terça-feira, 31 de dezembro de 2024

São Silvestre (†335)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo da redação da revista Ave Maria


‘Durante a perseguição de Diocleciano, São Silvestre teria confessado a fé e por esse motivo no ano 314 teria sido escolhido como bispo de Roma. A presença e o espírito empreendedor do imperador Constantino, porém, conseguiram colocar um pouco na sombra a figura desse Papa. O imperador, de fato, tinha os meios e o poder para facilitar a organização da religião cristã, por ele já reconhecida como religião de Estado, e ao próprio Papa não restava senão assistir aos acontecimentos.

Para Eusébio de Cesareia e para a maioria dos bispos, a liberdade dada por Constantino aos cristãos era um sinal dos novos tempos. Bem poucos se apercebiam de que esses favores assinalavam também o início de uma perigosa intromissão do poder político na vida interna da Igreja. Por outro lado, a história tem seus tempos e não podemos julgar com a medida de hoje acontecimentos tão remotos.

Também se Silvestre era praticamente a primeira autoridade de Roma, onde o imperador aparecia raramente, permanecia sempre sob o manto protetor de Constantino.

Em Roma, a comunidade cristã tinha necessidade de edifícios amplos para a própria administração e para o culto. Constantino dava o Palácio Lateranense e edificava as basílicas de Latrão, de São Pedro e de São Paulo Fora dos Muros. Existiam turbulências por causa das heresias donatista e ariana em várias partes do império e os bispos deviam reunir-se em concílio para discutir. O imperador era o primeiro a interessar-se pelo assunto para poder conservar a paz nos seus territórios e tomava a iniciativa não só de convocar concílios, mas também de fornecer os meios de transporte e de alojamento aos bispos de maneira que pudessem se movimentar com todas as honras, utilizando as estruturas públicas do Estado.

O Concílio de Arles

Em 314, Constantino, diante dos tumultos deflagrados na África pela heresia donatista, convocou os bispos para um concílio em Arles. Silvestre não tomou parte nele pessoalmente, mas enviou quatro delegados. Os bispos aí reunidos por sua conta reconheciam a autoridade do Papa não só acolhendo com deferência os delegados, mas escrevendo-lhe no fim uma carta e convidando-o a comunicar a todos os bispos do mundo as decisões conciliares, avalizando-as com a autoridade de Pedro.

Eis um trecho dessa carta : ‘Tivesse o Céu querido, ó Pai caríssimo, que estivésseis presente neste grande espetáculo! (…) Se tivésseis estado conosco, grande teria sido a alegria de toda a assembleia. Mas visto que não podíeis deixar a cidade, sede preferida dos apóstolos, onde o seu sangue testemunha a glória de Deus, a vós referimos que não entendemos como nosso único dever trata dos argumentos para os quais tínhamos sido convocados; visto que provínhamos de diversas províncias, acreditamos oportuno consultar-nos sobre vários problemas que se deviam discutir, com a assistência do Espírito Santo e dos anjos. E desejamos que sejais vós, cuja autoridade é mais ouvida, que façais conhecer a todas as igrejas as nossas decisões’ (citado in: Rendina, C. I. Papi: Storia e segreti. Roma, Newton, 1993, pp. 63-64).

Silvestre inaugurava a prática, tornada depois muito comum aos pontífices romanos, de não participar pessoalmente de concílios celebrados fora de Roma, seja para não correr o risco de ser submetido a pressões, seja para ter a possibilidade de um posterior exame dos decretos conciliares antes de promulgá-los definitivamente.

Em Roma, no entanto, Silvestre levava em frente os trabalhos da construção ou da adaptação dos edifícios sacros, aproveitando a munificência imperial e a generosidade das famílias nobres romanas. Intervinha também no calendário, tirando dos dias os nomes pagãos dedicados aos deuses e chamando-os com o nome genérico de feriae (férias II, III, IV, V, VI) e, depois, sábado e domingo. Nesse período, o domingo foi reconhecido como dia festivo também pelas autoridades civis e, portanto, dedicado ao repouso e ao culto.

O Concílio de Niceia

Entretanto, no clima de liberdade que vivia a religião cristã, também as heresias podiam mais facilmente difundir-se, como aconteceu com o arianismo por obra de um padre alexandrino empreendedor, chamado exatamente Ario. Ele sustentava que Jesus Cristo era simplesmente um homem extraordinário que Deus havia adotado como filho. A heresia causava profundas cisões entre os cristãos e, frequentemente, também desordens que provocavam intervenções militares.

Constantino, como havia feito em Arles, pensou em dar um jeito nisso mediante um novo concílio e dessa vez o convocou para Niceia para favorecer a participação dos bispos do Oriente, onde o problema estava mais aceso.

O Papa Silvestre, segundo sua linha prudente, também dessa vez enviou dois dos seus presbíteros como legados, Vito e Vicente. O concílio abriu-se a 14 de junho de 325 com a participação de trezentos bispos, na presença de Constantino, sob a presidência do Bispo Ósio e dos dois legados papais. Os arianos foram condenados e foi formulado o famoso símbolo de fé chamado exatamente niceno, no qual se reafirma a divindade de Cristo.

            Não mártir, mas igualmente santo

Tudo parecia já resolvido, mas o arianismo continuava a sobreviver debaixo das cinzas. Ario conseguiu chegar até Constantino e o convenceu de ter sido injustamente condenado. O imperador, sem avisar o Papa, convocou uma nova assembleia de bispos, todos arianos, em Tiro, em 335. O conciliábulo condenou Santo Atanásio e reabilitou Ario. O Papa Silvestre, no entanto, deixava este mundo no dia 31 de dezembro daquele mesmo ano e era logo venerado como santo pela cidade de Roma. Era o primeiro Papa que recebia as honras dos altares sem ter sofrido o martírio. Séculos mais tarde, inventou-se a ‘doação de Constantino’ : o imperador teria dado ao Papa Silvestre a cidade de Roma, a Itália e outras regiões ocidentais.

