sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Sutilezas de Deus e da Virgem Maria

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Brás Lorenzetti


‘A vida é um convite contínuo ao crescimento cultural, humano e espiritual. Se nos consideramos satisfeitos ou pensamos não precisar mais de nenhum tipo de aprofundamento, começamos a regredir, paramos de crescer e de viver!

A vivência cada vez mais intensa da espiritualidade faz descortinar novos mundos e descobrir possibilidades antes não imaginadas. Muitas experiências poderiam ser mencionadas aqui, no entanto, gostaria de citar uma que poderá ajudar, pelo menos, a refletir. Ao mergulhar mais profundamente na vida espiritual e de oração passamos a ter outra sensibilidade em relação à forma como Deus e a Virgem Maria se comunicam conosco.

O que vou relatar agora pode acontecer com cada um de nós, porém, cada um deve descobrir as diferentes e criativas formas de manifestação de Deus em sua própria vida. Aprendi que são muitas as formas de Deus se manifestar, porém, todas elas muito sutis, quase imperceptíveis e não por mérito, mas por pura graça : uma inspiração, uma visão, uma palavra da Escritura, uma figura, uma imagem e até um milagre. 

Sentir algo diferente, a sensibilidade e a emoção elevadas ao grau máximo, sentir uma presença que não se sabe explicar; às vezes uma intuição, outras, um interrogante. A certeza que se tem é a necessidade de estar atento, devoto, consciente e muito voltado para o interior, a fim de poder captar a voz de Deus que no silêncio se comunica. E assim acontece, seja nos grandes acontecimentos da vida, seja em várias outras ocasiões, mas sempre em clima de oração.

Por isso, a prática da espiritualidade e, em especial, da oração nos coloca em sintonia para perceber esses sinais da presença de Deus, como também da intercessão da Virgem Maria. O ativismo e a dispersão nos impedem de captar as sutis comunicações do Alto. Assim viveram os grandes mestres da vida espiritual e, em especial, os santos. O próprio Santo Antônio Maria Claret, por ocasião da conservação da Eucaristia em seu peito, de uma comunhão a outra, dizia ‘Eu preciso estar muito recolhido e devoto interiormente’ para não se afastar da presença daquele que o habitava como sacrário vivo.

Se conosco Deus se manifesta dessa forma, imagine sua presença na vida da Virgem Maria. Essa percepção foi tal a ponto de Maria conceber em seu seio, pela ação do Espírito Santo, Jesus, o Filho de Deus; proximidade e comunhão espiritual nos mínimos acontecimentos da vida faziam de Maria uma mulher em constante e profunda união com Deus e, na gravidez, com seu filho, Jesus. Nenhuma sutil manifestação passava despercebida na vida de Maria; é por isso que, nos evangelhos, vemos a presença marcante de Maria no silêncio e não tanto na fala.

Contemplemos, pois, o silêncio de Maria, que, por si, é eloquente não em palavras, mas em atenção e comunhão com o Divino. Tenhamos a certeza de que assim como Maria estava atenta à ação e à voz de Deus, assim também ela está atenta aos nossos rogos, como mãe que é de todos nós. 

A propósito, como você tem sentido a presença de Deus em sua vida? Que sinais, moções ou inspirações indicam que Deus está próximo e quer se comunicar.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/sutilezas-de-deus-e-da-virgem-maria.html

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O monaquismo cisterciense de rito guèze

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Negusse Woldai, OCist

Abade da comunidade de Asmara, Eritreia

Guèze (ou ge’ez) é a língua clássica da Abissínia, hoje usada somente como língua litúrgica. No nosso mosteiro rezamos as horas do Ofício em guèze, mas as leituras da Escritura e dos Padres são em tigrigna na Eritreia, e em amharique na Etiópia; ambas as línguas derivam da guèze.

 

‘Desde o começo, a intenção da Igreja e do nosso fundador, o venerável Abba Fesseha Ghebreamlak, era erigir um monaquismo católico indígena, paralelo à Igreja ortodoxa, igreja irmã existente na Abissínia (Etiópia e Eritreia).

Por iniciativa e mediação da Congregação para as Igrejas orientais, a congregação cisterciense de Casamari tornou-se o berço do projeto aceitando o futuro fundador Abba Fesseha Ghebreamlak, que era padre diocesano, e outros que lhe seguiram os passos.

Foram formados segundo a Regra de São Bento, as Constituições da congregação de Casamari, com a intenção de seguir o rito guèze, uma vez retornados ao país, e de estabelecer a vida monástica cisterciense na Eritreia.

Em 1940, o primeiro grupo de cistercienses, três italianos e quatro Eritreus chegaram à capital da Eritreia, Asmara, para começar o primeiro mosteiro num lugar chamado Beleza, a 13 km da capital. Mais tarde, em 1948 o mosteiro foi transferido para Asmara.

Não era fácil ter dois ritos, latino e guèze, no mesmo mosteiro durante os primeiros decenios, mas conseguiram caminhar juntos sob a Regra de São Bento. Em 1960, quando o primeiro monge Eritreu Abba Thimoteos Tesemma foi eleito superior, só o rito guèze era usado na Etiópia e na Eritreia. Como observância comum cisterciense, vivemos segundo o lema : Ora et Labora.

Vida Litúrgica

Nossa salmodia contem 150 salmos e 15 cânticos dos profetas; é contínua, e é repartida em duas semanas. Isto significa que a cada duas semanas começamos com o salmo 1.

