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domingo, 9 de março de 2025

A atuação da reforma da Liturgia das Horas Monástica na Congregação Beneditina do Brasil

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Beneditinos de São Bento, Salvador, Bahia (Brasil). © AIM

 *Artigo de Dom Jerônimo Pereira, OSB

Mosteiro de São Bento de Olinda, PE


‘A vida liturgica emerge como a índole que, em certo sentido, distingue a vida monástica beneditina. Essa perspectiva norteou o Congresso internacional dos Abade e Priores Conventuais da Confederação Beneditina, sediado em Santo Anselmo, Roma, dos dias 19 de setembro a 04 de outubro de 1966, sob a direção do Abade Primaz Benno Walter Gut (1897-1970). O argumento central foi a reforma do Breviário Monástico. A acalorada discussão girava em torno dos temas da pluralidade ou uniformidade, do latim ou da língua vulgar, do canto ‘moderno’ ou do Canto Gregoriano, e, sobretudo para o Saltério, do aplicar o conceito da quantidade ou da qualidade. Era em jogo a procura do equilíbrio entre a letra e o espírito da Regra. O Congresso concluiu-se com a formação de uma comissão – De re liturgica – para estudar a forma mais adequada de responder e harmonizar esses impasses e acalmar os ânimos. No ano sucessivo se deu a segunda parte do Congresso (de 18 a 30 de setembro), como previsto. Votou-se nas propostas apresentadas pela comissão; elegeu-se o novo Abade Primaz, Dom Rembert George Weakland, formou-se uma nova comissão para prosseguir com os estudos, e no dia 15 de outubro do mesmo ano o Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia aprovou o uso ad experimentum do ordo provisório do Saltério, apresentado no Congresso pelo Abade Dom Emmanuel Maria Heufelder (1898-1982), Abade de Niederalteich, Alemanha.

No dia 10 de fevereiro de 1977, a Sagrada Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino aprovou o documento litúrgico preparado pela comissão e apresentado para a aprovação pelo Abade Primaz no dia 11 de novembro de 1976, o Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae [1]. Para a distribuição do Saltério o Thesaurus apresenta quatro esquemas diferentes que levam os nomes dos seus autores : esquema A’ (da Regra de São Bento); B, organizado por um monge da Abadia suíça de Dissentis, Notker Füglister (esquema ‘Füglister’); C, chamado de ‘Scheyern’ por causa da Abadia homônima alemão onde foi idealizado e D, estruturado pelo trapista Chrysogonus Waddell, da Abadia de Gethsemani, Kentucky, Estados Unidos [2].

O processo de atuação em terras brasileiras

1. A constituição da commissio

Para atuar a reforma do Breviário Monástico em terras brasileiras, o Capítulo Geral da Congregação Beneditina do Brasil, sob a direção de Dom Basílio Penido, Abade do Mosteiro de São Bento em Olinda desde 1964 e Abade Presidente da Congregação de 1972 a 1996, instituiu uma comissão de monges e monjas sob a direção da Madre Maria Teresa Amoroso Lima (1929-2011), então Abadessa da Abadia de Santa Maria, em São Paulo. Compunha a comissão, além da supracitada Abadessa, Dom Timóteo Amoroso Anastácio (1910-1994), Abade do Mosteiro de São Sebastião, na Bahia; Dom Marcos de Araújo Barbosa, poeta e tradutor, da Abadia de Nossa Senhora do Monserrate, no Rio de Janeiro; Ir. Francisca Biolchini (1920-2012), da Abadia de Santa Maria em São Paulo; e duas monjas do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, em Belo Horizonte, a Ir. Maria Teixeira de Lima (1913-2012) e a Madre Martinha Marques Mello (1925-2020). Infelizmente, nos arquivos da Abadia de Santa Maria, não se encontram registros documentais dos trabalhos da comissão.

2. O método de trabalho da commissio e o resultado

A ‘renovação do Breviário Monástico’ consistia na tradução dos textos do então recentemente publicado Thesaurus. A comissão passou a reunir-se regularmente na Abadia de Santa Maria, em São Paulo. Segundo o testemunho da atual Abadessa de Santa Maria, Madre Escolástica Ottoni de Mattos, Dom Abade Timóteo Amoroso Anastácio, foi encarregado da tradução dos textos da Sagrada Escritura, procurando uma linguagem mais poética, enquanto os hinos eram traduzidos pela comissão, competindo a Dom Marcos de Araújo Barbosa os ajustes de métrica e rima da poesia. Os livros da Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico da Congregação Beneditina do Brasil foram publicados em quatro volumes. O primeiro veio à luz no ano de 1981, destinado ao ciclo das manifestações, Advento, Natal e Epifania, incluindo o Próprio dos Santos desse ciclo litúrgico [3]. O segundo volume, destinado às celebrações do Tempo Comum, incluindo as festas do Senhor : SS. Trindade, Corpus Christi, Sagrado Coração de Jesus e Cristo Rei, apareceu no ano seguinte, 1982 [4]. No início da Quaresma daquele mesmo ano de 1982 veio à luz o terceiro volume com os formulários para o ciclo da glorificação, Quaresma, Páscoa e Pentecostes [5]. O último volume, o Santoral, traz a data de apresentação da Festa de Santa Rosa de Lima, 23 de agosto do mesmo ano [6].

Os volumes são apresentados pela Madre Maria Teresa como experiência e publicação provisória, em vista de uma publicação completa e definitiva três anos mais tarde. Em todo o caso, apresentam-se escassos de oficialidade : não constam de um nihil obstat e apresentação da parte do Abade Presidente da Congregação e não têm nenhuma forma de ‘Praenotanda’.

3. Características gerais dos volumes

Em linhas gerais, os volumes, dos quais nunca veio à luz a prometida publicação completa e definitiva, têm a mesma apresentação assinada pela Madre Maria Teresa. Algumas linhas mestras foram observadas para essa publicação ‘provisória’, das quais apontamos as mais universais : Para manter reduzidas os números das páginas dos fascículos, não se incluiu a totalidade dos textos do Thesaurus, escolhendo apenas os esquemas A’, da Regra de São Bento, e o esquema B (esquema ‘Füglister’) de distribuição do Saltério. Em muitos casos, em vista do canto, os textos das antífonas do Thesaurus foram substituídos pelos textos do Psalterium Monasticum, de então recente edição pelos monges de Solesmes [7]. Pelo mesmo motivo incluíram-se somente as memorias obrigatórias. No fascículo do Tempo Comum foram incluídas as antífonas do Magnificat e do Benedictus com respectivos responsórios para as semanas pares (II) e ímpares (I). Para o final das Vigílias deu-se a possibilidade de usar o esquema da Regra de São Bento, presente também no Psalterium Monasticum solesmense. Os responsórios das Vigílias, tomados da Liturgia das Horas Romana, apareceram como apêndice, na espera da publicação do Lecionário Beneditino.