Se o documento é claramente falso é verdade o fato de que, transferida para Bizâncio a capital do império, o Ocidente foi abandonado à sua própria sorte e os papas e bispos durante muito tempo precisaram se ocupar não só do aspecto religioso, mas também do aspecto temporal da vida dos cidadãos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/sao-silvestre-%E2%80%A0335.html

 

domingo, 29 de dezembro de 2024

Sagrada Família de Nazaré: testemunho de amor e perseverança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Rodrigo de Castro


‘‘José subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, para se alistar com a sua esposa, Maria, que estava grávida. Estando eles ali, completaram-se os dias dela. E deu à luz seu filho primogênito e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio’ (Lc 2,4-5) : aqui o evangelista cita os três personagens da Sagrada Família.

Um pouco adiante, quando os pastores, recebendo dos anjos a notícia do nascimento do Salvador, vão até o local, novamente, os três são citados : ‘Foram com grande pressa [os pastores] e acharam Maria e José, e o Menino [Jesus] deitado na manjedoura’ (Lc 2,16). Novamente Lucas, o mais minucioso dos quatro evangelistas, narra a presença da Sagrada Família, ouvindo dos pastores as coisas maravilhosas que lhes foram ditas pelos anjos a respeito daquele menino que nascera. E Lucas assim conclui a narrativa : ‘Maria conservava todas estas palavras, meditando-as em seu coração’ (Lc 2,19).

Lucas citará ainda a presença de José, Maria e Jesus juntos em mais dois momentos. Um, quando o santo casal, para cumprir a lei de Moisés, leva o Menino Jesus ao templo para apresentá-lo ao Senhor, escrevendo assim : ‘Concluídos os dias de sua purificação [de Maria pós-parto] segundo a lei de Moisés, [José e Maria] levaram-no [o Menino Jesus] a Jerusalém para o apresentar ao Senhor’ (Lc 2,22).

A outra vez em que a Sagrada Família é relatada junta por Lucas será quando Jesus, aos 12 anos, viajou com os seus santos pais para Jerusalém, por ocasião da Páscoa judaica : ‘Seus pais [José e Maria] iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. Tendo Ele [Jesus] atingido 12 anos, subiram [a Sagrada Família junta] a Jerusalém, segundo o costume da festa’ (Lc 2,41-42). Depois, o santo casal não é mais citado por Lucas nem pelos outros evangelistas, a não ser Maria : nas bodas de Caná e aos pés da cruz.

A encarnação nos reaproxima do santo mistério de Deus se encarnando no seio de uma família para experimentar as nossas limitações (exceto o pecado) e, na vida adulta, entregar-se passivamente, como uma mera vítima pascal, para a remissão dos pecados de toda a humanidade : passada, presente e futura. Deus escolhe vir ao mundo por uma família!

Vocês sabem por que Deus veio ao mundo por uma família? Porque a família é fruto do único Sacramento que não foi destruído pelo pecado original de Adão e Eva, o Sacramento do Matrimônio. O maligno, com sua astúcia, conseguiu tirar os nossos primeiros pais do Paraíso, mas não conseguiu destruir a união a eles proferida por Deus, narrada no Gênesis : ‘Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher e já não são mais que uma só carne’ (2,24). E Jesus, questionado sobre esse Sacramento, confirma-o e conclui : ‘Portanto, não separe o homem o que Deus uniu’ (Mt 19,6).

Deus veio ao mundo, por meio de uma Família Sagrada, para santificar as famílias que, por sua união, participam do projeto dele para povoar a Terra com homens e mulheres que cuidam de sua obra : a natureza, os animais, a terra, o mar, o cosmos e todo o universo, que nem temos ciência de sua dimensão. Contemplar a Sagrada Família é enxergar a esperança nas famílias : parceiras de Deus na descendência humana, de geração a geração.

Assim, a nossa missão primeira aqui no santuário é a de incentivar as famílias a buscar a santidade, afastando-se gradualmente dos pecados e aproximando-se cada vez mais das coisas santas e sagradas : os sacramentos, as celebrações, o dízimo, a Palavra de Deus, os santos e tudo mais que nossa Igreja oferece. Assim, despertaremos em nós o amor que Deus espera de seus filhos e filhas. Amor ágape que São Paulo assim define : ‘O amor é paciente, o amor é bondoso. Não tem inveja. O amor não é orgulhoso. Não é arrogante. Nem escandaloso. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta’ (1Cor 13,4-7). Nesse texto, Paulo nos aponta quinze atitudes que precisam existir no seio de sua família. Meditando-o, a sua família pode fazer um bom exame de consciência, preparando-se para o Natal.

Na Sagrada Família, encontramos razões para que a família se reconcilie, se está dividida; para que a família se restaure, se está ferida por mágoas e ressentimentos passados; para que se perdoe, se foi ferida pelos pecados da traição, das mentiras, dos remorsos e outros sentimentos ruins; para que sejam misericordiosas, para as situações que não têm mais soluções possíveis; enfim, para que as famílias se santifiquem se estão em pecado.

Ter um olhar para a família sob a ótica da Sagrada Família é isso, amados e amadas, e um dos frutos de uma família buscando a santidade é a caridade para com o próximo, vivendo o segundo mandamento : ‘Amar o próximo como a si mesmo’. Gesto libertador, como nos ensina São Pedro, nosso primeiro Papa, que conviveu com Jesus : ‘Antes de tudo, mantende entre vós uma ardente caridade, porque a caridade cobre a multidão dos pecados (Pr 10,12)’ (1Pd 4,8). 

Caridade material, que faz com que aprendamos a dividir nossos bens materiais e espirituais com os que precisam, viver também essa dimensão do amor na família.