A liturgia monástica das Horas, na semana tem :

1. 1º Noturno : os salmos e as leituras respetivas da Escritura, seguidos de uma curta oração chamada Liton

2. 2º Noturno Salmos respetivos e leitura dos Padres, seguido de Weddasie Mariam (louvor à Virgem Maria de Santo Efrem o Sírio)

3. Laudes : Salmos respetivos seguidos de Kidan Zalalit (do Testamentum Domini) I e II

4. Divina Liturgia (a santa missa)

5. Terça e Sexta às 12, 30

6. Vésperas às 18, 15 todos os dias (15, 30 nas festas)

7. Capítulo e Completas às 20, 45, que terminam com o Salve Regina em língua guèze.

Nos domingos e dias de festa, a nossa salmodia é o Ofício Divino da catedral segundo a liturgia de rito guèze. Como de costume, na véspera, as Vésperas são cantadas, e muito cedo as Vigílias começam ao canto do galo, quer dizer às 3 ou 4 horas até à Divina Liturgia ou Santa Missa. Os domingos comuns têm um tema próprio e um nome.

Utilizamos instrumentos tradicionais de música durante o ofício catedral, tais como tambores, sistros, ou o bastão que dá o ritmo, a dança litúrgica acompanhada com o bater das palmas e as vozes das mulheres. Aqui também os fiéis se juntam à salmodia.

Temos nosso lecionário tradicional e calendário litúrgico (12 meses de 30 dias, mais 5 – ou no ano bissexto – 6 dias suplementares). Aqui inserimos algumas festas de santos e comemorações da Igreja romana e beneditina. Segundo a tradição da Igreja católica Etio-eritreia, a Divina liturgia quotidiana é celebrada ‘com voz baixa’, ou cantada, enquanto na tradição da Igreja ortodoxa irmã é sempre cantada, ao domingo, dias de festa e em ocasiões especiais, tais como casamentos, serviços fúnebres, ou missa de defuntos, batismo de bebês, ou nos sacramentos de confirmação e de comunhão (quer dizer os sacramentos de iniciação) que são administrados simultaneamente etc.

O jejum é observado 200 dias por ano, com rigor. Na tradição da Igreja ortodoxa, nos dias de jejum a Divina Liturgia é celebrada a partir do meio dia, enquanto nós a celebramos de manhã. 

A música e o gestual do rito guèze são a reprodução do serviço musical e do gestual celeste. Os cantores estão separados em dois coros : do lado direito está simbolicamente o dos anjos querubins, do lado esquerdo o dos serafins. A coreografia dos cantores simboliza a paixão de Cristo.

O kabaro é um tambor de madeira em forma cónica em pele de vaca, coberto por um tecido que representa o sudário que cobriu o corpo de Cristo, ou o tecido que cobriu seu rosto, quando os soldados romanos o esbofetearam. A pequena membrana do tambor simboliza o Novo Testamento, a grande membrana o Antigo Testamento.

O bastão do coro representa a cruz de Cristo. A cabeça representa a cabeça do cordeiro pascal, símbolo do Cristo.

O sistro representa a escada de Jacó. É feito de dois montantes verticais, simbolizando o Antigo e o Novo Testamento. A junção dos dois, no cimo formando a Bíblia. Segundo alguns, o som do sistro simboliza o ruído das asas dos serafins e dos querubins no céu.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/122

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

A Arca da Aliança – verdade ou ficção

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


 *Artigo do Padre José Inácio de Medeiros, CSsR

 

‘De acordo com a narrativa bíblica, o povo hebreu ao assumir uma aliança com Javé, selada com a aspersão do sangue de um cordeiro, recebeu dez mandamentos gravados em duas placas de pedra. Os mandamentos eram pontos fundamentais que regeriam os hábitos, as crenças e toda a vida do povo.

Para manter as tábuas da lei, Deus mandou que se construísse uma arca que, além de proteger as placas representaria sua aliança selada com o povo. A arca assinalaria a presença de Deus no meio do povo. O Livro do Êxodo traz regras exatas para a sua construção no capítulo 25, versículos de 10 a 22 :

Diga aos israelitas que façam uma arca de madeira de acácia, de um metro e dez de comprimento por sessenta e seis centímetros de largura e sessenta e seis de altura. Revistam de ouro puro essa caixa, por dentro e por fora. E em toda a volta coloquem um remate de ouro. Façam também quatro argolas de ouro e ponham nos quatro pés, ficando duas argolas de cada lado. Façam cabos de madeira de acácia e revistam de ouro. Enfiem os cabos nas argolas nos lados da arca, para que ela possa ser carregada. Os cabos ficarão nas argolas da arca e não serão tirados dela. Eu lhe darei as duas placas de pedra, onde estão escritos os mandamentos; e você porá essas placas na arca.

Faça também uma tampa de ouro puro, de um metro e dez de comprimento por sessenta e seis centímetros de largura. Faça dois querubins de ouro batido, um para cada ponta da tampa. Isso deve ser feito de modo que os querubins formem uma só peça com a tampa. Os querubins ficarão de frente um para o outro, olhando para a tampa. As suas asas ficarão abertas, cobrindo a tampa. Coloque dentro da arca as duas placas de pedra que eu vou lhe dar e ponha a tampa na arca. Ali eu me encontrarei com você e, de cima da tampa, do meio dos dois querubins, eu lhe darei as minhas leis para o povo de Israel. 

A Arca da Aliança se tornou a mais preciosa relíquia do judaísmo, mostrando a evolução religiosa do povo que passa das influências politeístas para o culto ao Deus vivo e verdadeiro. Ela era levada em procissão quando o povo caminhava pelo deserto até ser depositada no Tempo construído por Salomão em Jerusalém.

A sacralidade da Arca da Aliança

O mais antigo relato sobre a Arca da Aliança é do período do cativeiro do povo no Egito, por volta de 1.300 a.C, Segundo a narrativa o Livro do Êxodo fala que Deus selou uma aliança com o povo, através de Moisés, aos pés do Monte Sinai.