4. Questões ligadas ao canto

Com a tradução dos novos livros da Liturgia das Horas Monástica surgiu o problema da adequação do canto, especialmente das antífonas que tinham passado por mudanças dos mais diversos gêneros (mudança de lugar e de ordem, substituição, desaparecimento etc.), sem contar o número de novos textos dos responsórios breves e dos hinos, além das várias festas novas. Para responder a essa lacuna, a Madre Maria Teresa apresentou ‘pela comissão’ o Antiphonale Monasticum pro Diurnis Horis (Ad instar manuscripti) [8]. O Antiphonale oferece ‘melodias gregorianas para todos os textos, tiradas, em primeiro lugar, das fontes indicadas no ‘Thesaurus’, e também do ‘Psalterium Monasticum’ de Solesmes’. Para estar de acordo com o Psalterium solesmense substituíram-se antífonas indicadas no Thesaurus por outras com sentido similar e já musicadas. Alguns textos foram adaptados a melodias já existentes e copiou-se muitos responsórios breves publicados pelas Beneditinas do SS. Sacramento de Alatri, Itália.

O trabalho de confecção do Antiphonale pode ser dividido praticamente em três etapas : a primeira corresponde ao período da coleta de livros ‘antigos e novos’ entre as comunidades; a segunda, a experimentação que algumas comunidades faziam à medida que as folhas (folhetos) eram impressas e, finalmente, a reunião de todo o material num volume que supera o número de 900 páginas. O critério fundamental era que tudo se aproximasse ao máximo da Liturgia das Horas Monástica que era já em processo de uso nas comunidades. O Antiphonale, impresso de forma muito artesanal, apresenta duas datas. Na primeira página encontra-se a data de 24 de novembro de 1981, onde a Madre Maria Teresa assinala o início das comemorações do 700 aniversário do início do Louvor Divino na Abadia de Santa Maria. Duas páginas depois, no fim da apresentação geral do volume, aparece a data da Festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro) de 1982.

Conclusão e questões abertas

Passadas 4 décadas, a Congregação Beneditina do Brasil nunca procurou levar a cabo o projeto de uma edição definitiva dos seus livros corais. Uma série de inciativas foram tomadas isoladamente, fazendo com que cada comunidade se organizasse de acordo com as suas próprias forças para manter, dentro do possível, uma celebração coral digna.

É bem verdade que somente em 2018 apareceu a tradução oficial da Bíblia, obra da Conferência episcopal (CNBB), de onde se deveriam extrair os textos para o uso litúrgico, cujo Saltério não se adequa ao canto, especialmente coral, e esse ano o Missal Romano, com a tradução dos textos eucológicos.

Com relação ao canto, convém salientar que nem todas as comunidades, pelas mais variadas razões, fazem mais um uso abundante do latim, e consequentemente do Canto Gregoriano, nas suas celebrações, tanto da Missa quanto do Ofício, o que, se de um lado lamenta-se a perda de um tesouro multissecular, de outro alegra-se, porque tal ‘acidente de percurso’ suscitou o desenvolvimento de um repertório justo à atual situação, embora correndo-se sempre o risco de melodias de gosto duvidoso.

O grande desafio de uma reedição dos livros corais para a Congregação Beneditina do Brasil, o que se faz absolutamente necessário, é a manutenção do equilíbrio em manter alta a qualidade da oração coral em todos os seus elementos, sem sufocar a criatividade operosa de cada comunidade, masculina e feminina, levando em consideração as suas mais variadas características, e o fato de estarem espalhadas num território multicultural e de dimensões continentais, chamado Brasil.’

[1]   Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae, éd. Secretariatus Abbatis Primatis, Tipografia Leberit, Rome, 1977.

[2]   Cf. R. M. Leikam, «El Thesaurus liturgiae horarum monasticae de 1977 y la renovación del opus Dei benedictino», Cuadernos Monásticos 86 (1988), 299-330.

[3]   Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico I: Tempo do Advento, Natal e Epifania, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1981.

[4]   Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico II: Tempo Comum, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.

[5]   Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico III: Tempo da Quaresma, Páscoa e Tempo Pascal, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.

[6]   Liturgia das Horas Segundo o Rito Monástico IV: Próprio e Comum dos Santos, éd. Congregação Beneditina do Brasil, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1982.

[7]   Psalterium Monasticum cum Canticis Novi & Veteris Testamenti. Psalterium Monasticum iuxta regulam S.P.N. Benedicti et alia schemata Liturgiae Horarum Monasticae cum canto gregoriano cura et studio monacorum solesmensium; abbaye Saint-Pierre, Solesmes, 1981.

[8]   Antiphonale Monasticum pro Diurnis Horis (Ad instar manuscripti), ed. Abadia de Santa Maria, São Paulo 1981.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/125

sexta-feira, 7 de março de 2025

Liturgia monástica: O grande “hoje” de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

Presidente da AIM (Aliança Inter-Monastérios)

 

‘As poucas reflexões propostas aqui pretendem ser um convite para escolher viver hoje como o dia mais importante e real que nos é dado. Hoje, como todos os dias, tudo acontece pela força e verdade dos seres e das coisas, desde que nossas vidas estejam dispostas a acolhê-los. Como se sabe, a liturgia destaca esse ‘hodie’, esse presente que nos faz entrar no dia sem fim de Deus.

Essa proposta é feita pensando em todos aqueles que, hoje, como todos os dias desde a criação dos seres humanos, têm sede de ser, de viver, de compreender, de compartilhar, de amar, de existir intensamente em uma humanidade que clama por sua sede e desejo, sem realmente saber quais podem ser o objeto e o modo.

Primeiro, colocaremos a questão da escuta diária : ‘Hoje, se ouvirdes a minha voz’; depois a do alimento diário : ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’, e finalmente nos voltaremos para o Dia de Deus, o dia além dos dias, o dia prometido e tão desejado.

 ‘Hoje, se ouvirdes a minha voz, não permitais que se endureçam vossos corações’ (Sl 94)

Este versículo do salmo é citado no início da Regra de São Bento :

‘Levantemo-nos então finalmente, pois a Escritura nos desperta dizendo : ‘Já é hora de nos levantarmos do sono’. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias : ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações’, (Sl 94, 8). E em outro lugar : ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas’ (Ap 2, 7). E o que ele diz? ‘Vinde, meus filhos, ouvi-me; eu vos ensinarei o temor do Senhor’ (Sl 33, 12). ‘Correi enquanto tendes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos apanhem’ (Jo 12, 35).’ (Pról. 8-13).

O salmo 94 é ou era cantado todos os dias no início do Ofício de Vigílias na liturgia beneditina : é por excelência o salmo invitatório, o salmo que convida à oração com suas diferentes partes.

Primeiramente, um apelo geral ao louvor : ‘Vinde, exultemos de alegria pelo Senhor, aclamemos o Rochedo que nos salva! Avancemos para Ele com ações de graças! A Ele, nossos cânticos e aclamações!’ [1]. Em seguida, uma ação de graças pela obra da criação : ‘Ele é o grande Deus, o Senhor, o Rei, maior do que todos os deuses! Em Sua mão, as profundezas da terra; também a Ele pertencem os cumes das montanhas.  A Ele o mar, pois foi Ele que o fez, e os continentes que Suas mãos modelaram.’ Antes mesmo de ser reconhecido como o Criador de todas as coisas, o Senhor é confessado como o Deus único, o Deus grande acima de todas as grandezas, de todas as alturas. É por isso que Ele pode segurar em Sua mão todos os elementos criados, das profundezas da terra aos cumes das montanhas, em toda a extensão dos mares e continentes.