Na confiança de que sua família se empenhará a viver diferente com o exemplo da Sagrada Família, mais espiritual e menos material, exorto você a encontrar seu real espírito. Espírito de dar graças a Deus por Ele ter vindo ao mundo, por meio de uma família, para consolidar a santificação de nossas famílias aqui na terra com perseverança, colocando em prática a esperança e mergulhando no amor.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/sagrada-familia-de-nazare-testemunho-de-amor-e-perseveranca.html

sábado, 28 de dezembro de 2024

Como lidar com a depressão de fim de ano

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Licio de Araújo Vale

 

‘No final de ano, é muito comum que algumas pessoas não entrem no tão esperado ‘espírito natalino’. Nem sempre a festividade contagia o indivíduo, mas pelo contrário, sentimentos de ansiedade, solidão, tristeza, estresse e depressão podem vir à tona, e por sinal, são até mais comuns durante esta época. Se você se sente mais para baixo diante das festividades natalinas, e até mesmo com o ano novo, saiba que você não é o único, e há diversas explicações para isso.

Frustração e angústia

Este é um momento que nos faz refletir sobre tudo aquilo que vivemos neste ano, e tudo aquilo que queremos para nós no ano seguinte. É comum que algumas pessoas reflitam sobre suas expectativas não realizadas, e criem novas para o futuro, muitas vezes até exageradas como uma forma de compensar tudo que não foi elaborado neste ano, mas este sofrimento pode vir muitas vezes acompanhado de uma estagnação, e isso pode se tornar um ciclo que se repete.  É importante que se olhe para trás e perceba que você se constituí com base em tudo que você fez até então, e tudo o que você não fez, também! Se perceba no hoje, e reflita ‘o que eu sou com base no que fui até então, e o que quero ser com base no que sou agora’. A melhor comparação que podemos fazer é com nosso eu do passado, use-o como motivação para se desenvolver, mas mantendo suas expectativas de acordo com a realidade, e reconhecendo seus limites e impasses, deixe de lado ‘projetos exagerados’, planeje apenas o que realmente te fará bem, e deixe de lado o passado, pois o mesmo existe para ser superado.

Solidão

Nas festividades do final de ano, podemos perceber cada vez mais um ‘complexo de período perfeito’. Cada vez mais vemos na TV, redes sociais e mídias no geral, imagens de famílias se reunindo no Natal, casais celebrando, pessoas cercadas de amigos na virada de ano, mas sabemos também que só são mostrados os lados bons nestas propagandas ou fotos de Instagram, e de forma exagerada e manipulada. É comum que tenhamos saudades de pessoas que já passaram tal época conosco, ou também o desejo de simplesmente ter alguém especial, mas devemos considerar que cabe a nós então, reavaliarmos de quem estamos nos cercando, de quem queremos estar próximos, o que podemos fazer para no ano seguinte estarmos mais satisfeitos. Usar estes sentimentos como motivação para um melhor desenvolvimento, e não se apegar a rótulos, de forma que possamos criar a nossa própria festividade, nossas próprias maneiras e tradições de comemoração, aproveitando os detalhes também por nós criados. Se você quiser que o Natal seja uma boa época para maratonar aqueles filmes que você ama, sozinho, não há problema nisso! Desde que lhe faça feliz.

Estes sentimentos de insatisfação, podem servir como uma ponte para nosso autoconhecimento, sendo ele um bom caminho para bem-estar e desenvolvimento pessoal. A psicoterapia também entra como uma ótima forma de se explorar, se permitir, e se amar! Não deixe de cuidar de si mesmo, reconheça o que te limita, e o que te motiva.

 Como lidar com a depressão nas festas de fim de ano?

Para quem sofreu alguma perda é normal sentir algum vazio nesta época do ano, para que isso não aconteça, é importante realizar algumas atitudes que aliviam esses sentimentos negativos, como :

  • Planejar uma viagem em família ou com amigos ao invés de passar o feriado sozinho em casa;
  • Não se sinta obrigado a nada! Caso algum evento ou situação esteja te fazendo mal, você tem todo o direito de ir embora;
  • Voluntariado : organize uma ação em que você distribui presentes às crianças carentes ou alimentos para ceia em comunidades pobres, a solidariedade é capaz de efeitos muito positivos tanto para quem faz quanto para quem recebe;
  • Participar da missa na Comunidade, rezar em casa, fazer a Leitura Orante, nos fazem reconectar com a Igreja e com o Senhor;
  • Entrar em contato com a natureza. Uma caminhada no parque ou na praia pode ser uma experiência positiva, capaz de aliviar a mente e gerar sensações de bem-estar.

Ah, e uma última dica muito importante! Ao medir os aspectos positivos e negativos de nossas vidas, devemos alimentar o otimismo e a esperança. Que a força da esperança encha o nosso presente, pois é a esperança que dá o sabor viver a vida!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2024-12/padre-licio-como-lidar-depressao-fim-ano.html

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Martas e Marias

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Jesús Ruiz Molina,

Bispo auxiliar de Bangassou, RCA

 

‘Betânia foi para Jesus um lugar de repouso, um oásis onde podia recarregar as suas baterias humanas e espirituais. A casa de Lázaro e das suas irmãs, Marta e Maria, tinha sabor a lar, a amizade profunda, a lugar de repouso para o coração. O que teria sido de Jesus e dos seus discípulos se Marta não se tivesse dado ao trabalho de os acolher, de lhes dar uma boa refeição e de lhes proporcionar um lugar de repouso? Onde se teria expandido o coração de Jesus se Maria não tivesse sabido escutar e acolher os segredos do Mestre? E aquele amigo Lázaro, que Jesus tanto amava. Marta e Maria, duas faces de uma mesma realidade, nem sempre fácil de combinar. Marta, a dona de casa que soube extrair de Jesus palavras de vida eterna : «Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá.» Maria, que aos pés do Mestre aprende os segredos escondidos no seu coração : «Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada.»

Estas reflexões sobre a vida de Jesus vêm-me à mente enquanto escrevo no meu diário tudo o que estou a viver com o povo centro-africano da diocese de Mbaiki, que me foi confiada como bispo. Talvez eu esteja enganado, mas tenho a sensação de que, desde há algum tempo, nós, na Igreja, estamos a inclinar a balança para o lado de Maria em detrimento de Marta. O fato de o Papa Francisco ter ido viver para a Casa de Santa Marta é um símbolo que pode equilibrar a realidade do discípulo que tem de nadar entre duas águas, a ação e a contemplação, duas asas da mesma ave. Não se trata de escolher uma em detrimento da outra, as duas juntas permitem-nos voar para as alturas do Reino. 

