Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Dom Matias Fonseca de Medeiros, OSB
I – Christo
nihil praeponere (Nada preferir a Cristo)
‘Assim que na
tarde de 24 de novembro de 1961, Dom Basílio Penido recebeu da Nunciatura
apostólica o decreto da Santa Sé nomeando-o abade-coadjutor da abadia de Olinda
(Brasil), o jovem prior e vigário geral da abadia nullius do Rio de
Janeiro, «não soube o que dizer». Inesperada, esta notícia comoveu-o
profundamente! Monge feliz e homem de coração, Dom Basílio amava a sua
comunidade, era amado pelos seus irmãos monges e não queria deixar nem o seu
mosteiro nem a sua cidade natal onde a sua família vivia. Entretanto, o decreto
não lhe deixava opção : devia obedecer e... partir! A sua intenção entretanto
era dizer «não» uma segunda vez.
Para
apaziguá-lo, o seu abade, tendo ainda em mãos o documento romano, pediu-lhe que
fosse diante do sacrário e que «se pusesse à escuta do bom Deus». Durante este
momento de oração e também de angústia, duas palavras lhe vieram ao espírito :
obediência e humildade! Antigo aluno dos jesuítas, aprendera com Santo Inácio a
virtude de «obedecer como um cadáver»; mas sabia também, como filho de São
Bento, que «o primeiro degrau da humildade é a obediência sem demora; ela
caracteriza aqueles que estimam nada ter de mais caro que Cristo». Oração
cumprida, a alma em paz, tomou logo como divisa abacial : Christo nihil
praeponere (Nada preferir a Cristo). A sucessão dos fatos mostraria
que esta escolha não era somente coerente mas sobretudo consequente com tudo o
que se iria passar durante o tempo do seu ministério como abade de Olinda
(1962-1987) e presidente da Congregação brasileira (1972-1996). A partida para
Olinda foi para ele «um verdadeiro sacrifício de Abraão».
Em 1966, pela
primeira vez, viajou para Roma a fim de tomar parte do Congresso dos Abades da
Confederação Beneditina, o primeiro após o Concílio Vaticano II. Graças às
cartas circulares enviadas à sua comunidade de Olinda, de grande riqueza de
deta-lhes, os leitores puderam acompanhar passo a passo o desenrolar do
Congresso, pautado sobre a renovação da vida monástica na ótica do Concílio :
um assunto nada simples ou fácil! Dom Basílio fez-se notar!
Nascido no Rio
de Janeiro em 1914, viveu aí até à idade de seis anos quando o seu pai, nomeado
adido militar da Sociedade das Nações, teve de mudar-se para Paris com toda a sua
família. Muito dotado para as línguas, além do português, a sua língua materna,
o pequeno José Maria (seu nome de batismo) dominava à vontade o francês,
aprendido no colégio de Santa Cruz de Paris onde frequentou a escola primária;
e, simultaneamente, o inglês em casa com a sua «nurse» britânica. Após fazer a
sua primeira comunhão na paróquia parisience de Nossa Senhora das Graças de
Passy, a sua família regressou ao Brasil após três anos de ausência.
Terminados os
seus estudos no colégio de Santo Inácio, no Rio de Janeiro, o jovem José Maria
entrou no noviciado dos jesuítas. Entretanto, a vivacidade do seu temperamento
não correspondia às exigências da disciplina inaciana. Esgotado, deixou o
noviciado e entrou na faculdade de medicina para, após seis anos, tendo obtido
o seu doutoramento, fazer-se monge. Seguir as «observâncias monásticas» tal
como eram na época, foi-lhe igualmente penoso. «Atingi o limite das minhas
forças», dizia. E no entanto todas estas experiências o modelaram; sem nada
perder da sua autenticidade e sem a menor mágoa, havia amadurecido!
Enquanto
estudante de medicina, começou a frequentar a «Ação Universitária Católica»,
que reunia a juventude universitária católica, e que esteve na origem do
«Instituto Superior de Estudos Católicos». Muito interessado pela renovação
litúrgica e patrística, um bom número destes jovens entraram na vida religiosa
e no clero secular.
Homem de
comunicação fácil sempre cheio de entusiasmo, a sua cultura geral e muito
ampla, aliada a uma grande simplicidade, fez dele, muito cedo, um verdadeiro
«leader». Personalidade aberta e acolhedora, sedenta de tudo ver e compreender
sem ser mundano, nenhum problema de ordem moral, política ou social lhe
escapava.
A sua
espiritualidade, profundamente ancorada nos Exercícios de Santo Inácio de
Loyola e na regra de São Bento, não o fez esquecer outros autores espirituais
que ele também apreciava : São João da Cruz, Santa Teresa do Menino Jesus,
Charles de Foucauld, Thomas Merton.
Leitor
apaixonado da literatura francesa, conhecia bem os escritos de Jacques
Maritain, Paul Claudel, François Mauriac, Julien Green, Charles Péguy entre
outros, como também Georges Bernanos, que se tornou seu amigo pessoal quando do
exílio deste último no Brasil.
A renovação da
Igreja, do pensamento teológico e sobretudo da vida monástica dos anos
pós-conciliares encontraram nele uma ardente e fiel adesão. A prática desta
renovação num mundo em mudança exigia muita sabedoria e prudência. Diante dos
desafios que se apresentavam ele não hesitou, no momento certo, em fazer o que
devia.
