Por Eliana Maria
(Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Beneditinos de São Bento, Salvador, Bahia (Brasil). © AIM
Mosteiro de São Bento de Olinda, PE
‘A vida liturgica emerge como a índole que, em certo sentido, distingue
a vida monástica beneditina. Essa perspectiva norteou o Congresso internacional
dos Abade e Priores Conventuais da Confederação Beneditina, sediado em Santo
Anselmo, Roma, dos dias 19 de setembro a 04 de outubro de 1966, sob a direção
do Abade Primaz Benno Walter Gut (1897-1970). O argumento central foi a reforma
do Breviário Monástico. A acalorada discussão girava em torno dos temas da
pluralidade ou uniformidade, do latim ou da língua vulgar, do canto ‘moderno’
ou do Canto Gregoriano, e, sobretudo para o Saltério, do aplicar o conceito da
quantidade ou da qualidade. Era em jogo a procura do equilíbrio entre a letra e
o espírito da Regra. O Congresso concluiu-se com a formação de uma comissão – De
re liturgica – para estudar a forma mais adequada de responder e harmonizar
esses impasses e acalmar os ânimos. No ano sucessivo se deu a segunda parte do
Congresso (de 18 a 30 de setembro), como previsto. Votou-se nas propostas
apresentadas pela comissão; elegeu-se o novo Abade Primaz, Dom Rembert George
Weakland, formou-se uma nova comissão para prosseguir com os estudos, e no dia
15 de outubro do mesmo ano o Consilium ad exsequendam Constitutionem de
Sacra Liturgia aprovou o uso ad experimentum do ordo provisório do
Saltério, apresentado no Congresso pelo Abade Dom Emmanuel Maria Heufelder
(1898-1982), Abade de Niederalteich, Alemanha.
No dia 10 de fevereiro de 1977, a Sagrada Congregação para os
Sacramentos e o Culto Divino aprovou o documento litúrgico preparado pela
comissão e apresentado para a aprovação pelo Abade Primaz no dia 11 de novembro
de 1976, o Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae [1]. Para a distribuição do Saltério o Thesaurus apresenta
quatro esquemas diferentes que levam os nomes dos seus autores : esquema A’ (da
Regra de São Bento); B, organizado por um monge da Abadia suíça de Dissentis,
Notker Füglister (esquema ‘Füglister’); C, chamado de ‘Scheyern’ por causa da
Abadia homônima alemão onde foi idealizado e D, estruturado pelo trapista
Chrysogonus Waddell, da Abadia de Gethsemani, Kentucky, Estados Unidos [2].
O processo de
atuação em terras brasileiras
1. A
constituição da commissio
Para atuar a reforma do Breviário Monástico em terras brasileiras, o
Capítulo Geral da Congregação Beneditina do Brasil, sob a direção de Dom
Basílio Penido, Abade do Mosteiro de São Bento em Olinda desde 1964 e Abade
Presidente da Congregação de 1972 a 1996, instituiu uma comissão de monges e
monjas sob a direção da Madre Maria Teresa Amoroso Lima (1929-2011), então
Abadessa da Abadia de Santa Maria, em São Paulo. Compunha a comissão, além da
supracitada Abadessa, Dom Timóteo Amoroso Anastácio (1910-1994), Abade do
Mosteiro de São Sebastião, na Bahia; Dom Marcos de Araújo Barbosa, poeta e
tradutor, da Abadia de Nossa Senhora do Monserrate, no Rio de Janeiro; Ir.
Francisca Biolchini (1920-2012), da Abadia de Santa Maria em São Paulo; e duas
monjas do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, em Belo Horizonte, a Ir. Maria
Teixeira de Lima (1913-2012) e a Madre Martinha Marques Mello (1925-2020).
Infelizmente, nos arquivos da Abadia de Santa Maria, não se encontram registros
documentais dos trabalhos da comissão.