Ação e contemplação

Este difícil equilíbrio deve existir também na vida religiosa e missionária. Nos últimos tempos fui confrontado com uma situação que gera um conflito entre as duas asas da vida do discípulo. Na diocese há 40 religiosas pertencentes a uma dezena de congregações, entre as quais há apenas cinco Martas com as quais posso contar incondicionalmente para qualquer missão. As outras não são necessariamente Marias. Estas cinco Martas de que falo são mulheres preparadas, ativas, prontas a enfrentar novos desafios, a romper com os moldes, a misturar-se com os pigmeus Aka, a curar os doentes que ninguém se atreve a tocar, a enveredar por caminhos até então inexplorados por uma religiosa, a viver uma liderança feminina na Igreja... Mas o que descubro é que o fato de agirem como Martas, mulheres do Evangelho ao serviço da diocese, as coloca em sério conflito com as suas congregações. Várias superioras provinciais vieram queixar-se : que as irmãs estão sempre fora da comunidade, que viajam demasiado, que dormem nas aldeias com as pessoas, que abandonam a comunidade da qual são por vezes superioras, que dão prioridade aos compromissos diocesanos em detrimento dos congregacionais. A situação está a fazer sofrer três delas.

Nalguns casos, o conflito é latente com as suas congregações e leva-as a acentuar a sua identidade e pertença a uma Igreja diocesana, mas, outras vezes, o conflito cheira-me a ciúme escondido, como se houvesse infidelidade à congregação quando há grande doação à pastoral diocesana. E digo a mim mesmo : se o carisma da congregação não está ao serviço da Igreja particular, então corre-se o risco de «sectarismo». Como é difícil o equilíbrio entre esta Marta e esta Maria que cada instituição, cada congregação, cada discípulo, traz dentro de si! Durante séculos, a Igreja idealizou Maria e encerrou as freiras nos conventos, sem se dar conta de que Marta é indispensável para as coisas de Jesus.

Sofro quando vejo o conflito das cinco religiosas com as suas congregações, que as censuram pelo seu afastamento. Procuro não me meter nos assuntos internos, mas como é difícil para mim quando o que está em causa é um estilo de missão, um estilo de Igreja. Sofro porque pressinto as ameaças que pesam sobre algumas delas e que as destinarão a outra comunidade. Uma das superioras disse-me que tinha feito um ultimato a uma delas. Eu disse-lhe : «Sei que estás em vantagem, mas também te peço que revejas o teu carisma de fundação. Tenho a certeza de que a vossa fundadora foi uma mulher que abriu novos caminhos, que ultrapassou muitas fronteiras eclesiais e sociais. Ah, e por favor digam às vossas superioras em Roma que o bispo está muito grato pela vossa preciosa presença na diocese e, especialmente, pela irmã N.» Que equilíbrio difícil!

Mais tarde, falando com uma das Marias, conhecendo a espada de Dâmocles que paira sobre o seu destino, pedi-lhe que não rompesse com a sua congregação, que construísse pontes, que tentasse exercer a asa das Marias que a sua congregação lhe reclama. Eu não gostaria de a perder.

Ação e contemplação, Marta e Maria. Uma sem a outra não gera a vida de Deus.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/1294/martas-e-marias/

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Natal: Deus se faz próximo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Antônio Ferreira, CMF

 

‘Enquanto os evangelhos de Lucas e Mateus detalham o nascimento de Jesus, o Evangelho de João nos apresenta uma perspectiva diferente. Ele se inicia antes da criação, revelando Jesus como a Palavra de Deus, que era Deus e estava com Deus desde o princípio. Ao longo dos séculos, Deus revelou-se na criação, nas suas alianças com o povo de Israel, em Moisés, e revelou-se nos profetas. Aqueles que acreditaram nessa revelação tornaram-se filhos e filhas de Deus. Segundo João, a revelação mais plena ocorre com a encarnação do Verbo, demonstrando o amor infinito de Deus e superando a lei mosaica.

Ao ecoar as primeiras palavras de Gênesis, ‘‘No princípio’ (1,1), João estabelece um paralelo entre os dois relatos, a criação original e a nova criação em Cristo. A encarnação do Verbo representa um novo ato criativo, em que Deus, em sua infinita misericórdia, decide habitar entre os seres humanos, inaugurando um novo momento na história da humanidade. A encarnação do Verbo é, portanto, o ponto culminante de toda a história da salvação.

Como em Gênesis, também aqui a luz é um elemento primordial ligado à vida e à superação das trevas. A luz, identificada com Cristo, representa a força salvadora de Deus, enquanto as trevas simbolizam o pecado e a morte. A oposição entre luz e trevas, presente em ambos os textos, adquire em João uma dimensão mais espiritual e teológica, simbolizando a força do bem sobre mal. Enquanto em Gênesis a escuridão é um estado da criação, em João ela representa as forças que se opõem à revelação divina. Em João, esses elementos são representantes de Cristo ou de seus oponentes. Assim como em Gênesis, a luz em João é sinônimo de vida e vitória sobre as trevas. 

O evangelista João nos apresenta um paradoxo : Jesus, a luz do mundo, esteve entre nós e, no entanto, não foi reconhecido. Essa falta de reconhecimento não se limita à ignorância, mas à rejeição consciente de sua mensagem. Ao dizer que ‘o mundo não o conheceu’, João afirma que a humanidade se colocou em oposição a Deus. A cruz de Cristo revela a responsabilidade de cada um diante desse amor rejeitado e, ao mesmo tempo, a universalidade do amor divino. Conhecer Jesus implica mais do que ter informações sobre Ele, significa acolher seu ensinamento e seguir seus passos. A cruz revela também que mesmo aqueles que rejeitaram a luz podem encontrar perdão e restauração em Deus.