Depois, uma oração agradecida pela obra da salvação em relação direta com a caminhada no deserto e as maravilhas ali realizadas pela mão do Senhor. Esta oração é acompanhada de um convite ao arrependimento, garantia da verdadeira ação de graças : ‘Vinde, inclinemo-nos, prostremo-nos! Adoremos o Senhor que nos fez! Sim, Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz, o rebanho guiado por Sua mão... Não endureçais vossos corações como no deserto, como no dia da revolta e do desafio, quando vossos pais me desafiaram e provocaram, apesar de terem visto o que fiz!’ Esta ação de graças pela redenção e este apelo ao arrependimento estão ligados a uma nova confissão de fé : ‘Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz...’.

Por fim, o salmo termina com uma evocação da promessa feita por Deus ao homem de compartilhar Sua vida em Seu repouso eterno, no último sábado, se o coração humano não se desviar, com uma nova referência ao pecado de Israel no deserto : ‘Quarenta anos, suportei essa geração; eu disse : ‘É um povo de coração desviado; eles não querem saber dos meus caminhos’. Por isso, jurei na minha ira : ‘Jamais entrarão na terra do meu repouso!’’.

No meio desse conjunto, surge o versículo citado por São Bento : ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações!’. Portanto, neste salmo, há a dimensão da memória, a da promessa e a que dá sentido a ambas, a da atualidade cotidiana. Esta é uma das chaves da espiritualidade cristã. São Bento, seguindo a tradição monástica, é um comentarista particularmente notável.

Do que se trata? Trata-se de viver cada dia acordado. Cada manhã e cada instante do dia são um chamado feito pela voz de Deus. Este chamado só pode ser percebido por aqueles que estão atentos a ele. Aqueles que abrem os olhos e os ouvidos de seus corações para ver e ouvir ‘o que o olho não viu, o ouvido não ouviu, o que Deus preparou para aqueles que O amam’ (1 Cor 2, 9 citado por RB 4, 77). O que pode nos tornar infelizes nesta vida é estar aprisionado na ilusão dos sentidos externos. Se vejo apenas com meus olhos físicos, se ouço apenas com os ouvidos do meu corpo, ainda não vi nem ouvi nada que possa me permitir saborear a verdadeira vida.

A cada dia, a cada segundo, através dos seres e das coisas criadas, nos é dada a totalidade da existência. No entanto, muitas vezes, estamos dormindo e só sonhamos. É urgente, constantemente urgente, acordar, levantar, ressuscitar e começar a ouvir : ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações’. Este é um dos propósitos essenciais do Evangelho. Para poder ouvir, o coração precisa ser tocado, convertido, circuncidado. É preciso reler a este respeito o discurso da montanha no início do Evangelho de São Mateus. Desde o primeiro versículo do Prólogo, São Bento nos convida : ‘Escuta, inclina o ouvido do seu coração’ (Prol. 1).

Ao comentar o versículo citado do Salmo 94, a epístola aos Hebreus atualiza de maneira especialmente forte nossa relação com a Palavra de Deus, que o homem recebe para colocar em prática, a fim de poder saborear um dia o descanso de Deus : ‘Viva é a Palavra de Deus, eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, penetra até o ponto de divisão entre a alma e o espírito, entre as articulações e a medula, e pode julgar os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura invisível diante dela, mas tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas’ (Hb 4, 12-13). Nossa vida está totalmente orientada para essa perspectiva do hoje da Palavra que ocorre em nossas vidas humanas para que possamos dizer com Cristo : ‘Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos esta passagem da Escritura’ (Lc 4, 21)?

 ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’ (Mt 6, 11; Lc 11, 3)

Não basta inclinar o ouvido do coração e não o endurecer para ouvir o chamado do Senhor por meio de Sua Palavra diária; é também necessário aceitar receber o que o Senhor providencia para nós diariamente, de acordo com Sua vontade.

É bom aqui fazer referência à experiência de Israel no deserto. O Senhor providencia gratuitamente para a fome de Seu povo, enviando durante a noite ‘uma camada de orvalho ao redor do acampamento’. Essa camada de orvalho, uma vez evaporada pela manhã, revela na superfície do solo algo pequeno e granuloso. ‘Este é o pão que o Senhor vos deu para comer. Eis o que o Senhor ordenou : Cada um recolha conforme o que pode comer’. E Moisés lhes disse : ‘Que ninguém guarde nada para o dia seguinte’; ‘Eles recolhiam a cada manhã, cada um conforme o que podia comer, e quando o sol esquentava, aquilo derretia’ (cf. Ex 16, 13-21). O alimento diário do maná descido do céu é, portanto, um elemento-chave da espiritualidade do hoje proposto por Deus ao Seu povo.

O Evangelho de São Mateus faz um belo comentário sobre este dom do céu :

‘Não vos inquieteis pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. [...] Portanto, não vos inquieteis, dizendo : o que vamos comer? O que vamos beber? O que vamos vestir? [...] Vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso. Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e tudo isso vos será dado por acréscimo. Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados. A cada dia basta o seu próprio mal’ (Mt 6, 25-34).

Será que devemos levar esses textos ao pé da letra? Não, isso não é suficiente, é necessário interpretá-los. Mas também é indispensável saber viver essa entrega diária com o abandono de uma fé sempre a ser renovada. Está claro que nossa busca raramente é, em primeiro lugar, pelo Reino de Deus, e é isso que apresenta um problema. Se, como os israelitas no deserto, quisermos fazer provisões de maná, se quisermos acumular o dom de Deus, se não aceitarmos receber diariamente apenas os dons que nos são necessários, não poderemos realizar a vida de Deus neste mundo.

O discurso sobre o Pão da Vida apresenta o cumprimento desse sinal do maná. Cristo nos revela que Ele mesmo é o Pão da Vida. ‘Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram; este é o pão que desce do céu, para que todo o que dele comer não pereça. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém dele comer, viverá eternamente’ (Jo 6, 49-51).

Nosso único verdadeiro alimento cotidiano é Cristo, dado para que o mundo tenha vida. Recebemos isso em Sua palavra ruminada e na oração, no pão da Eucaristia e nos sacramentos, bem como na comunhão fraterna.

Assim, ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’ só pode ser compreendido plenamente nessa relação diariamente renovada com Cristo entregue. É assim que podemos buscar o Reino e Sua justiça, é assim que podemos nos contentar com o alimento cotidiano.

Toda a vida de Cristo é assim, como relata São Lucas à sua maneira : ‘Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir’ (4, 21); após a cura do paralítico, as testemunhas exclamam : ‘Hoje, vimos prodígios’ (5, 26). ‘Eis que expulso demônios e realizo curas hoje e amanhã, e no terceiro dia serei consumado! Mas hoje, amanhã e no dia seguinte, devo seguir meu caminho, pois não é conveniente que um profeta pereça fora de Jerusalém’ (13, 32-33). ‘Zaqueu, desce depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa... Hoje, a salvação chegou nesta casa...’ (19, 5-9).