Como as narrativas do livro do Êxodo foram elaboradas muito tempo depois de os fatos terem acontecido, especialistas da história bíblica explicam que os eventos iniciais da história hebraica podem ter sido formulados durante o cativeiro hebreu na Babilônia. Neste sentido, além de ser descrita como uma demonstração do favor divino, a Arca da Aliança era dotada de poderes sobrenaturais. Por isso, somente os sacerdotes levitas podiam entrar na tenda onde a Arca era conservada. Mais tarde, durante as batalhas pela reconquista da Terra de Canaã, a Arca da Aliança era levada aos locais de batalha para animar os que lutavam e garantir as vitórias.

O caráter sagrado da Arca também foi descrito no livro de Samuel, quando os filisteus a roubaram, sendo acometidos de diferentes punições misteriosas.

E enviaram, e congregaram a todos os príncipes dos filisteus, e disseram : Enviai a arca do Deus de Israel, e torne para o seu lugar, para que não mate nem a nós e nem ao nosso povo. Porque havia mortal vexame em toda a cidade por onde a arca passava, e a mão de Deus muito se agravara ali. Primeiro Livro de Samuel, capítulo 5, versículo 11.

Depois que o povo entrou na Terra Prometida, no reinado do rei Salomão, entre 970 e 931 a.C. se construiu o Templo de Jerusalém, onde a Arca foi mantida. Após o reinado do Salomão houve a decadência que levou à separação do reino entre Judá e Israel. O povo perdeu sua liberdade e a localização da arca passou a depender do destino do povo devido à dominação estrangeira.

No ano de 586 a.C os babilônios conquistaram a cidade de Jerusalém e de acordo com o livro dos Macabeus, o profeta Jeremias teria escondido a Arca no monte Nebo, depois de profetizar a destruição de Jerusalém. Mas é possível que ela tenha sido levada como troféu ou espólio pela vitória e nunca mais se teve certeza sobre o seu paradeiro. Quando os hebreus voltaram à Jerusalém, no ano de 539 a.C., reconstruíram o templo mantendo o local da Arca vazio, pois ela nunca mais foi encontrada.

Esta constatação foi feita pelo general romano Pompeu que ao tomar a cidade de Jerusalém, no ano 70 d.C. indagou sobre os motivos pelos quais os judeus mantinham um quarto vazio em seu templo. A tomada de Jerusalém e sua transformação numa cidade pagã com o nome de Aedes Capitolina provocou a chamada Diáspora Judaica, mantendo o mistério sobre o destino da Arca da Aliança.

No século XII, no período das cruzadas que tentavam libertar a Terra Santa do domínio dos mouros, apareceram relatos não comprovados de que a Ordem dos Templários tivesse resgatado e mantido em segredo várias relíquias do tempo dos judeus como a Arca da Aliança e também outras relíquias do cristianismo como o Santo Graal.

Onde está a Arca da Aliança

A existência da Arca da Aliança e o seu destino é um grande mistério que volta e meia ganha destaque em filmes, documentários e obras literárias todas bastante fantasiosas. As explicações sobre o paradeiro desta e de outras relíquias da narrativa bíblica confundem os limites entre fé e Ciência.

Antes reservadas aos estudiosos da bíblia, as histórias sobre a Arca da Aliança ganharam o mundo com as aventuras de Indiana Jones no filme Os Caçadores da Arca Perdida. Se o destemido arqueólogo do cinema é bem-sucedido em sua busca, o paradeiro e a existência real da relíquia continuam mais misteriosos do que nunca.

Existe até um grupo religioso etíope que afirma manter a Arca escondida. Segundo eles, os monges da Igreja Santa Maria de Sião teriam recebido a arca das mãos de Menelik, filho que o Rei Salomão teve com a rainha de Sabá, em 950 a.C. Segundo os monges, a Arca da Aliança permanece escondida em um templo e até hoje ninguém recebeu autorizado para entrar neste templo e, finalmente, desvendar o mistério sobre ela.

Sem maiores comprovações, volta e meia fala-se de arqueólogos que realizam buscas na cidade de Jerusalém e em outros lugares. Mesmo não sendo encontrada ou sendo uma mera invenção mítica, a Arca tem importante significado religioso para os judeus e mesmo para os cristãos que expressam sua devoção em Maria, a Arca da Nova e Eterna Aliança que nunca mais terá fim, pois é o próprio Jesus.’

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2025-06/curiosidades-biblia-arca-alianca-verdade-ficcao.html

sábado, 25 de outubro de 2025

A missão que mora no cotidiano

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Diego Leli, cmf

 

‘O mês de outubro, na vida da Igreja, é um convite a reacender o fogo da missão. Para muitos, ‘missão’ ainda é palavra que evoca partidas longas, mapas distantes, línguas estrangeiras e culturas desconhecidas. É verdade que a missão ad gentes, que leva o Evangelho a terras onde Cristo ainda não foi anunciado, é um dom precioso e necessário, no entanto, a revelação bíblica e a tradição viva da Igreja nos recordam que a missão é, antes de tudo, essência do ser cristão e, portanto, ela começa no cotidiano, no lugar onde Deus nos planta.

O Concílio Vaticano II, no Decreto Ad Gentes e na Constituição Dogmática Lumen Gentium, recorda que todo batizado é chamado a ser discípulo-missionário. Não existe cristão sem missão. Não se trata de um ‘a mais’ na vida de fé, mas da própria identidade recebida no Batismo. Ao mergulharmos nas águas batismais somos enxertados em Cristo e participamos de sua tríplice missão – profética, sacerdotal e régia –, por isso, onde quer que vivamos somos enviados.