O Natal celebra o mistério da encarnação : Deus se fez homem, partilhando nossa condição humana em todas as suas dimensões, exceto o pecado. A afirmação de que Deus se tornou humano representa uma revolução teológica radical, tanto para os judeus quanto para os romanos e gregos. A figura de Jesus, um líder humilde e itinerante, contrasta com as expectativas do Messias poderoso, guerreiro, comum na cultura judaica. Para os gregos, a ideia de um deus se tornar homem era incompreensível, desafiando suas concepções mitológicas. O Natal celebra essa verdade paradoxal : Deus, em sua infinita misericórdia, fez-se homem para compartilhar nossa condição humana e nos oferecer a salvação. É a celebração desse amor divino que se fez próximo.

No Natal, a luz divina irrompe nas trevas do mundo, revelando-nos o rosto de Deus criança. Nascido numa manjedoura, Ele nos convida a um novo nascimento, à renovação da esperança. Aquele que criou os Céus e a Terra se faz pequeno para que possamos acolhê-lo em nossos corações. Sua presença transforma nossas vidas, convidando-nos a construir um mundo mais justo e fraterno seguindo seu exemplo de amor e compaixão. Da manjedoura, Deus olha-nos com o rosto de uma criança, cheio de esperança e vitalidade, dizendo a nós ‘Quero crescer na tua família, na tua comunidade, na tua vida’. Deus se faz próximo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/natal-deus-se-faz-proximo.html


 

domingo, 22 de dezembro de 2024

Sinfonia transformativa

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Miguel Oliveira Panão,

professor

 

‘Esta manhã ponderava se Deus seria um Maestro de uma grande orquestra chamada Universo onde todos podem improvisar e gerar uma Sinfonia em vez de cacofonia. Seria a Sinfonia que emerge da liberdade de todos poderem improvisar e fruto da complexidade relacional existente e da qual fazemos parte. Na prática, devido à rede de relações que permeia o mundo, todos caminhamos juntos e tocamos notas feitas de escolhas. Na Natureza, as escolhas são biológicas, mas no ser humano deveriam ser conscientes. Em Deus, as escolhas são um Mistério como realidades escondidas que nos atraem a uma vida cada vez mais profunda. Que sinfonia quer Deus orquestrar de cada vez que celebramos o nascimento de Jesus?

As ruas enchem-se de luzes desde Novembro. O primeiro pensamento foi de alguma perplexidade porque a celebração do Natal ainda distava de mais de um mês. Seria o anseio pela festa do Emanuel, Jesus, Deus-conosco? Ou seria a habitual febre do consumo subjacente à versão mais laica desta época? Gostaria que a resposta fosse sim à primeira pergunta e não à segunda, mas no fundo sabemos ser o contrário. Por isso, o desafio diante de nós em cada ano que passa é o equilíbrio saudável entre os anseios do mundo e as razões profundas que afetam a nossa existência.

Deus, que se faz um de nós e morre, afeta a minha existência porque descobrir as razões de tal escolha parecem ser um manancial natalício de reflexão infindável. Se Jesus não tivesse nascido, o mundo não seria o mesmo. O coração humano sem o Coração de Jesus talvez fosse mais selvagem. E a mudança que a sua breve existência humana realizou na evolução da nossa espécie parece-me ser a revolução do amor que quebra todas as barreiras, mais cedo ou mais tarde. Dada a aceleração que tenho assistido neste ano de 2024 que está prestes a terminar, refletir sobre a síntese do nosso coração ao Coração de Jesus é um bálsamo de lentidão que nos ajuda a parar para estarmos mais conscientes do rumo que estamos a seguir na história humana.

O Papa Francisco tem uma expressão na carta encíclica Amou-nos (Dilexit Nos) que considero muito forte: «Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede do amor com todas as suas componentes espirituais, psíquicas e também físicas» (DN, 21).

A complexidade que existe no mundo natural nasce do facto de tudo estar relacionado com tudo, um aspecto central já presente na carta encíclica Laudato Si’, mas qual o fruto desses relacionamentos além da complexidade dos sistemas? Penso que seja a unidade em torno de um Coração que significa todo o pulsar proveniente da relacionalidade existente neste universo.

Os ritmos a que batem os nossos corações são diferentes. Por vezes, as ondas anulam-se quando os pulsares são opostos. Por vezes ampliam-se de tal forma que entram em ressonância e podem levar à ruptura.

Quando penso no nascimento de Jesus, Deus-Trindade oferece um só Coração ao mundo que inclui todos os pulsares, por mais diferentes que sejam. Coração que se revela sinfonia transformativa de unidade na diversidade.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1290/sinfonia-transformativa/

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Por que falar sobre o social na Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Frei Ricardo da Cruz, OFMConv


‘Ao contrário do que muitos pensam, a Igreja tem um papel importante na sociedade. Você já deve ter escutado alguém dizer que a Igreja só deve tratar de coisas espirituais e deixar que a política cuide daquilo que é social, ou até mesmo ouviu dizer – esta afirmação é até mais comum – que a Igreja não deve se envolver com a política. É preciso esclarecer que a Igreja é, sim, uma instituição divina que trata das coisas espirituais, mas ela está inserida dentro da sociedade, por isso, não deve ser alheia àquilo que se passa no âmbito social e político. 

A Igreja Católica, por meio do Evangelho de Jesus Cristo, oferece ao homem a possibilidade de transcender sua realidade, trazendo sentido às realidades em que está inserido. Jesus, filho de Deus encarnado, experimentou em tudo a condição humana, com exceção do pecado (cf. Hb 4,15); dessa forma, Ele se encarna em um contexto histórico, dentro de uma sociedade com suas leis, sua moral, ética e religião. 

Quando a Igreja fala sobre o social, ela quer salvaguardar, sobretudo, a dignidade humana. A sociedade é feita por pessoas e onde há pessoas há também o interesse da Igreja, que preza pela dignidade humana, promovendo a vida e condições dignas de viver. A escolha preferencial aos pobres não é mero ‘socialismo’, pois quando a Igreja escolhe os pobres é porque o próprio Filho de Deus se fez pobre, nasceu sem um lugar para ficar em terras estrangeiras. 