Assim, é possível nos interrogar a respeito de nosso alimento diário. Estamos realmente recebendo Cristo em primeiro lugar para cumprir a vontade de Deus, ou estamos nos preocupando com um acúmulo completamente supérfluo que não podemos levar para o túmulo? Nossa vida está sob o sinal primário da Eucaristia, com todas as suas dimensões espiritual, pessoal, comunitária e social, ou é algo particularmente vão? Aceitar receber o alimento cotidiano do Cristo é aceitar que nossos planos imediatos sejam desviados e vivê-los alegremente seguindo Jesus que sobe a Jerusalém em direção ao Seu Êxodo.

São Bento prescreve ao abade lembrar este ensinamento do Evangelho, para que não esqueça ‘não trate com mais solicitude das coisas transitórias, terrenas e caducas, negligenciando ou tendo em pouco a salvação das almas que lhe foram confiadas, mas pense sempre que recebeu almas a dirigir, das quais deverá também prestar contas. E para que não venha, porventura, a alegar falta de recursos, lembrar-se-á do que está escrito : ‘Buscai primeiro reino de Deus e sua justiça, e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo’’ (RB 2, 33-35).

O Dia do Senhor

Mas o hoje real na vida dos crentes é o grande hoje de Deus que se estende por toda a história e muito além. De fato, para o Senhor, ‘mil anos são como um dia’ (Sl 89), e ‘mais vale um dia nos átrios do Senhor que mil em minha morada’ (Sl 83, 11). Este hoje de Deus é o da Sua vinda permanente. O Senhor não cessa de vir, Ele visita a Sua criação, dirige-lhe a palavra, encarna-se nela, promete a Sua vinda gloriosa quando Cristo for tudo em todos.

Assim, a Revelação bíblica está pontuada pela proclamação deste hoje de Deus que se manifesta constantemente na vida dos homens : ‘Houve uma tarde, houve uma manhã, o primeiro dia’ (Gn 1,5); ‘Este é o dia que o Senhor fez’ (Sl 117, 24); ‘Naquele dia...’incessantemente proclamado nos profetas; esta expressão não visa necessariamente uma projeção no futuro, é um anúncio do dia de hoje, onde cada um é chamado a escolher entre a vida e a morte (cf. Deuteronômio). O Evangelho de São Lucas abre-se com o anúncio da Boa Nova : ‘Hoje, na cidade de Davi, nasceu-vos um Salvador’ (Lc 2, 11), e conclui com a promessa : ‘Hoje estarás comigo no Paraíso’ (Lc 23, 43).

Mas o que expressa melhor este grande dia de Deus é o hoje da celebração litúrgica. Na liturgia latina, hodie ressoa como uma esperança extraordinária ao longo de todo o ano. O hodie mais famoso é o de Natal : ‘Hodie Christus natus est…’ – ‘Hoje, Cristo nasceu para nós; hoje, o Salvador apareceu; hoje os anjos cantam na terra, os arcanjos se alegram; hoje os justos exultam, dizendo : ‘Glória a Deus nas alturas’’ (antífona do Magnificat das II Vésperas de Natal). Essa antífona encontra sua preparação no ofício da Vigília de Natal, onde é anunciado o hoje da revelação : ‘Hoje sabereis que o Senhor virá, e amanhã vereis a sua glória’. Podemos adicionar a essa antífona de Natal a da Epifania : ‘Hodie caelesti sponso’ – ‘Hoje, a Igreja se uniu ao seu Esposo celeste, pois Cristo a lavou de seus pecados no Jordão; os Magos correm com seus presentes para as núpcias reais, e os convivas se alegram com a água transformada em vinho’ (antífona do Benedictus das Laudes da Epifania). A antífona do Magnificat das II Vésperas  retoma esse tema : ‘Hoje, a estrela guiou os Magos até o presépio; hoje, a água se transformou em vinho no festim nupcial; hoje, no Jordão, Cristo quis ser batizado por João, para nos salvar’. No mesmo espírito, a antífona do Magnificat das II Vésperas de Pentecostes anuncia o Mistério atualizado neste dia : ‘Hoje se completaram os dias de Pentecostes; hoje, o Espírito Santo apareceu aos discípulos sob a forma de fogo e derramou sobre eles dons misteriosos; ele os enviou pelo mundo para pregar e testemunhar. Aqueles que crerem e forem batizados serão salvos’. No meio de tudo isso, há obviamente o domingo de Páscoa e o Tempo Pascal, onde ressoa o ‘Haec dies quam fecit Dominus’ tirado do Salmo 117, 24, o salmo pascal por excelência : ‘Este é o dia que o Senhor fez, exultemos e alegremo-nos nele’. Este dia é o Dia dos dias : o verdadeiro hoje da vida divina. Algumas antífonas marianas recentes (8 de dezembro, 11 de fevereiro) retomaram esse tema, e a liturgia beneditina o aplicou a São Bento, Santa Escolástica e São Mauro. O domingo é o grande Dia do Senhor, ao mesmo tempo o primeiro dia da criação, assim como da redenção na ressurreição de Cristo, e o oitavo dia, dia além dos dias, dia de Deus transfigurando todas as coisas, dia de sua vinda. O sacramental do domingo é verdadeiramente de grande importância para a expressão da vida de Cristo. Devemos desenvolver em cada uma de nossas vidas uma espiritualidade deste cotidiano que é o hoje de Deus. É o dia do nascimento, é o dia do começo, do recomeço, é o dia da ressurreição e é também o hoje da eternidade, o dia em que as aparências desaparecem para dar lugar à realidade, o dia do discernimento, que é outro nome para o julgamento.

Ao cantar os mistérios no hoje, a liturgia faz com que eles se realizem aqui como figura. Os fiéis tornam-se assim contemporâneos dos mistérios celebrados, que tomaram forma num dia do tempo e que estão sempre atuais. Este é o verdadeiro sentido do memorial cristão.

Um velho monge de nosso mosteiro, falecido há alguns anos, viveu a última parte de sua vida na convicção de que cada manhã era domingo, e como era sacristão, ele preparava diariamente tudo o que era necessário para a liturgia dominical. Claro, esse monge idoso tinha perdido um pouco o juízo, a menos que, na verdade, tenhamos sido nós que a perdemos, e ele, nessa candura, a tenha recuperado após cerca de setenta anos de vida monástica.

Um monge do deserto do Egito, no século IV, repetia a si mesmo toda manhã : ‘Hoje, eu começo’. Que este começo nunca deixe de habitar nossa ação : assim iremos, nas palavras de Gregório de Nissa, ‘de começo em começo, por começos que não têm fim’, e é assim que chegaremos ao dia sem declínio que Deus nos oferece já em figura.

Conclusão

Não basta estabelecer alguns princípios de análise; é igualmente necessário derivar deles consequências concretas.

