domingo, 6 de julho de 2025

Seguir Jesus: uma resposta que nos recria

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Diego Lelis, CMF

 

‘Há uma pergunta que atravessa os séculos com a força de um vento que não cessa. Não é uma pergunta de prova, nem uma curiosidade de mestre : é um chamado que toca a alma. ‘E vós, quem dizeis que eu sou?’ (cf. Lc 9, 20).

Não se responde a essa pergunta com frases decoradas de catecismo. Ela exige mais : exige adesão, exige verdade de cada um de nós. Exige vida. Porque, na realidade, é como se Jesus dissesse : ‘Quero saber quem sou para você, no mais profundo da sua história, no lugar onde nascem as suas decisões, onde vivem suas alegrias e doem as suas cruzes.’

É revelador notar que essa pergunta nasce enquanto Jesus rezava num lugar retirado (cf. Lc 9,18). Como se o silêncio fosse a única linguagem capaz de traduzir o que é essencial. Há perguntas e respostas que só se escutam quando o coração aquieta. Há verdades que só se compreendem longe do barulho. E talvez o seguimento de Jesus comece por aí : pela escuta do coração, pela oração que desinstala, pela resposta que nasce no íntimo.

A resposta de Pedro — ‘Tu és o Cristo de Deus’ — está certa, mas ainda é insuficiente. Porque logo em seguida Jesus revela o outro lado do Cristo : o lado da rejeição, da dor, da cruz. Como se dissesse : ‘Sim, sou o Messias, mas um Messias ferido. Sou o Cristo, mas um Cristo que sangra.’

E então, vem o convite que transforma tudo em caminho : ‘Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me.’ (Lc 9,23)

Seguir Jesus não é andar atrás de um ideal bonito. É caminhar com Ele, com as marcas e exigências do amor que se faz carne, que se deixa ferir, que se doa até o fim. É mais do que um gesto religioso — é uma escolha existencial que nos pede tudo. E que precisa ser feita de novo, a cada manhã.

É por isso que o seguimento de Cristo não se esgota num momento de entusiasmo ou numa emoção de retiro. É um ato contínuo de entrega. É aceitar que amar como Ele amou custará a vida inteira. Porque o amor, quando é verdadeiro, não se preserva — se oferece. O amor em Jesus é doação, e a consequência do amor é sempre a cruz — não como fim, mas como travessia.

Quem quiser salvar sua vida vai perdê-la — diz o Evangelho — mas quem a perder por causa d’Ele, a encontrará. Isso é uma revolução do espírito. Uma virada radical que nos ensina que a vida não se conquista acumulando, mas entregando. Não se vence se protegendo, mas se expondo por amor.

Seguir Jesus é viver para além de si mesmo. É deixar de se pertencer para pertencer ao Reino. É trocar os atalhos fáceis pela vereda estreita do Evangelho. É responder todos os dias à mesma pergunta : ‘E hoje, quem é Jesus para mim?’ E permitir que a resposta não esteja apenas nos lábios, mas no modo como nos gastamos, no modo como amamos, no modo como vivemos.

Se hoje Ele te perguntar de novo — e Ele perguntará — não endureça o coração. Responder com a vida pode ser difícil, mas é o único caminho que nos devolve a nós mesmos e nos leva ao coração de Deus. 

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/seguir-jesus-uma-resposta-que-nos-recria.html

sábado, 5 de julho de 2025

O mundo anda depressa

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Alfredo J. Gonçalves, CS 


‘O mundo anda depressa e nós não podemos parar’, alertava São João Batista Scalabrini na segunda metade do século XIX e início do século XX. Com efeito, eram tempos de intensa atividade e turbulência devido aos efeitos, positivos e negativos, da Revolução Industrial. Há séculos, a filosofia, associada aos inventos científicos e tecnológicos, vinha sacudindo o torpor da era medieval. A razão e a técnica ganhavam a centralidade característica dos tempos modernos ou pós-modernos. Os passos da travessia humana sobre a face da terra experimentaram um salto sem precedentes, seja do ponto de vista da produção, produtividade e consumo, como do ponto de vista da velocidade das mudanças em curso.