Assim sendo, a Igreja possui uma doutrina social que também tem valor de instrumento de evangelização porque põe a pessoa humana e a sociedade em relação com a luz do Evangelho. Os princípios dessa doutrina se apoiam sobre a lei natural, que é confirmada e valorizada na fé da Igreja pelo Evangelho de Cristo; destarte, o homem é chamado a descobrir-se como transcendente em todas as dimensões da vida, inclusive no que diz respeito ao contexto social, econômico e político. 

Um aspecto importante da doutrina social da Igreja é a família : fundada no Matrimônio, entre um homem e uma mulher que constituem a primeira e vital célula da sociedade. Além do mais, essa doutrina ressalta a importância dos valores morais fundamentadas na lei natural inscrita na consciência de todo ser humano.

Sendo assim, falar sobre o social na Igreja é promover o ser humano à sua mais alta dignidade por meio do anúncio de Jesus Cristo, Boa-Nova de salvação, promovendo o amor, a justiça e a paz. Jesus veio para que todos tenham vida em abundância (cf. Jo 10,10) desde sua concepção até a morte natural. 

Que o Senhor vos dê a paz!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/por-que-falar-sobre-o-social-na-igreja.html


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Como anda sua relação com Deus?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Rosa Maria Dilelli Cruvinel

 

‘Essa pergunta precisa estar sempre perto de nós, afinal de contas, precisamos sempre avaliar nossas prioridades e como gastamos nosso tempo. Sobretudo no tempo do Advento somos chamados a avaliar mais intensamente como anda nossa relação com Deus.

Muitas vezes passamos por tempos fortes, marcados por enfermidades, acidentes, perdas de familiares ou de amigos próximos, dificuldades financeiras e outras situações que nos fazem parar e automaticamente nos levam a refletir sobre nossa relação com Deus. Esses momentos de dor são oportunidades que a providência divina permite para voltarmos a Deus e conhecê-lo mais. 

Por que voltar? Jesus apresenta na maravilhosa parábola do filho pródigo (cf. Lc 15,11-32) a verdadeira motivação que deve reger nosso retorno para Deus : a bondade do Pai. Ao narrar a história do filho mais novo que abandona a casa paterna e sofre a dor do fracasso de uma busca de felicidade frustrada, Jesus aponta um caminho aberto para a volta para o Pai do Céu : foi na reflexão interior que o filho obteve o reconhecimento da ‘bondade do pai’. Com efeito é na reflexão, na atitude de ‘entrar em si’ que o filho faz memória da generosidade do pai e, ao mesmo tempo, lembra quem ele é : filho. O fruto dessa experiência de fé no amor do pai o faz renovar sua identidade, sua filiação; assim, movido pelo arrependimento e com confiança filial retorna a casa paterna, diz a Escritura : ‘Entrou então em si e refletiu : ‘Quantos empregados há na casa de meu pai que têm pão em abundância… e eu, aqui, estou a morrer de fome. Vou me levantar e irei a meu pai, e lhe direi : Meu pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados’. Levantou-se, pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda longe, quando seu pai o viu e, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, o abraçou e o beijou (Lc 15,17-19)’.

Santo Inácio de Loyola, mestre em espiritualidade, é um grande exemplo do fruto que se alcança ao fazermos uma reflexão, especialmente no momento de dor, de como anda nossa relação com Deus. Inácio era militar antes de se converter ao Senhor; certa vez, estando em batalha na cidade de Pamplona, Espanha, foi atingido por um canhão que quase destruiu sua perna. No tempo de sua recuperação, interessou-se pela leitura da vida de santos e, pouco a pouco, foi contagiado pelos nobres testemunhos de santidade, a ponto de abrir-se à vontade de Deus a respeito de sua própria vida e a mudar o rumo que iria tomar a partir daquele momento. A partir dessa experiência, abandonou-se confiantemente nas mãos de Deus e ao processo de cumprir o fantástico sonho do Senhor para sua vida.

A graça e o perdão de Deus nunca se esgotam, mas, cabe a nós aproveitarmos as oportunidades e nos avaliarmos : buscamos o Senhor somente quando nossa situação ‘aperta’? Vamos à Igreja somente quando precisamos de algo? Buscamos a Deus por amor? Com o mesmo amor com que Ele nos ama? Podemos dizer como o salmista : ‘Com o que poderei retribuir todo o bem que o Senhor me fez?’ (Sl 116,12). Deus nos amou por primeiro (cf. 1Jo 4,19), o Pai nos deu seu próprio filho, Jesus, para nossa salvação. Jesus é o maior sinal do amor que o Pai deu à humanidade. Jesus, por sua vez, prova seu amor para conosco pelo fato de ter morrido por nós, sendo nós ainda pecadores (cf. Rm 5,6-12). 

Aproveitemos, portanto, o tempo oportuno para retornar a Deus! Façamos memória da bondade do Altíssimo, isso nos eleva em dignidade, faz-nos experimentar o mesmo que o filho pródigo no retorno à casa paterna : tenho um pai generoso, sou filho muito amado!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/como-anda-sua-relacao-com-deus.html

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Musicalidade e Esperança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Ricardo Abrahão 


‘A arte da escuta atravessa a história humana e desloca o homem a elaborar seus instintos auditivos de sobrevivência, transformando a mesma escuta na mais sublime capacidade interior, o sentimento. Foi numa noite silenciosa, calma, que pessoas simples ouviram um coro angélico cantar ‘Gloria in excelsis Deo et in Terra pax hominibus bonae voluntatis’. A música celestial só pode ser ouvida por aqueles que, de um modo ou de outro, aproximam-se da humildade. Não foi difícil aos pastores o encontro com o Menino Jesus, bastou a eles seguir a melodia dos anjos para reconhecerem a grande esperança acolhida pela manjedoura na gruta de Belém.