Será que realmente ouviremos o chamado que ressoa em nossos ouvidos vindo de Deus? Teremos o coração suficientemente receptivo para entrar no hoje da Palavra? Estamos verdadeiramente nos perguntando se estamos mantendo contato com a Palavra divina de alguma forma (leituras bíblicas e espirituais, oração, meditação, ruminação, lectio divina)? Será que nosso hoje é o advento de Deus em nós e ao nosso redor, procurando e chamando Seu operário de maneiras sempre inesperadas? Faremos da nossa vida um companheirismo cotidiano? Como partilhar o Pão de Deus com irmãos e irmãs? Como receber o maná, que é o verdadeiro Pão da Vida? É evidente que, quando sabemos que metade dos habitantes do nosso planeta morre de fome, realmente nos perguntamos onde está a oração : ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’; há, então, impossibilidade de nos tornarmos discípulos na travessia do deserto deste mundo?

Finalmente, como nossa vida testemunha o Dia além dos dias? Sabemos relativizar os bens imediatos para nos entregarmos a Deus, com a coragem de um trabalho incansável, mas desprovido da preocupação de nos promovermos? O dia de Deus é sempre um dia de julgamento, onde somos desnudados para sermos verdadeiramente o que devemos ser : simples criaturas, simples servos que se reconhecem como filhos de Deus para a eternidade. Aí está o nosso tesouro, e ‘onde está o teu tesouro, aí também estará o teu coração’ (Mt 6, 21).

‘Este é o dia que o Senhor fez; alegremo-nos, passemo-lo na alegria’ (Sl 117, 24).’

[1] As citações dos salmos são provenientes da tradução do saltério pelos monges de Ligugé, publicada em ‘Le Psautier de Ligugé’, edições Saint-Léger, 2019.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/125

quarta-feira, 5 de março de 2025

Jesus, a palavra salvadora

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Nilson Cesar Boni, CMF

 

‘Para nós, cristãos, o centro de toda vocação é Jesus Cristo, a consumação do projeto salvífico do Pai que, por meio de sua morte e ressurreição, inseriu-nos no reino da luz eterna. Ele é a Palavra encarnada que nos deu a consciência da filiação divina, abrindo-nos os caminhos da esperança para sermos Evangelho vivo na sociedade onde impera o desamor. Jesus é o ungido pelo Espírito Santo, nascido de Maria, a fiel discípula, foi obediente ao Pai, sendo o verdadeiro pastor das almas, entregou livremente sua vida até as últimas consequências para nos salvar.

A fé cristã solenemente professada desde o Batismo é o encontro com a pessoa de Jesus Cristo e com o seu projeto misericordioso de edificar o Reino de Deus onde existe justiça, paz, compaixão, libertação, vida em plenitude. Ele é o Filho unigênito, querido e amado pelo Pai, portador da nova humanidade livre do pecado e herdeira da graça. As palavras de Cristo, bem claras no Evangelho, são caminho, verdade e vida, pois orientam os fiéis a configurar-se com Ele sendo sal e luz do mundo.

A vocação de Jesus é despertar no coração da humanidade o desejo por Deus para que ela aprenda a colocar seus dons a serviço do anúncio do Evangelho. Crer em Jesus supõe conhecê-lo na raiz e estar abertos ao transcendente, a uma inédita experiência de transfiguração interior capaz de tocar as almas com a delicadeza de quem foi resgatado pela ternura do Mestre.

Jesus é a fonte da água viva, o pão da unidade, o curador das feridas, o defensor dos pobres e oprimidos, a sabedoria sensível, a porta da glória, a paz justa. É o Senhor amigo, Deus conosco que não julga e nem condena, mas tem a leveza de olhar nos olhos e oferece a salvação aos que estão dispostos a percorrer o caminho da mudança compassiva. Nele encontramos tudo de que necessitamos para viver com generosidade nossa fé e levar o amor de Deus aos mais inquietos.

Pertencer à comunidade cristã tem um peso inegociável, pois somos parte do Reino e temos o dever de colocar as bem-aventuranças em prática nas atitudes diárias nos gestos de acolhida, tolerância, respeito, empatia, mansidão e humildade. A Boa-Nova é compromisso com Cristo que nos exige permanente oração, dedicação e conhecimento do mistério. Seguir Jesus é um ato livre e consciente de que fazemos parte de seu corpo místico e, por isso, temos como meta os mesmos sentimentos e atitudes do Senhor, do contrário seríamos hipócritas professando o que não vivemos.

‘Toda a vida de Cristo foi um contínuo ensinamento : os seus silêncios, os seus milagres, os seus gestos, a sua oração, o seu amor pelo homem, a sua predileção pelos pequenos e pelos pobres, a aceitação do sacrifício total na cruz pela redenção do mundo, a sua ressurreição, tudo é atuação da sua Palavra e cumprimento da revelação.’ (Catecismo da Igreja Católica, 561)

Em Jesus, nossa identidade se revela, tornamo-nos humanos e dignos de participar do banquete da alegria eucarística como discípulos da vida. ‘Vem e segue-me’, disse Jesus, ‘participe da minha ressurreição’! Eis nossa vocação!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/jesus-a-palavra-salvadora.html


terça-feira, 4 de março de 2025

Quarta-feira de Cinzas

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo da Vatican News


‘Desde o início (século II), os cristãos se preparavam para a Páscoa com dois dias de jejum e penitência. Depois, estas práticas foram estendidas para toda a Semana Santa. No ano 325, o Concílio de Nicéia, reconhecia a preparação da Páscoa por 40 dias, segundo o ‘modelo’ de Jesus, que passou 40 dias no deserto, sem contar os 40 anos do Povo de Israel no deserto e os 40 dias de jejum de Moisés, no Sinai ou de Elias no monte Horeb. No início, a Quaresma começava seis domingos antes da Páscoa : mas, visto que não se jejuava aos domingos, a coisa melhor, no século V, foi tirar a Quinta e Sexta-feira Santas do Tríduo pascal e considerá-las como Quaresma. Mais tarde, a Quaresma foi antecipada de quatro dias, chegando assim à atual Quarta-Feira de Cinzas. Com o início da Quaresma começava também a penitência pública para os que se sentiam culpados de pecados graves (apostasia, homicídio, adultério) : vestidos com roupas penitenciais e aspergidos de cinzas, eles passavam pelas cidades, quase como recordação da ‘expulsão do Paraíso’. Em fins do ano Mil, a prática da penitência pública foi diminuindo, mas foi mantida a imposição das cinzas a todos os fiéis. No século XII, começou o uso das cinzas obtidas das oliveiras do ano anterior.

‘Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu. Quando, pois, dás esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade eu vos digo : já receberam sua recompensa. Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita. Assim, a tua esmola se fará em segredo e teu Pai, que vê no segredo, te recompensará. Quando jejuardes, não façais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo : eles já receberam sua recompensa. Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, te recompensará. Quando jejuardes, não tomeis um ar triste como os hipócritas, que mostram um semblante abatido para manifestar aos homens que jejuam. Em verdade eu vos digo : já receberam sua recompensa. Quando jejuares, perfuma a tua cabeça e lava o teu rosto. Assim, não parecerá aos homens que jejuas, mas somente a teu Pai que vê em segredo; e teu Pai, que vê em segredo, te recompensará’ (Mt 6,1-6; 16-18).