Não sem razão, a existência de Scalabrini, quase toda ela, coincide com o ‘século do movimento’ (Peter Gay). Movimento de máquinas a vapor, como o trem, o carro, o navio… Mas também movimento de pessoas, tanto do campo para a cidade, quanto cruzando o oceano em direção às terras novas das Américas. A nova produção econômica, de caráter liberal e capitalista, necessitava transformar os camponeses em operários para o trabalho das fábricas incipientes. Mas precisava igualmente transformar parte deles em migrantes que pudessem engrossar o chamado ‘exército de reserva’, fator decisivo para o lucro como motor da acumulação de capital.

Mal podia imaginar, então, Scalabrini que a velocidade das mudanças chegasse ao grau tão vertiginoso que hoje nos atropela e, literalmente, nos deixa para trás. Os últimos 50 anos em particular, ou seja, desde as décadas de 1970-80, a revolução da informática, com sua tecnologia de ponta, vem apresentando uma avalanche de inovações que nos deixa aturdidos. E aqui não há como ignorar os paradoxos. Por um lado, a terra e o setor agrícola nunca produziu tantas toneladas de alimento como atualmente, de outro lado, o desperdício de alimentos e a fome jamais atingiram tantas pessoas. Hoje, ao redor de um bilhão de seres humanos em todo planeta sofrem de insegurança alimentar.

Depois, nunca houve tantos meios e tanta facilidade de comunicação nas relações humanas, seja em termos de comunicação familiar e interpessoal, seja quanto à comunicação social, política ou cultural. Ao mesmo tempo, porém, a sensação de solidão e de abandono nunca pareceu tão profunda e tão angustiante. As cidades e metrópoles se converteram em amontoados de indivíduos isolados, fechados em si mesmos. Cresce o fenômeno da ‘multidão solitária’, para usar a expressão de David Riesman, na pesquisa e obra homônima. Em especial nas megalópoles, multidão passa a rimar com solidão. As pessoas estão conectadas à distância, pela Internet, mas evitam o encontro cara-a-cara, olho-no-olho. Emoções e sentimentos acabam sendo dominados, e explorados financeiramente, pelas gigantescas redes de telecomunicação.

Vale o mesmo para o caso dos transportes, individuais e coletivos, terrestres e aéreos. Crescem as técnicas que os tornam, simultaneamente, mais modernos, mais velozes e mais confortáveis. As distâncias diminuem de forma nunca vista. Finalmente, ‘o mundo se converteu numa aldeia global’. Mas o acesso a tais meios de última geração, rápidos e confortáveis, torna-se um luxo de poucos. A grande maioria da população depende do transporte público, onde é maior a aglomeração e menores os investimentos. Daí a sensação de deslocar-se como ‘sardinhas em lata’. Mesmo para o transporte privado, quanto mais aumenta a sofisticação, a rapidez e o conforto do veículo, maior a probabilidade de ficar horas parado no trânsito infernal das grandes cidades. De forma paradoxal, técnicas de ponta paralisam os carros de luxo. Contra o que dizia Scalabrni, fica-se imobilizado num mundo que anda depressa.

Não seria difícil multiplicar os exemplos contraditórios dos avanços tecnológicos. Em lugar de favorecer maior tempo de lazer e de criatividade, a Internet, o telefone celular e agora a Inteligência Artificial (IA) parecem devorar todo nosso tempo. Entramos no vórtice avassalador de uma pressa doentia, patológica, onde não há tempo para afetos, laços e amizades presenciais ou duradouras. Mais do que nunca, somos atropelados pela noção de que ‘time is money’. Tornamo-nos marionetes da IA e dos poucos milionários ou bilionários que faturam alto com toda essa correria. Quem sabe atualmente, se estivesse vivo, Scalabrini diria que ‘o mundo anda demasiadamente depressa, por isso devemos parar para reencontrar a nós mesmos, ao outro e ao totalmente Outro! 

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://migramundo.com/o-mundo-anda-depressa/

quarta-feira, 2 de julho de 2025

A terra fecunda da formação monástica

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Mauro-Giuseppe Lepori, O. Cist.,

Abade Geral

 

‘Visitei recentemente uma comunidade de monges, e durante a minha estadia pude participar de uma conversa comunitária. O assunto era a expressão muito original de um artista cristão. Conversava-se sobretudo sobre as imagens de suas obras, mas sobretudo alguns dias antes tínhamos visto um vídeo sobre ele, sobre sua caminhada humana e artística. O diálogo entre os irmãos foi muito profundo, pois cada um tinha-se deixado tocar, muito pessoalmente, pelo testemunho desse artista. No fim o abade disse que naquele ano, por causa da situação criada pela pandemia, eles tinham tido poucos momentos de formação estruturada, com convites de professores para cursos e sessões. Ele se preocupava com a formação permanente, justamente porque ao longo de anos isso tinha desenvolvido uma bela cultura de partilha, de diálogo, de escuta e de palavra.