2. O método
de trabalho da commissio e o resultado
A ‘renovação do Breviário Monástico’ consistia na tradução dos textos do
então recentemente publicado Thesaurus. A comissão passou a reunir-se
regularmente na Abadia de Santa Maria, em São Paulo. Segundo o testemunho da
atual Abadessa de Santa Maria, Madre Escolástica Ottoni de Mattos, Dom Abade
Timóteo Amoroso Anastácio, foi encarregado da tradução dos textos da Sagrada
Escritura, procurando uma linguagem mais poética, enquanto os hinos eram
traduzidos pela comissão, competindo a Dom Marcos de Araújo Barbosa os ajustes
de métrica e rima da poesia. Os livros da Liturgia das Horas Segundo o Rito
Monástico da Congregação Beneditina do Brasil foram publicados em quatro
volumes. O primeiro veio à luz no ano de 1981, destinado ao ciclo das
manifestações, Advento, Natal e Epifania, incluindo o Próprio dos Santos desse
ciclo litúrgico [3]. O segundo
volume, destinado às celebrações do Tempo Comum, incluindo as festas do Senhor :
SS. Trindade, Corpus Christi, Sagrado Coração de Jesus e Cristo Rei,
apareceu no ano seguinte, 1982 [4].
No início da Quaresma daquele mesmo ano de 1982 veio à luz o terceiro volume
com os formulários para o ciclo da glorificação, Quaresma, Páscoa e Pentecostes
[5]. O último volume, o Santoral,
traz a data de apresentação da Festa de Santa Rosa de Lima, 23 de agosto do
mesmo ano [6].
Os volumes são apresentados pela Madre Maria Teresa como experiência e
publicação provisória, em vista de uma publicação completa e definitiva três
anos mais tarde. Em todo o caso, apresentam-se escassos de oficialidade : não
constam de um nihil obstat e apresentação da parte do Abade Presidente
da Congregação e não têm nenhuma forma de ‘Praenotanda’.
3.
Características gerais dos volumes
Em linhas gerais, os volumes, dos quais nunca veio à luz a prometida
publicação completa e definitiva, têm a mesma apresentação assinada pela Madre
Maria Teresa. Algumas linhas mestras foram observadas para essa publicação ‘provisória’,
das quais apontamos as mais universais : Para manter reduzidas os números das
páginas dos fascículos, não se incluiu a totalidade dos textos do Thesaurus,
escolhendo apenas os esquemas A’, da Regra de São Bento, e o esquema B (esquema
‘Füglister’) de distribuição do Saltério. Em muitos casos, em vista do canto,
os textos das antífonas do Thesaurus foram substituídos pelos textos do Psalterium
Monasticum, de então recente edição pelos monges de Solesmes [7]. Pelo mesmo motivo incluíram-se
somente as memorias obrigatórias. No fascículo do Tempo Comum foram incluídas
as antífonas do Magnificat e do Benedictus com respectivos
responsórios para as semanas pares (II) e ímpares (I). Para o final das
Vigílias deu-se a possibilidade de usar o esquema da Regra de São Bento,
presente também no Psalterium Monasticum solesmense. Os responsórios das
Vigílias, tomados da Liturgia das Horas Romana, apareceram como apêndice, na
espera da publicação do Lecionário Beneditino.
4. Questões
ligadas ao canto
Com a tradução dos novos livros da Liturgia das Horas Monástica surgiu o
problema da adequação do canto, especialmente das antífonas que tinham passado
por mudanças dos mais diversos gêneros (mudança de lugar e de ordem,
substituição, desaparecimento etc.), sem contar o número de novos textos dos responsórios
breves e dos hinos, além das várias festas novas. Para responder a essa lacuna,
a Madre Maria Teresa apresentou ‘pela comissão’ o Antiphonale Monasticum pro
Diurnis Horis (Ad instar manuscripti) [8]. O Antiphonale oferece ‘melodias gregorianas para
todos os textos, tiradas, em primeiro lugar, das fontes indicadas no
‘Thesaurus’, e também do ‘Psalterium Monasticum’ de Solesmes’. Para estar de
acordo com o Psalterium solesmense substituíram-se antífonas indicadas
no Thesaurus por outras com sentido similar e já musicadas. Alguns
textos foram adaptados a melodias já existentes e copiou-se muitos responsórios
breves publicados pelas Beneditinas do SS. Sacramento de Alatri, Itália.