Deserto

Quaresma é a partilha dos 40 dias de Jesus no deserto, tentado por Satanás. Talvez, imaginamos desertos clássicos, de areia e solidão, perigos e emboscadas. Mas, para nós, hoje, os desertos mais difíceis de enfrentar são o cansaço, as problemáticas ou aridez das nossas vidas. Assim, este tempo de graça, definido por Dom Tonino Bello como ‘escalada da vida’, ensina-nos a não escolher os atalhos dos compromissos fáceis, da desconfiança, do pecado, mas saber partilhar este tempo com Jesus, para aprender a dar as justas prioridades.

Oração, jejum, caridade

Aproveitar deste tempo para ouvir a Palavra de Deus e rezar é um convite para colocar Deus acima de tudo e de nós mesmos. Jejuar é renunciar a tudo o que nos satisfaz, mas não ao coração : a oração e a Eucaristia nutrem o coração e dão sentido à vida, porque o amor sacia a verdadeira fome e sede de viver e ser feliz. Se a oração abre o coração às coisas verdadeiras e o jejum nos educa a escolher o que realmente conta na vida, a caridade é sua consequência natural. Talvez, alguns acham que o ‘jejum da carne’ é fora de moda, mas, se pensarmos bem, não é o ‘abrir mão da carne’ que custa tanto, mas, acima de tudo, obedecer à Igreja, Mãe e Mestra, que nos convida a fazê-lo : isto representa toda a sua atualidade. Porém, além deste jejum, não devemos esquecer o jejum do egoísmo, da desconfiança, das falsas seguranças, do ódio, da indiferença...’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/feriados-liturgicos/quarta-feira-de-cinzas.html

segunda-feira, 3 de março de 2025

Como viver bem o tempo da Quaresma?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Paulo Ricardo

 

‘Quando o mundo desperta no dia seguinte ao Carnaval, é Quarta-feira de Cinzas. Para os mundanos e pagãos, trata-se de mais um dia como qualquer outro. Para nós, católicos, porém, inicia-se um tempo forte de oração e penitência : o tempo da Quaresma.

A Igreja, mãe e mestra dos homens, tem o dever de ensinar-lhes o caminho da santidade. Por isso, ela possui toda uma pedagogia, com métodos e programas de ensino, que movem o coração do homem na direção do Céu.

Quaresma faz parte dessa pedagogia como um tempo especial dedicado a um combate mais denso contra as nossas tendências pecaminosas. Não se trata, portanto, de um período em que a Igreja simplesmente se veste de roxo, mas de um kairós, ou seja, um tempo oportuno para nossa conversão.

Para viver bem esse período, o homem deve conhecer o seu fundo mau e reconhecer-se necessitado da graça divina. O tempo da Quaresma é esse tempo em que o homem passa quarenta dias meditando sobre a Paixão de Nosso Senhor, a fim de afastar-se do homem velho e, na Páscoa, ressurgir como um homem novo. Afinal, o que a Igreja deseja não é somente a nossa libertação do pecado, mas a nossa santificação e configuração a Cristo; ela quer, portanto, a nossa conversão mais profunda — uma espécie de segunda decolagem, por assim dizer —, que retira o cristão da lógica do mundanismo.

Na Quaresma, a Igreja nos exorta a praticar a esmola, o jejum e, sobretudo, a oração, como descrito no Sermão da Montanha (cf. Mt 6). Essas três práticas servem para ‘matar’ o homem velho dentro de nós e abrir o nosso coração à graça santificante. Elas desligam o motor do pecado — isto é, aquilo que São João chama de concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida (cf. 1Jo 2, 16) — e dispõem as nossas almas a serem movidas pelo amor de Deus. O jejum mortifica a concupiscência da carne, a esmola mortifica a concupiscência dos olhos e a oração mortifica a soberba da vida.

Tudo que há no mundo é a concupiscência da carneEssa carne de que fala São João não é bem o nosso corpo, mas aquela inclinação da alma a querer os prazeres ilícitos da criatura. A alma humana, quando dominada pelo pecado, vive uma desordem. Ela deixa de governar a vida do homem para submeter-se às paixões carnais. Por isso ela recebe o nome de ‘carne’.

O jejum serve justamente para moderar essa fuga da dor e busca pelo prazer, ordenando o nosso espírito, de modo que a alma domine sobre as paixões e não o contrário. Assim, privar-se de coisas agradáveis como doces, refrigerantes e o consumo de carne (brancas e vermelhas, atenção) é algo bastante recomendável.

A concupiscência dos olhos. O homem é a única criatura de Deus que possui uma sede de conhecimento, esse desejo que move o nosso olhar para tudo que seja ‘belo’ e ‘interessante’ às vistas. Por exemplo, nenhum outro animal é capaz de passar o dia inteiro no Facebook, ou mudando de canal, ou passeando no shopping sem comprar nada, como faz o ser humano.

O homem nasceu para conhecer a verdade. Porém, o pecado original causou uma desordem no seu interesse pelas coisas, de modo que as pessoas se perdem na curiosidade malsã. Daí a necessidade da esmola como exercício de desapego e abnegação.

A soberba da vida. O pecado original maculou o ser humano com o vício diabólico do orgulho, essa atitude de achar-se suficiente e dizer ‘eu me basto’. Na história da Igreja, esse vício se espalhou por heresias como o pelagianismo e o semipelagianismo, que pregavam a ideia de uma santificação sem a necessidade da graça de Deus, mas apenas por méritos humanos.

O método mais eficaz para combater o orgulho é a oração. Colocando-se de joelhos diante de Deus, o homem reconhece a sua debilidade e incapacidade para todo bem, qual um mendigo na soleira da porta de Deus. Isso abre o nosso coração para o dom da caridade, para a verdadeira esperança, que reside apenas em Deus, pois Ele é que vai nos capacitar a amar e santificar os nossos irmãos. De resto, o homem desespera-se de si mesmo para esperar apenas na providência divina.

Uma prática bastante recomendável para o tempo da Quaresma é a participação diária à Santa Missa, com comunhões bem feitas, e a frequência à Confissão. Nessa dinâmica, a nossa alma vai se identificando mais depressa à vontade do Divino Mestre, que toca o nosso corpo e a nossa alma por meio dos sacramentos. Com essa força, tornamo-nos mais resistentes às tentações, às concupiscências da carne e dos olhos e à soberba da vida.