Noite silenciosa! Noite santa! O encontro sublime entre a maior humildade e o maior louvor! A criação parou para escutar a esperança. Quem se propõe a músico litúrgico se coloca à disposição de trabalhar com os sons em função da esperança. Um músico narcisista não oferece nada além do que sua incapacidade de sentir esperança. Não é uma simples questão de entendimento. O ponto central da melodia cristã é o sentimento, uma experiência delicada com o Espírito Santo. Temos testemunhado muitos ‘entendidos’ no Evangelho que mais criam conflitos do que esperanças.

A musicalidade da esperança é infalível e inconfundível porque conforta o coração, acalenta sonhos, toca a oração profunda e transforma tudo em caridade. A esperança é uma melodia interior que transcende tempo e espaço e, como a Estrela Guia, leva-nos à manjedoura da humildade onde o Amor incarnatus est nos aguarda para abraçar-nos para sempre. 

Que o Natal de Jesus seja a melodia que nunca cessa de cantar o amor em nossos corações! Feliz Natal!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/musicalidade-e-esperanca.html

sábado, 14 de dezembro de 2024

A Ética do Cuidado

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Robson Ribeiro de Oliveira Castro Chaves

 

O cuidado com a vida surge da consciência de sua fragilidade, constituindo-se em um imperativo ético essencial para a preservação e promoção da existência humana. Sem o cuidado, a vida não se desdobra plenamente em seu potencial, tampouco alcança sua missão. O cuidado, portanto, não pode ser visto apenas como uma prática isolada, mas como parte de uma ética integral que se preocupa com a preservação da dignidade e da humanidade em sua totalidade.

Nesta realidade encontra-se a necessidade de se debater racionalmente sobre as formas mais eficazes de proteger e amparar a vida. A ética, como campo da filosofia, oferece as bases para essa discussão, que se desenvolve por meio de princípios racionais, mas que também perpassa a dimensão afetiva e espiritual. Assim, o cuidado pode ser compreendido não apenas como um ato, mas como uma virtude que deve orientar as ações humanas em direção ao bem comum.

A ética cristã, especialmente, desempenha um papel crucial na formação dos sistemas de vida no Ocidente, alicerçando-se em fontes como a Bíblia, a Tradição, e o magistério da Igreja. Ela é parte de uma construção histórica e comunitária, que tem como centro a pessoa de Jesus Cristo e seu evangelho. Este evangelho, ao mesmo tempo que oferece uma visão escatológica da vida, também oferece diretrizes práticas de conduta que se desdobram em formas concretas de comportamento moral e espiritual.

Nesse sentido, a ética cristã coloca a vida no centro de sua preocupação, inspirada no mandamento do amor, que exige que se cuide do próximo como de si mesmo (Mt 22,39). O amor ao próximo, expressão máxima do cuidado, não é apenas um sentimento, mas uma ação concreta que visa a salvaguarda da vida em todas as suas expressões. A partir dessa inspiração, a ética cristã propõe uma conduta de solidariedade, de justiça e de cuidado integral, em que a vida é defendida em todas as suas fases, desde a concepção até a morte natural.

A construção de uma conduta autêntica, que leve à humanização do ser, requer um compromisso ético com o cuidado, mas também com a transformação das estruturas sociais que geram injustiça, desigualdade e exclusão. A ética cristã não é uma ética de mera conformidade com regras morais abstratas, mas um compromisso dinâmico com a promoção da dignidade humana, refletida na ação em prol dos mais vulneráveis e marginalizados.

Diante dos desafios, somos chamados a participar do processo de reinvenção do cotidiano. Para tanto, é necessário ter cuidado com a vida, respeitar o próximo e, principalmente, as gerações.

Para tanto, só será possível uma real mudança se mudarmos a nossa conduta ética e moral, pois uma conduta moral duvidosa, sem apreço à vida, nos leva a deixar de vivenciar os melhores momentos e, acima de tudo, desrespeitar aqueles que sofrem com algum problema e não darmos a devida importância ao sofrimento das pessoas.  Por isso, ter esperança, ou esperançar, é ter iniciativa, é ir ao encontro, é buscar ouvir os que mais precisam.

É preciso, urgentemente, se fazer ouvir e articular o maior crescimento da consciência humana sobre o que é ser humano. A forma como se trata o tema ainda é um tabu. Durante séculos de nossa história, por razões religiosas, morais e culturais, falar do tema do suicídio era algo proibido e, principalmente, um pecado, por esta razão, ainda temos medo e/ou certa vergonha de comentar sobre o assunto.

De fato, ao falar desta realidade, estamos inseridos na sociedade que vive o problema de forma global e não se deixa abrir ao debate consciente. O tabu sobre a questão do suicídio perdeu a força diante dos inúmeros casos de problemas oriundos da pandemia. Hoje, frente à realidade, é urgente refletir sobre o bem-estar do próximo e não apenas o nosso. É a partir desta concepção que devemos observar a realidade sem receios e entender como tratar o outro, principalmente na escuta enquanto membro da sociedade e no período pandêmico que vivemos e estamos, ainda vivendo.

É preciso cultivar o caminho ético, sem preconceitos e comentários maldosos. Que a nossa conduta moral seja pautada por regras que devem ser respeitadas por cada um. Para tanto, é preciso se comprometer com a cultura do encontro e do diálogo para que possamos nos comprometer com a vida de cada um e ser mais solidários com a dor e a realidade do outro.

Assim, dotados dessa responsabilidade é urgente pensar que os projetos de formação da educação para o humanismo solidário têm por foco principal a ação consciente de cada um na construção de uma Educação para o humanismo solidário e que haja uma verdadeira inclusão de todos nesta realidade. O tema do mês de setembro é uma forma de falar com respeito diante da realidade do suicídio.

Nesse contexto, precisamos observar o caminho que seguimos e os exemplos que podemos dar em nossa realidade. Entre eles temos que alimentar o desejo de uma sociedade mais humana e exercitar o amor ao próximo por meio de gestos de solidariedade.