Ser ‘sal da terra e luz do mundo’ (Mt 5,13-14) não é metáfora decorativa, é vocação concreta. O sal, na Antiguidade, conservava os alimentos e dava sabor, assim a presença cristã deve preservar os valores do Reino e dar sentido ao mundo, mesmo que, muitas vezes, isso ocorra discretamente. A luz, por sua vez, não brilha para si mesma, mas para dissipar as trevas e assim a vida de um discípulo deve ser sinal que aponta para Deus, iluminando o caminho dos outros.

Jesus não nos chama apenas a ‘fazer’ missões, mas a ‘ser’ missionários, de tal forma que cada gesto, cada palavra e cada silêncio carregue a marca do Evangelho. Essa missão se cumpre principalmente pelo testemunho. São Francisco de Assis nos lembra : ‘Evangelizai sempre; se necessário, também com palavras’. O anúncio explícito é fundamental, mas perde a força se não for sustentado pela coerência de vida.

A santidade é o chão onde a missão se constrói. ‘Sede santos, como o vosso Pai celeste é santo’ (Mt 5,48) é um imperativo que une intimamente missão e santidade. O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, afirma que a santidade não se resume a gestos heroicos ou à vida em terras distantes, mas floresce na existência comum : no cuidado com a família, na honestidade no trabalho, na ternura diante de quem sofre, na paciência diante das cruzes diárias. É aí, no escondimento do dia a dia, que se cumpre o maior ato missionário : viver segundo o coração de Deus.

Evangelizar pelo exemplo significa fazer de cada espaço um lugar de encontro com Cristo. É transformar a casa em Igreja doméstica, o trabalho em campo de serviço, a rua em espaço de cuidado fraterno. É perceber que o ‘ide por todo o mundo’ (Mc 16,15) começa na soleira da porta de casa. A missão não é algo que aguardamos para fazer um dia, é o que somos chamados a viver a cada instante, pois ‘ai de mim se eu não anunciar o Evangelho’ (1Cor 9,16).

Outubro, Mês das Missões, recorda-nos que Deus não chama apenas alguns para enviar, Ele envia todos. O verdadeiro missionário é aquele que, unido a Cristo e sustentado pela Eucaristia, faz da própria vida um prolongamento do amor do Pai no mundo.

Missão não é fardo, é graça. Não é peso, é alegria. É a certeza de que onde há um batizado que vive com amor, aí o Evangelho já é pregado e o Reino de Deus, silenciosamente, acontece.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/a-missao-que-mora-no-cotidiano.html

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Sodoma e Gomorra de fato existiram?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre José Inácio de Medeiros, CSsR


‘Uma das narrativas bíblicas do Antigo Testamento que, com certeza, mais chama a atenção dos leitores é o diálogo de Abraão com Deus, quando o patriarca da nação invoca sua clemência para com duas cidades. Na passagem o Senhor anuncia a destruição de Sodoma e Gomorra. O motivo apresentado seria o elevado nível de promiscuidade e corrupção do povo. Assim está escrito :

‘Disse mais o Senhor : Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra se tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito’ (Livro do Gênesis, capítulo 18, versículo 20).

Abraão intercedeu pelo povo diversas vezes, perguntando ao Senhor que se houvesse homens justos no meio dos ímpios, ele pouparia a cidade :

‘Disse mais : Ora, não se irrite o Senhor, que ainda só mais esta vez falo : Se porventura se acharem ali dez justos? E Deus disse : Não a destruirei por amor dos dez’ (Livro do Gênesis, capítulo 18, versículo 32).

As Sagradas Escrituras contam que o Senhor poupou a família de Abraão enviando dois anjos à casa de Ló, seu sobrinho, que habitava a região a ser destruída. Eles o orientam a deixar a cidade, junto com sua família. Os anjos orientam ainda que ao sair da cidade não olhassem para trás, para não virarem estátua de sal. E por não haver ali sequer dez homens justos, a cidade foi destruída. A mulher de Ló, entretanto, ao se virar para traz imediatamente foi transformada numa estátua de sal. Assim está escrito no Livro de Gênesis

 ‘Então o Senhor fez chover enxofre e fogo desde os céus, sobre Sodoma e Gomorra’ (Livro do Gênesis, capítulo 19, versículo 24).

Localização das cidades de Sodoma e Gomorra

Pouco se sabe de concreto sobre as cidades de Sodoma e Gomorra. Elas estavam situadas próximas ao mar Morto. A primeira referência bíblica a seu respeito está no livro do Gênesis (Gn 10,19). São as duas mais conhecidas, porém, na verdade, havia outras três cidades ao longo do Rio Jordão. Essas cinco cidades eram conhecidas como as Cidades da Planície.

Nas passagens que nos referenciam a destruição das cidades é motivada pela promiscuidade de seus moradores. Porém, outra versão indica que as cidades tenham sido destruídas porque seus habitantes eram cruéis e pouco hospitaleiros com os estranhos. A falta de hospitalidade comum naquela época era muito criticada por ser uma atitude contrária à fraternidade como está no evangelho de Mateus (Mt 10, 14-15) que diz :

‘E, se ninguém vos receber, nem escutar as vossas palavras, saindo daquela casa ou cidade, sacudi o pó dos vossos pés. Em verdade vos digo que, no dia do juízo, haverá menos rigor para o país de Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade.’

Outras informações históricas mostram que essas Cidades da Planície tiveram um passado difícil por serem cobiçadas. Bem antes do evento apocalíptico acontecer, Sodoma e Gomorra foram realmente devastadas pela guerra. Quedorlaomer, Rei de Elon, atacou as cidades, massacrou seus moradores e roubou todas as suas riquezas e alimentos.