Tomei ainda mais consciência que a formação monástica é viva e eficaz, quando encontra numa comunidade um campo trabalhado, um campo que se deixa trabalhar para acolher a semente, deixá-la germinar, crescer e dar fruto. Ou então, para usar uma outra imagem talvez mais expressiva no âmbito da formação, se a comunidade se dispõe a ser argila bem misturada, trabalhada com a água, com justa consistência, para permitir que o oleiro lhe dê a forma bela e útil, que lhe quer dar.

Em resumo, quando uma comunidade trabalha na sua própria conversão, quando se forma como comunidade filial e fraterna, quando é, como diz São Bento, um espaço de estabilidade obediente – quer dizer de silêncio, de escuta, na conversatio morum, num caminho de conversão de comunhão, que a torna viva, então tudo contribui para a sua formação, tudo se torna para ela e para cada membro que a compõe, ocasião para crescer, para aprofundar e se dilatar na forma perfeita de Cristo, o Filho bem-amado, que o Pai quer imprimir em nós, pelo dom do Espírito. Só uma comunidade que aceita ser um campo de construção pode tornar-se uma casa, uma morada e sobretudo um templo da presença de Deus. Sem isso, mesmo os melhores cursos e sessões, com os melhores mestres e professores, não conseguem formar e fazer crescer uma comunidade e seus membros.

Conheço comunidades pequenas e frágeis que não podem mais conseguir formadores externos e qualidade, mas que são tão unidas na humildade e no desejo de conversão, que cada migalha de verdade, de beleza vinda não importa de onde, nem de quem, se torna semente de formação e de edificação. Tudo nos forma se tivermos um coração humildemente aberto para a conversão, que a conversatio monástica e comunitária nos oferece e nos pede. Isto faz comunidades aonde se percebe o coração meditativo da Virgem Maria, vigilante para nada perder do acontecimento do Verbo-Esposo. Se falta esta atitude, uma comunidade pode dispor da formação mais abundante e refinada, sem que isso a forme verdadeiramente. A melhor semente fica estéril, se em vez de cair num campo lavrado, cair no mármore mais precioso e polido.

Para que qualquer formação seja fecunda, não se deve esquecer o humus, a terra. Quem não trabalha a terra, não terá frutos no tempo desejado. E aqui está a grande sabedoria da formação monástica : começa por baixo, para que mesmo que vem do alto, como a Palavra de Deus e o seu Espírito, possam achar acolhimento, abertura, quer dizer uma liberdade que pede e deseja, e que abre a porta quando o Verbo bate.

São Bento entendeu, na escola do Evangelho e dos Padres, que nada trabalha a terra melhor que a vida comunitária. Viver em comunidade torna a conversão verdadeiramente formadora. Sem um meio comunitário, que guia, cede-se à tentação, velha como o pecado original, de querer modelar-se com as próprias mãos. Mas as nossas mãos só fazem maquiagem, fazendo-nos olhar narcisisticamente ao espelho de nossas ambições e vaidades. Quando, pelo contrário, a nossa liberdade consente que a vida comunitária e a obediência nos trabalhem, para nos formar segundo o desígnio de Deus, então, lentamente, descobrimo-nos modelados, a partir do mais profundo de nós mesmos, para que o dom verdadeiro da nossa vida dê fruto.

Neste sentido, o tempo de pandemia foi uma grande provação para as comunidades monásticas. Por um lado, descobrimos, como toda a gente, os meios de formação partilhada à distância, que oferecem às comunidades mais frágeis novas oportunidades de formação. Mas esta oportunidade revela também um grande limite : favorece a comunicação formadora, mas não a comunhão formadora. A formação  on-line é excelente para nos informar, mas não consegue nos modelar. É como se aprendêssemos a teoria da olaria, mas sem sujar as mãos na argila. Mais ainda : é como se um oleiro mostrasse à argila os gestos que a modelam, mas sem a tocar. É preciso, então, que a argila encontre mãos que se encarreguem de a trabalhar. E aqui voltamos à necessidade de uma verdadeira conversatio comunitária, que aliás, se tornou particularmente sensível, quando o confinamento obrigou as comunidades monásticas a viverem numa verdadeira clausura.