Não podemos nos esquecer ainda que o tempo da Quaresma é também o tempo de Nossa Senhora, a mulher do Apocalipse que se retirou para o deserto, a fim de vencer o dragão, a serpente maligna que pretendia devorar seu Filho.  Peçamos, pois, o auxílio da Mãe Divina e vivamos esses quarenta dias na expectativa de novos céus e nova terra, no dia da ressurreição.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://padrepauloricardo.org/episodios/como-viver-bem-o-tempo-da-quaresma

sábado, 1 de março de 2025

Formação teológica e renovação monástica

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Pontificio Ateneo Sant'Anselmo, Roma
 

*Artigo de Dom Bernhard A. Eckerstorfer, OSB

Reitor do Ateneu Santo Anselmo, Roma


‘Lendo as novas publicações teológicas e monásticas, impressiona constatar que uma grande parte toca os desafios do nosso tempo. Não há dúvida de que estamos sendo confrontados com uma mudança, e até mesmo, para muitos, uma mudança para uma nova época. Como a Igreja no seu conjunto, também os mosteiros se esforçam por encontrar novos caminhos para o futuro. Esta procura é mesmo urgente quando a sobrevivência da comunidade depende disso. Nesta perspectiva a questão da formação para os beneditinos é de grande atualidade e por isso, explosiva. Mostra se, e como, a renovação monástica pode dar certo.

Este nº da AIM usa a palavra chave ‘hoje’ para apresentar a temática da formação. A formação monástica sempre se esforçou por transmitir a vida beneditina numa consciência desperta para a realidade de cada época. Houve, evidentemente, muitas vezes, um modelo único, considerado duradouro, pois os modelos de igreja e de sociedade também perduravam por várias gerações. Mas a nossa situação atual é muito confusa : em pleno meio de mudança de época, as coisas que antes eram evidentes, agora não o são mais; mas os novos paradigmas ainda não se impuseram, ninguém sabe como vai ser o futuro. Todos pressentimos que é preciso engajar-se em novos caminhos. Mas quais para chegar a novos horizontes?

Na situação atual estou convencido que a teologia é um fator decisivo para a formação dos beneditinos e para a nova orientação das nossas comunidades. Mas há que ter em conta outra coisa : o monaquismo poderá igualmente ter um papel importante na renovação da teologia. Como na vida política, social e cultural em que se constata uma desorientação, até mesmo uma ruptura com as antigas instituições e os modos de pensar, até então globalmente bem recebidos, há uma transição na Igreja e na teologia. Neste domínio a palavra ‘crise’ está em todas as bocas. A etimologia da palavra pode ter um papel revelador : crise significa discernimento, decisão, e exige mesmo as duas coisas.

Gostaria de tratar do assunto que me foi pedido em três pontos. Abordaria primeiro a iniciação monástica, seu sentido e formas. Fui Mestre de noviços durante doze anos, e ao longo desse tempo experimentei a necessidade de iniciações fundamentais. Depois gostaria de reler a prática monástica como um lugar teológico. Finalmente gostaria de apresentar o papel da universidade na renovação da vida monástica.

A formação monástica como processo teológico

Nos mosteiros constatamos que a transmissão da fé se faz essencialmente pela prática de um certo tipo de vida. Estando numa sociedade religiosa homogênea, seus pontos de vista, seus usos e costumes são considerados como evidentes – pois que são partilhados e sustentados pela maioria. A partir do momento que entramos num mundo pluralista, em que a fé é uma opção, como qualquer outra, é preciso refletir sobre os atos feitos até então de maneira automática, não para os perder, mas para os traduzir de outra maneira, para que sejam compreendidos no contexto atual.

Quando alguém entra no mosteiro, começa um processo de aprendizado complexo. Integrados nas práticas comunitárias, muitos elementos são conscientizados ao longo dos primeiros anos; conscientizados quer dizer pensados e, portanto, postos em questão. Este trabalho é importante para a pessoa se apropriar dos modos de fazer, que estão enraizados na comunidade. E é assim, que pela entrada de cada novo membro na comunidade, a vida monástica se renova, atualizada no processo de apropriação comunitária e individual, vivificado pelo sentimento de viver no hoje. Assim a vida monástica se mantém viva.

A introdução à vida beneditina é um processo teológico. O monaquismo sempre viu o monge como uma pessoa que procura a Deus, e isso exige um modo de pensar bem ajustado ao modo de vida. Para se ser teólogo, no primeiro sentido do termo, não precisa fazer um doutorado em teologia. São as pessoas espiritualmente competentes que levam uma vida ‘teológica’ e que aí introduzem os outros. Gostaria de ilustrar com um testemunho pessoal como a iniciação de base é essencial. Entrei no mosteiro com 29 anos, depois de longos estudos no meu país e no estrangeiro. O Abade e o mestre de noviços me disseram : ‘já tens um doutorado em teologia, o que poderemos ensinar-te ainda?’ Eles pensaram que poderia ajudar uma missa pontifical, sem dificuldade. Ora eu nunca fui coroinha, e nunca me ensinaram nada sobre cerimônias pontificais durante meu curso de teologia protestante, na América do Norte, estava bem mais atrapalhado e desajeitado do que meu co-noviço, que tinha vindo diretamente da escola monástica para o noviciado.

Meu mosteiro superestimou a importância dos meus estudos universitários para a vida monástica; por outro lado subestimou a necessidade de uma iniciação monástica para um jovem teólogo. Esta iniciação faz-se por osmose. Em todos os mosteiros há irmãos e irmãs que vivem sua vida monástica fielmente há anos. Estão espiritualmente bem modelados, e tornam-se modelos para a geração seguinte, mais pelo que são, do que pelo que fazem, mais pelo seu ser do que pelos seus discursos. Quando penso nos meus primeiros anos monásticos, foram eles os meus mestres, incluindo o abade e o mestre de noviços, de quem já falei, que não se consideravam grandes teólogos.

É evidente que tive de aprender a minha nova identidade; tive de entendê-la refletindo. Durante o noviciado foi-me dada a oportunidade de ler, entre outras obras de base, uma boa parte das obras do meu novo padroeiro São Bernardo de Claraval. Foi uma nova experiência de aprendizado. Pude saborear a leitura sem estar sob a pressão de valorizar o que tinha lido em provas ou deveres acadêmicos. Aprender a ler os grandes textos do monaquismo e da história da espiritualidade não foi fácil nem evidente. Foi uma bênção que logo após o noviciado fui enviado para Santo Anselmo por dois anos, ali onde já mais de 100 de meus irmãos tinham estudado durante decênios. O Credo do nosso abade na época era : ‘Cada um dos irmãos deveria ter a possibilidade, se quiser, de passar pelo menos um semestre em Santo Anselmo’.

Em Roma encontrei uma teologia nova para mim. De repente vi-me a rezar e a comer com os professores e os estudantes. Eis um semestre em Santo Anselmo, o segredo da formação dos beneditinos. O modo de viver e o modo de pensar interpenetram-se. No entanto, a reflexão teológica sobre a vida beneditina estava no primeiro plano. Acedi a essa reflexão por meio de alguns cursos, porém mais ainda pela atenção pessoal de teólogos beneditinos que me ajudaram a integrar minha formação teológica antecedente na vida monástica. É, justamente, esta mistura entre um estilo concreto de vida e uma compreensão mais profunda que caracteriza a vida monástica. Esta junção não pode resistir às exigências da vida atual, separar-se em diferentes setores sem ligação uns com os outros.

Pouco antes de minha profissão solene passei por uma crise. Outros modos de vida me atraíram e tive a impressão que os meus quatro anos de monge eram uma experiência que tinha chegado ao fim. Olhando para trás, tomei consciência que minha decisão de me engajar pela profissão monástica se deveu, em grande parte, à reflexão teológica, que pude fazer sobre meu novo gênero de vida, incluindo os contatos que fiz com o monaquismo mundial, sobretudo durante meus dois anos em Santo Anselmo.