Quem sabe por isso mesmo, seus habitantes tenham justificado o não seguimento da vontade de Deus, ao se tornarem rudes e hedonistas. Mas, no final, eles pagaram por isso da pior maneira possível.

O pecado de Sodoma e Gomorra

A Bíblia não deixa muito claro a razão da destruição de Sodoma e Gomorra, mas o profeta Ezequiel (EZ 16,49) já apresenta as cidades como expressão de pecado ao dizer :

‘Eis que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã : Soberba, fartura de pão, e abundância de ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mão do pobre e do necessitado.’

O Profeta Jeremias (Jr 23,14), por sua vez, acrescenta um detalhe a mais nesta questão :

‘Mas nos profetas de Jerusalém vejo uma coisa horrenda : cometem adultérios, e andam com falsidade, e fortalecem as mãos dos malfeitores, para que não se convertam da sua maldade; eles têm-se tornado para mim como Sodoma, e os seus moradores como Gomorra.’

Uma leitura mais simples mostra estas cidades completamente sem lei, devido a sua riquezas e vida fácil proporcionadas pela fertilidade das planícies próximas ao Rio Jordão. Um homem, porém, foi digno de escapar da destruição se transformando em sinal de retidão daqueles que andam à luz do Senhor.

A segunda carta de Pedro (Pd 2, 6-9) enfatiza como Ló foi salvo por Deus, por ser ele um homem piedoso e justo. Ló e suas filhas conseguiram escapar sãos e salvos. A esposa de Ló, no entanto, não conseguiu porque ela desobedeceu a Deus e olhou para trás. Por isso ela foi transformada numa estátua de sal.  Na bíblia, o olhar para traz tem a interpretação de quem não conseguiu se desvencilhar das riquezas e da vida fácil.

Os antigos romanos tinham também sua versão da história. O escritor romano Ovídio escreveu uma fábula que mistura elementos da mitologia grega e romana, na história de Baucis e Filémon. Nessa história, os deuses Zeus e Hermes (ou Júpiter e Mercúrio, respectivamente na mitologia romana) viajaram para uma cidade disfarçados de homens, para tristemente descobrir que seus habitantes não eram hospitaleiros a não ser Filémon e sua esposa, Baucis, que os recebem e lhes dão comida. Os deuses então se revelam, avisando o casal para fugir, pois eles destruiriam a cidade.

Existe também uma versão da história no islamismo. A Sura Hude 11, 81 do livro do Alcorão tem uma versão ainda pior. Lá está escrito :

‘Então viaje com sua família no escuro da noite, e não deixe nenhum de vocês olhar para trás, exceto sua esposa. Ela certamente sofrerá o destino dos outros.’

Razões da destruição das cidades

Não existe uma clareza nos motivos que levaram à destruição das cidades impenitentes, mas em 2005, arqueólogos descobriram uma área na Jordânia conhecida como Telel Hamã. As ruinas e os objetos ali encontrados indicam possivelmente a localização das Cidades da Planície, com evidências de que o lugar foi devastado pelo fogo. Objetos de cerâmica que lá foram desenterrados mostram que a cerâmica se transformou em vidro depois de ser exposta a temperaturas extremamente altas.

A falta de água, as altas temperaturas do deserto e a terra que se tornou imprópria para a produção agrícola podem explicar as razões dos habitantes abandonarem as cidades. Mas nas Sagradas Escrituras, mais importante do que o fato em si, está a simbolização das cidades de Sodoma e Gomorra como lugares de pecado que são abomináveis para Deus, que sempre oferece, porém, a sua misericórdia e a possibilidade de conversão.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2025-06/curiosidades-biblia-sodoma-gomorra-existiram.html

terça-feira, 21 de outubro de 2025

O celeireiro na Regra de São Bento

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Médard Kimengwa, OSB

Mosteiro de Lubumbashi, Kiswishi (RDC)


Um pai para toda a comunidade, tal como o Abade e com ele[1] 

‘Por que nos interessar pelo espírito e pela motivação que devem animar as ações do celeireiro em uma comunidade monástica de tradição beneditina?

Pertencemos a um mundo que tem uma concessão de economia, não sempre em harmonia com o nosso ideal monástico e cristão em geral. O problema é que, basicamente, somos herdeiros da cultura grega desde Platão, de uma antropologia (uma visão do homem e do composto humano) dualista. Portanto negativa. Trata-se de uma concessão do Homem que dissocia o corpo e o espírito. Esta antropologia dualista determina a concessão atual da economia até uma simplificação errada que chega a parecer uma caricatura.

Esta concessão faz uma clara separação entre vida econômica (temporal) e vida espiritual. Assim, o superior religioso, abade/abadessa ou prior/prioresa, no nosso contexto beneditino, é a pessoa que tem como única e exclusiva responsabilidade o cuidado das almas, quer dizer, sem relação com a vida material, temporal (tudo o que diz respeito à produção dos bens, os meios para obtê-los, assim como a sua administração), que seria, então, reservada ao ecônomo, ao celeireiro/celeireira.

Mas será verdadeira a ideia que, no contexto da espiritualidade beneditina, o superior religioso não tem nada a ver com a vida material, assim como o ecônomo não teria nada a ver com a vida espiritual?  Seria, então, normal que este último sacrificasse horas de oração ou de outras atividades espirituais para realizar sua tarefa administrativa? Esta concessão é simplista e falsa.

Nada é mais falso do que esta caricatura, sobretudo segundo os dados da RB. De fato, na espiritualidade beneditina não há separação entre os dois domínios. Concretamente, na Regra, o abade não é somente identificado com seu papel espiritual, mas com o conjunto do que concerne a pessoa humana, incluindo a vida material. É claro que ele tem de cuidar da vida material, caso contrário, a vida espiritual não pode florescer. Para que o abade possa gerar filhos conformes com a vontade de Deus, seu Pai, ele deve cuidar das condições materiais necessárias. Não diziam os antigos que é preciso um mínimo de bem-estar para praticar a virtude?