Quando em 2020 fomos obrigados a fechar o Curso de Formação Monástica, que existia há 20 anos, durante um mês, na Casa generalícia cisterciense em Roma, nos perguntamos se não seria necessário substituí-lo por cursos on-line. Mas à parte a dificuldade prática de reunir virtualmente alunos espalhados desde a Ásia às Américas, foi evidente, para nós, que não podíamos reduzir este curso de formação a simples aulas. Faltaria a dimensão comunitária que permite aos professores começar logo a fazer germinar na vida real dos participantes, ensinando-lhes a dinâmica integral da formação monástica, que não é somente semente, mas também terra que acolhe, que não é só palavra, mas também coração que escuta para viver em comunhão.

Quando se medita o primeiro capítulo da Regra de São Bento, sobre os diversos gêneros de monges, percebemos que a verdadeira diferença entre os dois bons modelos de monges, os cenobitas e os anacoretas, e os dois maus modelos, os sarabaítas e os giróvagos, está na escolha, ou na rejeição de se deixar formar por alguém, que não sou eu. Os cenobitas e os anacoretas confiam o desejo de plenitude de vida e de santidade nas mãos de Deus e de uma comunidade guiada por uma Regra e um abade; os sarabaítas e os giróvagos seguem a tendência individualista, que temos desde o pecado original, de não confiar a formação às mãos de um outro. Todos são barro destinado a ter uma bela e útil forma, mas os primeiros permitem que Deus e a comunidade os modelem, enquanto que os outros se deixam levar, tomando a forma, sem forma, da inclinação em que escorregam. Os primeiros confiam o seu desejo de vida e de alegria a um caminho que o realiza; os outros confundem o desejo profundo do coração com a tendência dos instintos e deixam-se guiar pelas próprias tendências, que não levam a lado nenhum. Pois a tendência dos instintos é um desejo deteriorado, que se fecha sobre si mesmo, renunciando ao infinito para o qual deveria estar tendido.

A formação monástica, como toda a formação humana e cristã, é um assunto sério, seu objetivo não é a perfeição do saber, incluindo o saber como fazer, mas a plenitude da vida, para a qual fomos criados pelo Pai, resgatados pelo Filho e animados pelo Espírito; plenitude para a qual nos é dado o Corpo do Cristo, que é a Igreja, até à pertença imediata à comunidade, que nos foi dada, para que a forma de Jesus se torne a substância da nossa vida em todas as suas relações. 

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/120

terça-feira, 1 de julho de 2025

Treinar-se para a corrida monástica

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

 

‘Na última parte do Prólogo da Regra, São Bento apresenta o mosteiro como uma escola do serviço do Senhor. Isto significa que ele quer fazer da vida monástica um lugar de formação permanente. Ainda no Prólogo apresenta algumas características do ensino, que deve ser partilhado nesta escola; o primeiro e o mais importante é a qualidade da escuta para poder pôr em prática, eficazmente, o mandamento do amor.

Mas permitam-me evocar aqui um dos versículos do Prólogo, que me parece, dá um acento útil, hoje, na matéria da formação. São Bento não visa simplesmente a perfeição de uma observância exterior, que seria o penhor de um sucesso ilusório na esfera do tempo presente; acentua uma perspectiva que integra a dimensão da vida eterna, já ativa agora, mas em movimento para além dos limites do hoje. É por isso que ele usa o versículo tirado de São João que caracteriza o ideal beneditino :

‘Correi enquanto tendes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos envolvam’ (Jo 12, 35 citado em Prol. 13).

Em São João a luz, de que se trata, é o próprio Cristo, e as trevas o adversário. São Bento dá um sentido um pouco diferente a este versículo, até o deforma, acrescentando ‘da vida’ à ‘luz’ e ‘da morte’ às ‘trevas’. Quer insistir, assim, de modo geral sobre o drama das escolhas do ser humano, opondo o curto tempo da vida terrestre e o longo ‘tempo’ da morte eterna. Insiste, assim, sobre a corrida necessária que acentua a urgência.