O exercício concreto da prática monástica

O germe de uma renovação beneditina está nas práticas monásticas que é preciso redescobrir, compreender de novo e pôr em prática de modo atualizado. A formação monástica não serve para nada, quando pressupõe demais. Nada é evidente quando temos de lidar com jovens nas nossas comunidades. Partamos do mais elementar : as experiências que nos parecem banais na vida cotidiana devem ser repensadas. Que atitudes ter? Quais são os ritmos e as estruturas que nos dão estabilidade? Convém não só imitar o gênero de vida monástico, mas de o compreender a partir do interior, e – por consequência – pô-lo em questão, e mudá-lo; até mesmo transformá-lo. Para isso é preciso pôr em ação uma mistagogia das práticas monásticas, para desenvolver os elementos fundamentais na sua rica tradição – mas também transferi-los para o mundo contemporâneo : stabilitas e conversatio, a pequena cela monástica e o grande recinto claustral, a leitura e a autodisciplina, a solidão e a comunidade etc.

Um ponto essencialíssimo é aprender uma nova maneira de ler. É impossível a nível mundial, prever o impacto da revolução digital nas nossas civilizações e a mudança que isso terá na sociedade. Pode dar novas possibilidades ao monaquismo. Mas não fechemos os olhos ao fato que ela impõe uma realidade estranha ao espírito beneditino. Os media baseiam-se em mensagens concisas, com sinais e abreviações que são atuais enquanto duram e cujo acesso é temporário. A abertura numérica ao mundo não combina com o processo refletido e a redação laboriosa de escritos cuidadosamente construídos, nem com a cultura livresca tradicional, mas será que os mosteiros podem passar sem os meios digitais?

Na lectio os jovens irmãos adquirem não só conhecimentos religiosos, mas também competência teológica : poder passar uma hora, ou pelo menos meia hora exclusivamente para ler, cada dia, e isto durante meses e anos! Na meditatio a leitura sedimenta-se e torna-se sabedoria. Sapientia vem de sapere, que se pode traduzir por ‘saborear’. É o fundamento da oratio. Mas quanta paciência e perseverança são precisas para chegar lá, e justamente no nosso mundo tão capaz tecnologicamente! O ensino no noviciado deve encorajar a leitura de textos teológicos, que deverão depois ser discutidos. Nesta partilha não se trata de dizer logo o que eu acho, mas ‘que diz o autor?’ o que significa ter compreendido bem o texto.

A formação monástica deve permitir uma compreensão mais profunda da realidade e estabelecer o laço entre a leitura constante de pedaços do texto e um experiência de leitura holística. Vejamos se nossos mosteiros são viáveis : a biblioteca é ainda um lugar de vida, ou é um armazenamento, ou no melhor dos casos uma sala de exposição de um passado de uma procura viva de Deus? Uma missão teológica do monaquismo hoje não seria fazer renascer a cultura da leitura? Não seria a primeira vez que os mosteiros seriam vetores, transmissores de civilização.

Do mosteiro à universidade e vice-versa

Hoje, mais do que no passado, constatamos que os candidatos precisam de uma iniciação à fé. O monge forma-se exercitando-se a saborear a leitura e a descobrir nela todo um universo de significado religioso. Um professor de teologia experimentado, de uma universidade do Estado me dizia um dia : ‘os que fizeram um noviciado estudam de maneira diferente’. Mas eu devo dizer que, pelo menos conforme minha experiência na Europa Central, alguns dos que entram nos nossos mosteiros têm aversão à teologia universitária. Isso vem, provavelmente, por causa de uma diminuição científica, quando a teologia é estudada como uma ciência sem ligação com a fé vivida. Mas por outro lado, revela também a falta de consciência do que a teologia acadêmica pode e deve fazer para os nossos mosteiros.

O ensino e a pesquisa teológicos na universidade, em diálogo com as outras disciplinas, oferece um quadro próprio para a prática e a reflexão acima descritas. Depois de ter passado vinte anos no meu mosteiro na Áustria, reencontro em Santo Anselmo a liberdade oferecida pelo quadro acadêmico, no qual os estudos são prioritários, mas não separados da vida espiritual. Assim os estudantes podem consagrar-se a uma especialização em filosofia, teologia e/ou liturgia fazendo frutificar as outras coisas que os atraem. A crise do Corona mostrou como a missão educativa pode ser realizada por meio das novas tecnologias. Continuamos com o ensino direto, que integra uma discussão pessoal no lugar e faz valorizar a cidade de Roma, e nela da Igreja universal, como experiência teológica. No entanto, alargamos sempre mais nossas possibilidades ‘on line’ para abrir para as pessoas que não podem vir para a Cidade Eterna uma participação no ensino e na pesquisa de Santo Anselmo.

Não devemos subestimar o trabalho de colegas religiosos, ou faculdades de Estado que contribuem para vivificar e tornar plausível nossa existência beneditina. Conforme posso observar, as novas fundações monásticas vão juntamente com uma reelaboração teológica, enraizando-se nas fontes do monaquismo; como havia previsto o Vaticano II, uma volta às fontes, junto com a procura de modalidades adaptadas às condições atuais (aggiornamento). A teologia científica pode, neste domínio, dar uma grande contribuição. A fé vivida, tal como se expressa nas práticas monásticas, necessita de uma reflexão crítica e da apresentação da rica Tradição neste nosso tempo. Isto protegerá os nossos mosteiros de se fecharem no unilateralismo, no devocionismo e nas ideologias de todo o tipo.

Os mosteiros ricos de sua tradição monástica têm muito a dizer ao mundo universitário de hoje. O decano da faculdade de teologia de uma universidade do Estado declarou recentemente, que lamenta que a teologia universitária não apareça na sociedade e na cultura de hoje. Vemos que o mundo leigo está interessado no testemunho vivido da fé (no testemunho de uma fé viva). Quando se pratica a teologia como uma forma inspirada pela experiência da fé e a expressão de uma liturgia viva, então as outras disciplinas (acadêmicas) começam a interessar-se e até as pessoas que estão à procura de alternativas convincentes. Ao menos para a Europa Central, posso testemunhar que para além de todas as crises que afetam atualmente a Igreja e seu trabalho pastoral tradicional, do qual os mosteiros não estão excluídos, o interesse pela vida beneditina é grande e constante, tanto nos que creem, como nos céticos. Encontram nos mosteiros a realização de suas aspirações por uma ‘vida alternativa’ e gostariam de se inspirar na riqueza e na força espiritual das antigas tradições. Isto deveria nos encorajar em nossos mosteiros a ajustar nosso tipo de vida beneditina com uma maneira de pensar adequada, desde o noviciado até aos altos níveis de formação religiosa. O monaquismo poderia assim contribuir para uma teologia renovada, no seio de uma Igreja missionária, que, segundo o Papa Francisco não deveria contar só com os especialistas das universidades de teologia e os burocratas da organização eclesial.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/119