Devemos seguir o exemplo de Jesus : sua ética, seu comportamento, seu caráter, seu modo de ser e de agir. Ele assumiu uma conduta autêntica em uma sociedade contrária a tudo que ele pregava. Ele veio transformar o mundo, a começar pela sociedade de sua época. Assim, tratar o próximo com respeito é fazer valer o amor criador de Deus e sua proposta para o ser humano : ’O que fizer ao menor dos meus irmãos, a mim o fazeis’. (Mt 25,40). Por isso, cuidar do outro, escutá-lo e fazer um processo de encontro é a base das nossas relações.

Por fim, o caminho para uma conduta mais autêntica passa pela integração entre o cuidado e a ética. A consciência da fragilidade da vida leva à necessidade de uma responsabilidade maior com o outro e com o meio em que vivemos. Assim, propõe-se uma ética do cuidado que não apenas responde às urgências imediatas, mas que se alicerça em valores perenes de respeito, empatia e justiça, construindo, assim, uma sociedade mais humana e compassiva.

Essa ética do cuidado, inspirada no cristianismo, se expande para abarcar todas as dimensões da existência humana, desde as relações interpessoais até as preocupações globais com a ecologia e a justiça social. É um chamado à conversão ética, na qual o ser humano é convidado a assumir um papel ativo na construção de um mundo mais justo e solidário, onde o cuidado pela vida, em todas as suas formas, seja o princípio norteador das ações individuais e coletivas.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2024-12/etica-cuidado.html

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Índia: religiosas cuidam de vítimas de violência e abuso no sul do país

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Anne Preckel


‘As sobreviventes de abusos «dizem com frequência para mim : não sei porque as pessoas me rejeitam e porque agora olham para mim de maneira diferente. Não sou aceita. Não fiz nada!», comenta a religiosa indiana Johncy Nambikairaj durante entrevista ao Vatican News. Muitas vezes, quando as pessoas descobrem os abusos, estigmatizam as vítimas e as suas famílias.

A Ir. Johncy é assistente social e trabalha com meninos e meninas provenientes de contextos pobres da comunidade de Gudalur, numa região montanhosa do Estado de Tamil Nadu, na Índia. «Algumas dessas crianças sofreram várias formas de abuso físico, mental, sexual. Dispomos de um lar para cuidarmos delas, prestando-lhes os primeiros socorros. Quando nos procuram, oferecemos-lhes aconselhamento em várias fases», explicou a religiosa das ‘Irmãs da Caridade de Maria Menina’ (ICMM), ordem fundada em Lovere (Itália), em 1832.

A pobreza e o abandono constituem o terreno fértil para os abusos, referiu a Ir. Johncy a propósito das circunstâncias sociais. «Estas meninas não gozam da necessária privacidade em casa, e além disso há a pobreza. Os pais deixam-nas sozinhas porque devem trabalhar. As menores são vítimas de abusos, por exemplo, por parte de vizinhos ou de pessoas que conhecem a família». Tamil Nadu é um dos Estados mais industrializados da Índia e relativamente próspero. No entanto, existem desigualdades sociais e problemas como o trabalho infantil, a subalimentação, o desemprego e os abusos.

«As crianças vítimas de abusos sentem-se intimamente destruídas», diz a assistente social. «Por fora, parece que está tudo bem. Mas quando nos aproximamos delas, damo-nos conta de que se sentem profundamente feridas». Atualmente, a Ir. Johncy cuida de 50 meninas, muitas das quais são órfãs ou semi-órfãs. A congregação não pode oferecer ajuda terapêutica, mas consegue proporcionar abrigo e educação. Outras, infelizmente, são mandadas para casa, onde muitas vezes não vivem em segurança. Para chegar às vítimas, a congregação colabora também com a ‘ChildLine 1098’, onde as vítimas e os cidadãos de ‘bom coração’ podem denunciar os casos de abuso.

A Ir. Johncy explicou que o abuso ainda é um tabu social na Índia, representando um dos maiores desafios no seu trabalho em benefício das vítimas. Se falar de sexualidade é uma vergonha, para muitos é ainda mais difícil falar de violência sexual que, portanto, não é denunciada : «na nossa cultura, não se fala desses assuntos», resumiu. Isto torna mais difícil a prevenção, levando as vítimas e as suas famílias a sofrer ainda mais, sobretudo quando a injustiça não é mencionada nem punida, mas tende a ser ocultada.

A violência contra as jovens e as mulheres constitui um problema enorme na Índia, como demonstram as estatísticas. A maior parte dos casos ocorre em casa, onde o número de crimes não denunciados é ainda mais elevado. Para debelar esta situação, no verão de 2024 entrou em vigor um novo código penal que prevê, entre outras coisas, um tratamento mais rápido dos casos por parte da polícia e dos tribunais.

A Igreja católica na Índia envia cada vez mais esforços a fim de sensibilizar para este tema e combater os abusos. No outono de 2023, a Ir. Johncy foi enviada a Roma para receber formação sobre o tema da tutela, no Instituto IADC da Pontifícia Universidade Gregoriana. Agora, inseriu o que aprendeu na sua atividade na Índia.

A missão junto aos refugiados

A religiosa trabalha também para sensibilizar as escolas e os refugiados, que estão expostos a riscos elevados. Disse-nos que já foram alcançados alguns progressos : «desde que demos início à obra de sensibilização, mais pais decidiram falar sobre o problema, não em toda a parte, mas em certos casos, lentamente, começam a enfrentar mais esta questão. Ensinamos as crianças a falar e os pais a ouvir. Ainda há muito a fazer, mas nota-se um lento progresso».

Embora a Igreja católica na Índia seja uma minoria (menos de 2% da população), a sua influência nos setores social, educativo e da saúde é importante. Através da sua rede, a Igreja tem um enorme potencial na área da tutela, não só no país mais populoso do mundo, a Índia, mas no mundo inteiro.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-12/projeto-sisters-irma-johncy-nambikairaj-cuidado-prevencao-mulher.html