1. Perspectiva escatológica e consequências

Os monges são chamados a viver de um modo muito característico, na perspetiva escatológica. São Bento mesmo admitindo que os dons eternos já são oferecidos aqui (cf RB 7; 72 e 73) olha a atividade do monge numa tensão diante do que será eternamente. Um certo número de versículos da Regra evoca concretamente esta perspectiva : assim São Bento convida os monges a ‘desejar a vida eterna com toda a cobiça espiritual’ (4,46) e a agir com ‘o bom zelo que conduz a Deus e à vida eterna’ (72,2); para isso devem ‘nada absolutamente preferir a Cristo que nos conduza juntos para a vida eterna’ (72,11). Por isso São Bento pede aos monges insistentemente : ‘cumpre correr e agir, agora, de forma que nos seja proveitoso para sempre’ (Prol. 44). No fundo, na vida monástica, formamo-nos e preparamo-nos para a vida super abundante do Reino eterno. E o abade ‘deve lembrar-se sem cessar que no terrível dia do juízo, deverá prestar contas’ (2, 6, 34, 37, 39-40).

Lembremos aqui a oração característica da vida monástica, a do Ofício das Vigílias, que é um tempo de vigília voltado para a vinda do Cristo, na esperança da luz. Tudo isto é vida cristã, mas os monges acentuam particularmente esta dimensão. É realmente o que caracteriza melhor a vida monástica em relação ao tempo e ao espaço, que é diferente do modo habitual dos seres humanos verem essa dimensão.  E é isso que, às vezes, torna difícil que os monges aceitem e compreendam. 

2. Correr

O fato de entender a vida como uma breve passagem, em vista da vida eterna, desde já e para além da morte, convida os monges a não perderem tempo, e portanto a correrem para o objetivo. São Bento diz isto várias vezes.

Há, antes, de mais um princípio geral :

‘Se fugindo das penas do inferno, queremos chegar à vida eterna, enquanto é tempo, e ainda estamos neste corpo e é possível realizar todas estas coisas no decorrer desta vida de luz, cumprer correr e agir, agora, de forma que nos seja proveitoso para sempre’ (Prol 42-44)

Esta passagem está muito próxima da citação de São João 12, 35 (cf acima). Concretamente, portanto, se queremos viver assim, temos de ter no coração o desejo de habitar na morada do Reino, sabendo que só se chega aí correndo ‘pelas boas obras’ (Prol. 22). Assim com ‘o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e corre-se pelo caminho dos mandamentos de Deus’ (Prol. 49). Há aqui como uma consequência da disposição interior, na qual o monge colocou o seu desejo : orientou o coração para a vida eterna e isso produziu uma tal dilatação, que corre-se agora no caminho dos mandamentos de Deus; assim o mandamento é o que deve de ser, não uma ordem que vem de fora, mas um objetivo, conforme a palavra grega entolé, de telos, quer dizer que leva ao fim que se quer.

Depois de ter colocado este princípio, São Bento pode pensar em situações particulares, cujo sentido só é perceptível em relação com este objetivo. O abade, por exemplo, deve apressar-se (currere) ‘empenhar-se com toda a sagaccidade e indústria para que não perca alguma das ovelhas a si confiadas’ (RB 27, 5).

O cap. 5 da Regra está todo ele nesta perspectiva de uma vida que quer responder imediatamente ao apelo recebido. O verbo currere não aparece, mas encontram-se expressões muito fortes, que colocam a pessoa na disposição de uma corrida para a vida eterna :

E os discípulos ‘por causa do santo serviço que professaram, ou por causa do medo do inferno, ou por causa da glória da vida eterna, logo que (mox) ordenada pelo superior, desconhecem o que seja demorar na execução, como sendo por Deus ordenada... são esses mesmos que, deixando imediatamente as coisas que lhes dizem respeito e abandonando a própria vontade, desocupando logo (mox) as mãos e deixando inacabado o que faziam, seguem com seus atos, tendo os passos já dispostos para a obediência. Na prontidão do temor de Deus não há intervalo entre a ordem recém-dada pelo superior e a perfeita obediência do discípulo (...) Apodera-se deles o desejo de caminhar para a vida eterna’ (RB 5, 3. 9-10)

O movimento da obediência vale também para a resposta dada ao apelo para o Ofício Divino :

‘Estejam os monges sempre prontos, e, assim, dado o sinal, levantando-se sem demora, apressem-se mutuamente para o Ofício, porém com toda a gravidade e modéstia’ (22,6).

Esta ideia vem uma segunda vez na Regra :

‘Na hora do Ofício Divino, logo que for ouvido o sinal, deixando tudo que estiver nas mãos, corra-se com toda a pressa, mas com gravidade, para que a escurrilidade não encontre incentivo. Portanto nada se anteponha ao Ofício Divino’ (RB 43, 1-3).

