. Nada é evidente quando temos de lidar com jovens nas nossas comunidades. Partamos do mais elementar : as experiências que nos parecem banais na vida cotidiana devem ser repensadas. Que atitudes ter? Quais são os ritmos e as estruturas que nos dão estabilidade? Convém não só imitar o gênero de vida monástico, mas de o compreender a partir do interior, e – por consequência – pô-lo em questão, e mudá-lo; até mesmo transformá-lo. Para isso é preciso pôr em ação uma mistagogia das práticas monásticas, para desenvolver os elementos fundamentais na sua rica tradição – mas também transferi-los para o mundo contemporâneo : stabilitas e conversatio, a pequena cela monástica e o grande recinto claustral, a leitura e a autodisciplina, a solidão e a comunidade etc.

Um ponto essencialíssimo é aprender uma nova maneira de ler. É impossível a nível mundial, prever o impacto da revolução digital nas nossas civilizações e a mudança que isso terá na sociedade. Pode dar novas possibilidades ao monaquismo. Mas não fechemos os olhos ao fato que ela impõe uma realidade estranha ao espírito beneditino. Os media baseiam-se em mensagens concisas, com sinais e abreviações que são atuais enquanto duram e cujo acesso é temporário. A abertura numérica ao mundo não combina com o processo refletido e a redação laboriosa de escritos cuidadosamente construídos, nem com a cultura livresca tradicional, mas será que os mosteiros podem passar sem os meios digitais?

Na lectio os jovens irmãos adquirem não só conhecimentos religiosos, mas também competência teológica : poder passar uma hora, ou pelo menos meia hora exclusivamente para ler, cada dia, e isto durante meses e anos! Na meditatio a leitura sedimenta-se e torna-se sabedoria. Sapientia vem de sapere, que se pode traduzir por ‘saborear’. É o fundamento da oratio. Mas quanta paciência e perseverança são precisas para chegar lá, e justamente no nosso mundo tão capaz tecnologicamente! O ensino no noviciado deve encorajar a leitura de textos teológicos, que deverão depois ser discutidos. Nesta partilha não se trata de dizer logo o que eu acho, mas ‘que diz o autor?’ o que significa ter compreendido bem o texto.

A formação monástica deve permitir uma compreensão mais profunda da realidade e estabelecer o laço entre a leitura constante de pedaços do texto e um experiência de leitura holística. Vejamos se nossos mosteiros são viáveis : a biblioteca é ainda um lugar de vida, ou é um armazenamento, ou no melhor dos casos uma sala de exposição de um passado de uma procura viva de Deus? Uma missão teológica do monaquismo hoje não seria fazer renascer a cultura da leitura? Não seria a primeira vez que os mosteiros seriam vetores, transmissores de civilização.

Do mosteiro à universidade e vice-versa

Hoje, mais do que no passado, constatamos que os candidatos precisam de uma iniciação à fé. O monge forma-se exercitando-se a saborear a leitura e a descobrir nela todo um universo de significado religioso. Um professor de teologia experimentado, de uma universidade do Estado me dizia um dia : ‘os que fizeram um noviciado estudam de maneira diferente’. Mas eu devo dizer que, pelo menos conforme minha experiência na Europa Central, alguns dos que entram nos nossos mosteiros têm aversão à teologia universitária. Isso vem, provavelmente, por causa de uma diminuição científica, quando a teologia é estudada como uma ciência sem ligação com a fé vivida. Mas por outro lado, revela também a falta de consciência do que a teologia acadêmica pode e deve fazer para os nossos mosteiros.

O ensino e a pesquisa teológicos na universidade, em diálogo com as outras disciplinas, oferece um quadro próprio para a prática e a reflexão acima descritas. Depois de ter passado vinte anos no meu mosteiro na Áustria, reencontro em Santo Anselmo a liberdade oferecida pelo quadro acadêmico, no qual os estudos são prioritários, mas não separados da vida espiritual. Assim os estudantes podem consagrar-se a uma especialização em filosofia, teologia e/ou liturgia fazendo frutificar as outras coisas que os atraem. A crise do Corona mostrou como a missão educativa pode ser realizada por meio das novas tecnologias. Continuamos com o ensino direto, que integra uma discussão pessoal no lugar e faz valorizar a cidade de Roma, e nela da Igreja universal, como experiência teológica. No entanto, alargamos sempre mais nossas possibilidades ‘on line’ para abrir para as pessoas que não podem vir para a Cidade Eterna uma participação no ensino e na pesquisa de Santo Anselmo.

Não devemos subestimar o trabalho de colegas religiosos, ou faculdades de Estado que contribuem para vivificar e tornar plausível nossa existência beneditina. Conforme posso observar, as novas fundações monásticas vão juntamente com uma reelaboração teológica, enraizando-se nas fontes do monaquismo; como havia previsto o Vaticano II, uma volta às fontes, junto com a procura de modalidades adaptadas às condições atuais (aggiornamento). A teologia científica pode, neste domínio, dar uma grande contribuição. A fé vivida, tal como se expressa nas práticas monásticas, necessita de uma reflexão crítica e da apresentação da rica Tradição neste nosso tempo. Isto protegerá os nossos mosteiros de se fecharem no unilateralismo, no devocionismo e nas ideologias de todo o tipo.

Os mosteiros ricos de sua tradição monástica têm muito a dizer ao mundo universitário de hoje. O decano da faculdade de teologia de uma universidade do Estado declarou recentemente, que lamenta que a teologia universitária não apareça na sociedade e na cultura de hoje. Vemos que o mundo leigo está interessado no testemunho vivido da fé (no testemunho de uma fé viva). Quando se pratica a teologia como uma forma inspirada pela experiência da fé e a expressão de uma liturgia viva, então as outras disciplinas (acadêmicas) começam a interessar-se e até as pessoas que estão à procura de alternativas convincentes. Ao menos para a Europa Central, posso testemunhar que para além de todas as crises que afetam atualmente a Igreja e seu trabalho pastoral tradicional, do qual os mosteiros não estão excluídos, o interesse pela vida beneditina é grande e constante, tanto nos que creem, como nos céticos. Encontram nos mosteiros a realização de suas aspirações por uma ‘vida alternativa’ e gostariam de se inspirar na riqueza e na força espiritual das antigas tradições. Isto deveria nos encorajar em nossos mosteiros a ajustar nosso tipo de vida beneditina com uma maneira de pensar adequada, desde o noviciado até aos altos níveis de formação religiosa. O monaquismo poderia assim contribuir para uma teologia renovada, no seio de uma Igreja missionária, que, segundo o Papa Francisco não deveria contar só com os especialistas das universidades de teologia e os burocratas da organização eclesial.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/119

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