Cabe ao celeireiro, conforme a Regra, ocupar-se da vida temporal (econômica) de todo o mosteiro (RB 31,1). Mas São Bento não se detém nesta formalidade da sua missão. Indica também o espírito que deve caracterizar o seu modo de agir na gestão do temporal. Concretamente São Bento diz ao celeireiro que deve ‘agir em colaboração com o abade, sendo como um pai para todo mosteiro’ (RB 31, 2). Isto é muito importante. Pai, como o abade : sua missão é, portanto, também espiritual. Participa do cargo do abade no exercício de sua missão. Como o abade, o celeireiro participa da missão de gerar filhos para Deus. Por isso o celeireiro tem também a missão de cuidar das almas dos irmãos no mosteiro. Quando não tiver nada para dar, que dê uma resposta boa (RB 31, 7.13). Não se trata de recusar por recusar, mas ajudar seus irmãos a serem gerados para a vida no Espírito.

O celeireiro deve agir como o abade. Deve ter em conta as pessoas. Deve trabalhar em estreita colaboração com o abade. No exercício do seu cargo não deverá fazer nada sem a ordem do abade, e fazer unicamente o que este ordenou (RB 31,4-5; 12.15) Se o celeireiro vive esta relação de obediência com o abade (RB 31,9.16), é para que reine a paz no mosteiro. E é-lhe dito que se não houver harmonia, também lhe serão pedidas contas.

O estilo de vida, ou de espiritualidade que implica a questão econômica no mosteiro, deveria ter relação principalmente com a preocupação pela pessoa humana e uma visão sagrada das coisas (é pedido ao celeireiro que trate os objetos do mosteiro como vasos sagrados do altar - RB 31,10 - e que venda o que é produzido sem cupidez (RB 57,4-8).

Tendo criado o Homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,26), Deus o quer de pé! Ele encontra sua glória no homem que vive com dignidade (cf. Santo Irineu de Lião). Todos os comentadores da RB são unânimes em reconhecer que o que torna a Regra tão atual é a sua adaptação a cada pessoa humana no interior da comunidade. O horizonte da Regra é que o homem esteja de pé, pois São Bento considera a vida monástica como um empenho de conversão, uma volta para Deus pelo labor, pelo caminho da obediência, libertando-se do jugo da vontade própria (RB Pról. 2-3,8).

A necessidade da espiritualidade com este horizonte de atenção ao Homem, é perceptível em uma corrente econômica, ‘a economia social do mercado’. A preocupação pela pessoa humana, ou a atenção ao homem, é a última das preocupações do que se chama liberalismo econômico, ou ‘capitalismo selvagem’. Se na economia social de mercado há interesse pela pessoa humana, no capitalismo selvagem o homem não conta : o que é importante é unicamente o lucro, o ganho. E justamente, com o Congolês e participante desta sessão em Goma, no Norte-Kivu, nos arredores do Sul-Kivu e do Ituri, podemos ver a ilustração desta concessão econômica, considerando a guerra ‘à baixa intensidade’ (de fato não acaba) que devasta os territórios, obriga as pessoas a deixar suas terras por causa da ameaça das armas… ‘Que morram…’ : isso não importa para as multinacionais e para seus dirigentes, que estão a seu serviço. Que o embaixador italiano tenha sido sacrificado, isso não importa para os lucros. O mundo pode comover-se por um momento, quando se levanta um pouco o véu que cobre os negócios desta guerra infame, mas logo chega o silêncio imposto pelo deus Mamom, que os novos senhores do mundo servem, aqueles que controlam a bolsa mundial.

Guardadas as proporções, podemos dizer que Max Weber poderia, em certa medida, ser considerado como um antepassado da economia social de mercado, especialmente com seu livro : A Ética do protestantismo e o espírito do capitalismo (1904-1905). Ele mostra como os países Escandinavos, sob a influência do protestantismo, conheceram um funcionamento da economia com o Homem no centro. A ética protestante, segundo ele, gerou, neste contexto, um capitalismo com rosto humano.

Compreende-se porque a economia social de mercado é bem vista pelo Magistério da Igreja, através de sua doutrina social a partir de Paulo VI com sua encíclica Populorum Progressio (1967). Mas o próprio Paulo VI se inscrevia numa sensibilidade eclesial sobre o assunto, uma sensibilidade já notada em Leão XIII com sua encíclica Rerum Novarum (Maio 1891) e João XXIII com sua encíclica Mater et Magistra (1961). Seus sucessores não deixaram de andar na mesma direção como se pode constatar em João Paulo II (Laborem exercens, de Setembro 1981; Sollicitudo rei socialis, de Dezembro 1987; Centesimus annus, de Maio 1991), Bento XVI (Deus caritas est, 2005, 3º cap.; Exortação apostólica Africae munus, de Novembro 2011) e Francisco (Laudato si’, de Maio 2015; Exortação apostólica Querida Amazônia, de Fevereiro 2020). Em suas várias declarações nestas ocasiões, incluindo a questão que estamos considerando, o Magistério da Igreja quer encorajar os cristãos e os homens de boa vontade a levar em conta o Homem, sua dignidade, defendendo uma economia que preste atenção à pessoa humana. Com tudo isso, percebemos que espírito que deve animar o celeireiro no seu serviço tem um sólido fundamento no Magistério.

Neste contexto, que espírito deve animar o celeireiro? Que estilo de vida ele deve adotar no exercício de sua missão?