A sua
capacidade de escuta e de diálogo com a comunidade permitiu-lhe, pouco a pouco,
introduzir as reformas conciliares. Entre estas é preciso sublinhar a sua
abertura ecumênica. Em 1966, acolheu em Olinda três irmãos de Taizé. Vivendo
numa casa junto à abadia, os irmãos integraram-se bem na comunidade : tomavam
parte em certos Ofícios litúrgicos, nas refeições comunitárias e no trabalho
manual.
O cuidado dos
pobres, que numa lamentável e aflitiva situação viviam à volta do mosteiro, não
lhe escapava menos. Vastos terrenos da propriedade da abadia, com o
consentimento da comunidade e das autoridades civis, foram doados aos mais
desvalidos para que pudessem aí ter o seu domicílio. Assim nasceu em Olinda um
novo bairro chamado até hoje «Vila São Bento».
Para uma ‘caminharem juntos’, quando do Congresso dos abades de 1967, convidados por Dom Basílio, os abades e priores dos mosteiros brasileiros presentes reuniram-se para refletir sobre o seu projeto de estabelecer laços mais fraternos e mais próximos entre as diversas comunidades no Brasil sob a regra de São Bento. Era preciso encontrar uma linguagem comum que pudesse exprimir o carisma monástico, a sua vocação e missão na sociedade e em face desta. Por medo de perder as suas próprias tradições, os abades tiveram discussões «particularmente difíceis». Tendo compreendido que o objetivo principal deste reunião não era senão «fazer a unidade na diversidade, os superiores finalmente aceitaram o projeto de se reaproximar. A decisão foi fundar a Conferência de Intercâmbio Monástico do Brasil – CIMBRA. Dom Basílio foi eleito o primeiro presidente da organização.
II – In
carcere eram (Eu estava preso)
O ano de 1964
marcou uma transição decisiva na vida política do Brasil e também da Igreja. A
31 de março, um golpe de estado impôs ao país uma ditadura militar que duraria
vinte e um anos. Algumas semanas depois, Monsenhor Hélder Câmara tornou-se
arcebispo de Olinda e Recife. Num primeiro momento, as relações do novo
arcebispo com as autoridades no poder eram respeitosas, o diálogo era possível.
Todavia, ao endurecimento do regime seguiram-se atos de repressão. Encarcerados
os oponentes, tortura, perseguição política tornavam cada vez mais difíceis as
relações entre ambas as partes. Graças às suas boas relações com alguns
oficiais, Dom Basílio torna-se o intermediário entre Dom Hélder, franca
e abertamente oposto a todo o tipo de violência, e o comando militar do Recife.
Sempre do lado do arcebispo, de quem era amigo fiel e mesmo um confidente,
cumpriu com sucesso esta missão tão complexa!
Homem de grande
coragem – por vezes audacioso – durante estes anos obscuros, assim que a
perseguição, seguida de prisão e tortura, tocou jovens estudantes universitários,
não hesitou, correndo grandes perigos, em esconder alguns deles no mosteiro
para em seguida facilitar a sua fuga e salvar as suas vidas!
Os prisioneiros
políticos, jovens ou não, eram então muito numerosos. Como padre e médico (!)
chegou a visitá-los regularmente na prisões. Antes de aí entrar sofreria toda a
sorte de humilhações da parte dos agentes de polícia encarregados da
vigilância. Suportava-os com uma paciência e uma resignação admiráveis. Quando
das reuniões comunitárias, muito discretamente, de tempos em tempos relatava
alguma coisa. A um irmão indignado que lhe perguntou como podia ele tolerar
todos estes inconvenientes, dava com toda a simplicidade a seguinte resposta :
«Santa Teresa do Menino Jesus dizia que ‘tudo é graça’ : vê, Deus concedeu-me
uma graça muito especial de poder assim tomar parte dos sofrimentos de Cristo
na sua paixão; e depois, no dia do juízo final, é Jesus que me dirá : ‘Eu
estava preso, e tu visitaste-me’». Dom Basílio foi sempre um homem de perdão e
de misericórdia!
A sua cruz
peitoral era em madeira com a sua divisa – «Christo nihil praeponere» – gravada
nela. Um dia, quando de uma visita, um prisioneiro que, curioso, observava a
cruz pediu-lhe que o deixasse vê-la de perto, sem nada dizer. Duas semanas
depois, este jovem, que tinha algum conhecimento de marcenaria, em sinal de
reconhecimento e de amizade, ofereceu-lhe, em nome dos seus companheiros de
prisão e em seu próprio, uma nova cruz peitoral também em madeira, exatamente
igual à original mas com uma nova divisa : «In carcere eram» («Eu estava
preso»). Muito emocionado, a partir de então dom Basílio começou a utilizá-la.
O amor de
Cristo preferido a qualquer outro era a única grande paixão de toda a sua vida!
A sua profunda ligação à Igreja e aos irmãos, o seu incansável combate por
«aqueles que têm fome e sede de justiça», sobretudo os pobres e os
prisioneiros, os seus firmes compromissos para a renovação de uma vida
monástica autêntica e fiel à tradição, mas ao mesmo tempo aberta e acolhedora
aos valores da modernidade, testemunharam sem sombra de dúvida, a sua
fidelidade a Cristo e ao Evangelho. Os últimos anos da sua vida, já doente,
passou-os no seu mosteiro de profissão. É lá que ele regressa a Deus a 2 de
junho de 2003 com a idade de 88 anos. Na alegria e na paz de Cristo
ressuscitado, abriu novos caminhos.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://www.aimintl.org/pt/communication/report/119
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