O trabalho de confecção do Antiphonale pode ser dividido
praticamente em três etapas : a primeira corresponde ao período da coleta de
livros ‘antigos e novos’ entre as comunidades; a segunda, a experimentação que
algumas comunidades faziam à medida que as folhas (folhetos) eram impressas e,
finalmente, a reunião de todo o material num volume que supera o número de 900
páginas. O critério fundamental era que tudo se aproximasse ao máximo da
Liturgia das Horas Monástica que era já em processo de uso nas comunidades. O Antiphonale,
impresso de forma muito artesanal, apresenta duas datas. Na primeira página
encontra-se a data de 24 de novembro de 1981, onde a Madre Maria Teresa
assinala o início das comemorações do 700 aniversário do início do Louvor
Divino na Abadia de Santa Maria. Duas páginas depois, no fim da apresentação
geral do volume, aparece a data da Festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de
setembro) de 1982.
Conclusão e
questões abertas
Passadas 4 décadas, a Congregação Beneditina do Brasil nunca procurou
levar a cabo o projeto de uma edição definitiva dos seus livros corais. Uma
série de inciativas foram tomadas isoladamente, fazendo com que cada comunidade
se organizasse de acordo com as suas próprias forças para manter, dentro do
possível, uma celebração coral digna.
É bem verdade que somente em 2018 apareceu a tradução oficial da Bíblia,
obra da Conferência episcopal (CNBB), de onde se deveriam extrair os textos
para o uso litúrgico, cujo Saltério não se adequa ao canto, especialmente
coral, e esse ano o Missal Romano, com a tradução dos textos eucológicos.
Com relação ao canto, convém salientar que nem todas as comunidades,
pelas mais variadas razões, fazem mais um uso abundante do latim, e
consequentemente do Canto Gregoriano, nas suas celebrações, tanto da Missa
quanto do Ofício, o que, se de um lado lamenta-se a perda de um tesouro
multissecular, de outro alegra-se, porque tal ‘acidente de percurso’ suscitou o
desenvolvimento de um repertório justo à atual situação, embora correndo-se
sempre o risco de melodias de gosto duvidoso.
O grande desafio de uma reedição dos livros corais para a Congregação
Beneditina do Brasil, o que se faz absolutamente necessário, é a manutenção do
equilíbrio em manter alta a qualidade da oração coral em todos os seus
elementos, sem sufocar a criatividade operosa de cada comunidade, masculina e
feminina, levando em consideração as suas mais variadas características, e o
fato de estarem espalhadas num território multicultural e de dimensões
continentais, chamado Brasil.’
[1] Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae, éd. Secretariatus
Abbatis Primatis, Tipografia Leberit, Rome, 1977.
[2] Cf. R. M. Leikam, « El Thesaurus
liturgiae horarum monasticae de 1977 y la renovación del opus Dei
benedictino », Cuadernos Monásticos 86
(1988), 299-330.
[3] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico I: Tempo do
Advento, Natal e Epifania, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen
Christi, Rio de Janeiro, 1981.
[4] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico II: Tempo
Comum, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio
de Janeiro, 1982.
[5] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico III: Tempo
da Quaresma, Páscoa e Tempo Pascal, éd. Congregação Beneditina do
Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.
[6] Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico IV: Próprio
e Comum dos Santos, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi,
Rio de Janeiro, 1982.
[7] Psalterium Monasticum cum Canticis Novi & Veteris
Testamenti. Psalterium Monasticum iuxta regulam S.P.N. Benedicti et alia
schemata Liturgiae Horarum Monasticae cum canto gregoriano cura et studio
monacorum solesmensium ; abbaye Saint-Pierre, Solesmes,
1981.
[8] Antiphonale
Monasticum pro Diurnis Horis (Ad instar manuscripti), ed. Abadia de Santa Maria, São Paulo 1981.
Fonte : *Artigo na íntegra