Em resposta a esta realidade, e em ligação com nosso ideal de vida, na base da nossa ideia de economia deve estar a fé na divina Providência. Realizamos que, às vezes, nossos investimentos económicos, apesar de todas as precauções, não dão um rendimento suficiente. Por isso, devemos viver, produzir, providenciar para a nossa subsistência, partilhar e ao mesmo tempo ser humildes e pedir ajuda, confiando na Providência. E devemos participar na tomada de consciência de como funciona a economia capitalista mundializada, usando nosso poder de educadores de massas.

Como eco a todas as preocupações e inquietações expressas pelos participantes diante da realidade do capitalismo selvagem, o Padre Simon nos desperta propondo o seguinte :

Diante da agressão da economia liberal, por que não construir uma rede de venda de produtos dos nossos mosteiros (MAC) cujas condições de produção respeitam o Homem e o meio ambiente?  Promover a iniciativa privada, entrar em sinergia entre nós e com outros. Fazer uma cooperativa? Um circuito ético! Pois junto com as populações que nos rodeiam, somos vítimas da economia liberal. Os supermercados afogam-nos! A publicidade nos condiciona. Eis por que devemos selecionar a informação sobre o que consumimos.

Para entrar neste circuito proposto, temos de potencializar o que temos a intenção de pôr no mercado. Que sejam produtos de qualidade, e sobretudo éticos, para seduzir os clientes que se podem orientar para nós como alternativa aos supermercados.

Dentro deste registro, para promover a solidariedade no interior do funcionamento da economia nos nossos mosteiros, podíamos também pensar num projeto de seguro de saúde para nossos mosteiros MAC como expressão de nossa atenção à pessoa humana na procura de uma saúde financeira. Seria uma boa ilustração do nosso esforço para produzir, pondo a pessoa no centro.

Em resumo, interessamo-nos sobretudo pelo espírito que deve animar aqueles que têm a responsabilidade direta da gestão da economia no mosteiro pensado por São Bento, o ecónomo e o abade em particular. Trata-se de entrar no espírito da economia segundo os Pais do monaquismo Ocidental. É a perspectiva de uma economia segundo o espírito da Regra. À sua escola, a economia fundamenta-se sobre uma espiritualidade. 

A vida monástica segundo São Bento na sua Regra

São Bento concebeu a vida monástica como um caminho de conversão, de volta para Deus. Trata-se de um caminho de volta através do labor da obediência. E isto depois da falência das ilusões da vontade própria e da escolha de viver a autonomia (cf. RB, Prol 2-3, 8). O destino deste caminho de volta para Deus (cf. RB, Prol 1 e ss) é a vida eterna, ou simplesmente a vida autêntica, o reino de Deus, a vida de comunhão com Deus : a bem-aventurança (cf. RB, Prol 42, 5.3.10, 7,11; 72, 2,12).

Quando São Bento faz da ‘vida eterna’ (RB, Prol 15, 17, 20, 42), do ‘reino das luzes’, dos ‘dias felizes’ (RB Prol 21), o escopo do caminho de retorno a Deus, que o monge percorre, ele não pensa nos ‘fins últimos’, mas a uma experiência já na vida presente, a harmonia vivida com aqueles que partilham a vida do monge no mesmo mosteiro. O lugar concreto da experiência desta felicidade e desta paz, é a vida dos mandamentos de Deus : a vida iluminada pela Palavra de Deus. Em outras palavras: São Bento pede que seus discípulos percorram este caminho se deixando guiar pela Palavra, como principal fonte do agir, e luz para seus passos no cotidiano (cf. RB Pról. 10-12, 21-22, 25, 29, 33-34, 40).

Como conclusão, São Bento quis a vida monástica como uma escola para aprender a servir o Senhor (RB Prol. 45), ou a ser totalmente dado ao Senhor.

Na vida do ideal monástico, além do seu desejo de fazer da vida monástica uma escola do serviço do Senhor, São Bento também quis que a vida monástica fosse como um atelier, uma oficina (cf. RB 4, 78) no interior da qual se aprende a exercer a arte espiritual (RB 4, 75).

O abade é o depositário deste ideal monástico assim definido. Ele deveria ser o primeiro a encarná-lo, ser o seu defensor, e o animador de todos os que, com ele, integram a escola do serviço do Senhor e o atelier do treino desta arte espiritual.

Perfil e missão do abade segundo a RB (RB 2 e 64)

Os dados dos cap. 2 e 64 da Regra devem ser completados por outros : 21-24, 28, 31-33, 36, 39-41, 44, 47-51, 53-57, 60, 66-68, 70 para se entender bem o perfil e a missão do abade.

O abade como guardião do ideal que São Bento propõe aos seus discípulos, tem a missão de guiar os monges que lhe são confiados, na realização do ideal da volta para Deus. Porque ele torna presente o Cristo, por meio dele Deus gera, ou melhor, gera de novo filhos. Ele não é o Cristo, mas torna-o presente pelo seu testemunho e ensinamento. O abade deve gerar filhos para Deus ensinando, mas de modo particular. Pois ensinar, não é o problema. A questão é a maneira de ensinar. É por sua palavra, habitada pela Palavra de Deus, que ele tem de ensinar. Ele deve possuir essa palavra, proclamá-la, explica-la, mas sobretudo ilustrá-la pelo exemplo, pelo seu testemunho de vida, pelo modo como a põe em prática. Por exemplo, ao corrigir os outros, corrige-se a si mesmo. Tem de cuidar das almas, mas com a condição que os monges lhe abram seu coração, expondo-lhe suas doenças espirituais (RB 7, 44), como por exemplo, submetendo-lhe o que querem oferecer a Deus, durante a quaresma, para o realizarem com sua oração, para que não caiam na presunção e vã glória (RB 49, 8-10).