A primeira passagem é tirada do capítulo sobre ‘Como devem dormir os monges’ e a segunda ‘Dos que chegam tarde ao Ofício Divino ou à mesa’. Reconheçamos que temos aqui uma característica da vida monástica beneditina. Impressiona sempre nos nossos mosteiros, ver como os monges se apressam a ir para o ofício divino, qualquer que seja a razão que os faz apressarem-se; não é certo que seja sempre o não querer perder a vida eterna!

Há uma outra dimensão da pressa a privilegiar na vida do monge : a acolhida de um hóspede que bate à porta do mosteiro :

‘Logo que um hóspede for anunciado, corra-lhe (occuratur) ao encontro o superior e os irmãos, com toda a solicitude da caridade’ (RB 53, 3); ‘Logo (mox) que alguém bater, ou um pobre chamar, (...) com toda a mansidão do temor de Deus, o porteiro responda com presteza (festinanter) e com o fervor da caridade’ (RB 66, 3-4).

Aqui está outra característica da nossa vida beneditina, mesmo se hoje é difícil fazer face, com prontidão, a todos os pedidos, e que, muitas vezes exigem um mínimo de distância para a caridade ser melhor vivida.

O tema da corrida vem da Bíblia. A Palavra de Deus ‘de um extremo do céu, põe-se a correr’ (Sal. 18) ‘Desce do trono real’ (Sab 18, 15); ‘Deus a envia e corre veloz’ (Sal 147, 15). Os homens de Deus, os verdadeiros profetas, os sacerdotes santos, os reis justos correm para pôr em prática a Palavra : ‘Como são belos os pés dos que anunciam a paz’.

Multidões acorrem ao encontro de João Batista no deserto, e ao encontro de Jesus ao longo de seu ministério público. Maria parte apressadamente para casa de sua prima Isabel depois da anunciação. Com Jesus, às vezes nem se tem tempo de comer em certos momentos. Os discípulos correm para o túmulo, e voltam correndo para anunciar a ressurreição do Senhor. Depois de Pentecostes os discípulos correm em todas as direções, para proclamar o Evangelho até aos confins do mundo. São Paulo corre tendido para a meta (Fil. 3).

É urgente correr por causa da Boa Nova, seja para a escutar, seja para a proclamar, pois o tempo é curto : ‘Completou-se o tempo, o Reino de Deus está presente, não há tempo a perder, convertei-vos e acreditai na Boa Nova’.

3. Correr sem se apressar nestes tempos que são os últimos

Como conclusão eis alguns pontos sobre este tema da formação, de um treinamento monástico, caro a São Bento.

Os monges correm e apressam-se, é uma evidência em todos os mosteiros. Mas de que corrida se trata? Será que é a corrida de alguém que tomou consciência que a vida é tão breve que não há tempo a perder?

Nossa agitação é muitas vezes marcada pelas pressões da sociedade contemporânea : trabalho, administração, lazer, tudo é submetido a um ritmo, para não se ser desclassificado, marginalizado. É verdade que muitos setores devem respeitar imperativos muito obrigatórios. Mas ficamos por aí? Nossa corrida não deverá se converter em vista do último desejo, o da realização da vida em Deus na comunhão da fraternidade humana?

Os monges são essencialmente como todos os cristãos, mas talvez mais sensivelmente homens do oitavo dia. Este dia está além dos dias, além da história na história. O sentido da vida monástica está numa saída do mundo, nos dois sentidos da palavra, um ser capaz de estar no mundo, sem ser do mundo.

Esta tomada de distância é em vista de uma experiência de Deus, por meio da libertação da tirania das paixões, e por meio da oração sem os constrangimentos do mundo, em que a ideia de tempo e de espaço não estão organizados em função desta prioridade.

Se se deve correr nos caminhos do amor, das boas obras, tais como estão descritas em RB 4, no caminho dos mandamentos, com o coração dilatado, na oração, na hora do ofício, na obediência, no cuidado dos pecadores, para não perder nenhuma ovelha do rebanho, na acolhida dos hóspedes, ou daqueles que batem à porta do mosteiro.

Trata-se de cortar as coisas do mundo, sem nenhum desprezo, mas numa hierarquia de valores diferente.

Temos verdadeiramemnte os meios para uma tal aprendizagem, um tal treinamento, uma tal formação? 

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/120