Esta forma da paternidade do abade, segundo São Bento, é herdeira da figura do pai espiritual da tradição do deserto do Egito, nas origens do monaquismo, figura imortalizada pelos Apoftegmas.

O abade, para que a vida espiritual dos seus monges cresça, deverá cuidar particularmente das condições materiais necessárias. Quer dizer sobre a vida temporal, de que é o primeiro responsável. Os superiores são os primeiros responsáveis pela vida temporal dos mosteiros que lhes são confiados. Concretamente, São Bento prevê que o abade vele para que os monges durmam em boas condições (RB 22), num dormitório, por exemplo. Deve velar pela quantidade da comida (RB 39) e da bebida, cf. RB 40 (verdadeiramente é um homem realista!) Deverá ter em atenção os fracos (os idosos, os doentes, as crianças) cf. RB 36 e 37.

Vai mais longe com os doentes : prescreve uma enfermaria aonde devem receber os cuidados apropriados (RB 36, 7-8). Entre os fracos, de que deve cuidar, estão os estrangeiros, os peregrinos, os hóspedes. É-lhe pedido que cuide para que sejam acolhidos decentemente, num lugar gerido por um homem temente a Deus (cf. 53, 16-22). Verdadeiramente a pessoa está no centro dos cuidados que o abade deve ter pela vida material do mosteiro.

A comunidade, aonde o monge deve se tornar conforme ao Cristo, deve ter tudo o que é necessário no plano material (RB 66, 6). Tudo! É uma proposta universal. É uma comunidade aonde se deveria encontrar os diversos instrumentos para os serviços necessários. (cf. RB 32) O abade deve ter um inventário de tudo isso (RB 32, 3). Por que não pensar, por exemplo, num inventário anual sistemático nos nossos mosteiros?

O abade deve também cuidar que os monges da sua comunidade tenham o que é necessário para o trabalho, esforçando-se por se adaptar a cada pessoa (RB 2, 23-32; 33, 5).

A missão do abade deve, pois, consistir que no seu mosteiro todos os membros estejam em paz (cf. RB 34, 5). Um mínimo de paz nas nossas comunidades e seria o paraíso! Mas é por causa do nosso pecado que não é assim. Todos os membros, mesmo aqueles que não se tem uma boa relação, devem viver em paz. Pois, justamente, no seio da casa de Deus, que o abade governa, ninguém deve estar triste, nem preocupado (RB 31, 19). Cada manhã, olhar cada irmão, cada irmã para verificar seu estado de ânimo : Ele/ela está em paz ou está perturbado/a interiormente? Ele/ela tem problemas, preocupações?

A saúde econômica do mosteiro é uma dimensão importante para o desenvolvimento da saúde psicológica e espiritual de cada membro. É fator de paz, de harmonia para cada vocação monástica. Por isso na regra o abade é visto como dependente de uma autoridade superiora, a que deve prestar contas (RB 2, 1 e também RB 64, 7-8. 20-21). Deve cuidar do conjunto do mosteiro no que toca à vida material e à vida espiritual, com atenção particular a cada um, tentando adaptar-se a cada um. O abade deve cuidar das pessoas, antes de cuidar dos bens. Se tem de gerir bens, é unicamente porque estão a serviço de pessoas, no processo desse ser de novo gerado por Deus. Há, portanto, a primazia da pessoa sobre os bens.

Para que não se afaste da sua missão espiritual, o abade delega seu poder ao celeireiro, e aos outros oficiais, colaborando com eles. Além de ser um administrador, deve transmitir a Palavra de Deus, atualizando-a. É pai, em referência a Cristo, deve velar sobre seus monges, amando-os como Deus ama a seus filhos, e cuidando para que tenham pão. Em última análise é também um pastor, um médico. É chamado a ter compaixão, e a cuidar, a cobrir de cuidados seus monges, sobretudo os que estão em dificuldade. Que os responsáveis das comunidades aprendam ‘a perder o sono’, para merecerem ser pais e mães. Não há nenhum mérito em ser o único perfeito numa comunidade de delinquentes…é juntos que devemos chegar à meta (RB 72)

A espiritualidade do celeireiro deveria seguir o perfil e a missão do abade, devendo agir como um pai, imitando seu abade, gerando filhos para Deus.

Segundo os dados da Regra, a identidade e a missão do abade que se repercutem na espiritualidade do celeireiro, é a da encarnação em relação à justiça e à paz. Esta espiritualidade exige que :

– O celeireiro seja marcado pelo temor de Deus, virtuoso, habitado pela Palavra de Deus para ser transfigurado por ela; encontrando nela consolação e força.

– Que seja obediente, submisso, dócil, atento (cf. RB 31, 4)

– Que seja caridoso, compassivo, tenha discernimento, para privilegiar os fracos, porque convicto que os bens colocados à disposição do homem deveriam ser, em primeiro lugar, postos a serviço dos fracos. É por isso uma espiritualidade de diaconia, de serviço.

– Que tenha o sentido da responsabilidade pelas pessoas e pelos bens, crescendo na liberdade diante das coisas do mundo, mas também na confiança na Providência.

– Que seja humilde, abrindo-se à colaboração, com a consciência que é um servo inútil.

– Que seja honesto.

No fundo, o celeireiro, como o abade, é convidado a viver uma espiritualidade da cruz. O celeireiro é aquele que se ocupa do temporal para a salvação das almas. De fato, o abade e o celeireiro devem colaborar bem, na confiança, na fé, na paz e na harmonia.'

[1] Relato da intervenção do P. Simon Madeko, prior do Mosteiro de Mambré, em Kinshasa (RDC), na sessão da Associação MAC, em julho 2021

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/122