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sábado, 19 de agosto de 2023

Magisterium AI: Lançada nova ferramenta católica de inteligência artificial

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Andrés Henríquez


Magisterium AI é uma nova plataforma de inteligência artificial que, segundo seu site, ‘torna o ensinamento da Igreja Católica acessível como nunca antes’ e que, como o próprio nome indica, é alimentada com documentos do Magistério eclesial.

‘Com uma rede cada vez mais ampla de parceiros em todo o mundo e acesso a fontes únicas de informação católica que ainda não estão disponíveis na web, continuamos ampliando o banco de dados de formação do Magisterium AI para torná-la mais inteligente e útil’, diz o site.

A plataforma foi criada pela Longbeard, uma empresa de tecnologia com sede em Roma, que se dedica ao marketing digital e ao design e desenvolvimento de produtos digitais. Entre a carteira de clientes da empresa estão organizações da Santa Sé, como o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral e a Fundação Observatório do Vaticano; também organizações conhecidas do mundo católico, como a arquidiocese de Los Angeles, o ministério Word on Fire e os Cavaleiros de Colombo.

Segundo o  site oficial, Magisterium AI pode ser útil para explicar conceitos teológicos complicados em linguagem simples, para responder a perguntas ou contextualizar informações e para análise primária de fontes, ou para sacerdotes prepararem suas homilias.

A plataforma possibilita ‘praticar conversas’ e explica que esta função pode ser de grande utilidade para os usuários ‘que estão estudando para entrar na Igreja ou se preparando para os sacramentos, pois podem usar o Magisterium AI com o objetivo de simular conversas que poderiam ter com clérigos ou outras pessoas’.

A plataforma está em versão beta e embora esteja otimizada para ser usada em inglês, também pode responder em : espanhol, francês, alemão, italiano, russo, chinês, português, holandês e coreano. As chances de encontrar erros em respostas não escritas em inglês são maiores.

Os desenvolvedores alertam que, embora o Magisterium AI possa fornecer informações e contexto valiosos, ‘não deve ser o único recurso para alguém que tenta entender os ensinamentos católicos’, e acrescentam que ‘é sempre bom consultar fontes confiáveis, participar de discussões com pessoas especialistas e líderes da Igreja bem formados, e ler fontes primárias como o Catecismo da Igreja Católica’.

‘A Inteligência Artificial não tem profundidade humana’

Mauricio Artieda, diretor-geral da Catholic-Link, um site católico com recursos para o apostolado, e especialista nessas realidades, através de um vídeo em uma conta do Instagram, disse que o Magisterium AI ’é um grande avanço’.

Artieda disse à ACI Prensa, agência em espanhol do grupo ACI, que a plataforma é confiável e segura, pois ‘não pode inventar informação, nem vai confundir as pessoas, porque obtém suas respostas elaborando, conectando e relacionando ideias com base em seu treinamento que consiste em mais de dois mil textos da Igreja Católica’.

No entanto, ele diz que ‘todas as inteligências artificiais estão nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, por isso podem estar erradas’, e acrescenta que ‘o usuário tem a função de comprovar que essa informação esteja correta’.

Para Artieda, Magisterium AI é muito atrativo, porque ‘não tínhamos uma plataforma deste tipo, fechada e totalmente católica’. Ele acrescenta que ‘as vantagens da inteligência artificial são muitas e depende de cada uma das ferramentas’. O diretor-geral de Catholic-Link está convencido de que com estas novas tecnologias se quebram muitas barreiras que se apresentavam à evangelização.

‘É uma grande economia de tempo fazer uma pergunta e, em questão de segundos, a inteligência artificial me diz em qual documento da Igreja está o que estou procurando’, diz ele. ‘Essas ferramentas, juntamente com a mente humana, desenvolverão ainda mais a riqueza intelectual da Igreja’, acrescenta.

Artieda acha que devemos ter cuidado com a inteligência artificial, porque ‘se não a limitarmos, pode causar muitos estragos’. E referindo-se às funções criativas dessas plataformas, diz que é possível que criem ‘falsificações profundas (deep fakes), que é preciso saber regular’ porque ‘podem ser usadas ​​para o mal’.

Artieda fala com precaução das ‘funções humanas’ dessas ferramentas, dizendo que, no futuro, a inteligência artificial poderia substituir as pessoas para fazer tarefas tão delicadas como ‘criar filhos ou fazer justiça’. Segundo ele, essas plataformas ‘nunca serão capazes de compreender o que é a misericórdia, por exemplo. É aí que vamos ter problemas muito sérios’. Se, a certo ponto, ‘tentarmos atribuir funções humanas à inteligência artificial, acabaremos por nos desumanizar’, diz.

‘Não se deve ter muito medo da inteligência artificial’, conclui Artieda, ‘porque sua criatividade é limitada porque não é apoiada por experiências ou emoções. Ela carece de profundidade humana.’

O uso responsável da inteligência  artificial, ‘mais urgente do que nunca agora que tem um impacto cada vez mais profundo na atividade humana’, será tema do 57ª Dia Mundial da Paz 2024, que será em 1º de janeiro do próximo ano, anunciou o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.acidigital.com/noticias/magisterium-ai-lancada-nova-ferramenta-catolica-de-inteligencia-artificial-64889

sábado, 17 de julho de 2021

Ensinamento com a marca da compaixão

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo d0 Padre Adroaldo Palaoro, SJ

 

‘Os discípulos regressaram da missão à qual Jesus os tinha enviado e Herodes acabara de assassinar João Batista. Jesus se retirou para descansar com os discípulos, do outro lado do lago. Precisavam tomar distância, conversar juntos e de maneira tranquila sobre esse momento dramático, em um espaço sossegado, mais íntimo e profundo, sem a urgência permanente que a pressão do povo introduzia em suas vidas e não tendo tempo nem para comer. Não eram pessoas das cidades importantes que procuravam Jesus. Diz o texto de Marcos que saíram ‘de todos os povoados’ e foram ‘correndo’, com pressa, com expectativa e esperança, ansiosas para encontrar-se com Ele.

Ao ver a multidão, Jesus se comoveu até as entranhas, porque ‘andava como ovelhas sem pastor’, com fome, oprimida pelos impostos, desconcertada diante do presente e com medo difuso diante do futuro ameaçador e inseguro. E Ele começou a ensinar-lhes longamente, muitas coisas, de tal maneira que as horas foram passando sem se darem conta.

Jesus não só transmite um ensinamento, senão que cria uma relação nova com o povo e de uns com outros, segundo o espírito do Reino. Todos somos feitos para nos encontrar com um Tu inesgotável, que ilumine nossa existência e nos transforme inteiramente, de tal maneira que sejamos capazes de estabelecer relações novas com nossa própria história pessoal, com os outros e com toda a criação.

O ensinamento de Jesus revela-se, antes de tudo, como um encontro inspirador que o move a se aproximar de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada uma carrega dentro de si. Trata-se de um encontro que não vem envolvido em roupagens exóticas nem em rituais frios; sua grandeza se expressa numa proximidade tão simples e humana, onde a interação de sentimentos e afetos engrandece a todos.

Nesse sentido, o novo ensinamento de Jesus tem a marca da compaixão. Um dos sintomas de desumanização, que está revelando seu triste rosto no contexto atual, é o fato de deixar-nos de vibrar com o que os outros vivem, viver como alheios uns dos outros, blindar-nos uns frente aos outros, ou seja, incapacitar-nos para a compaixão.

A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais.

Vivemos num contexto social onde somos ameaçados por uma forma sutil de apatia. Aqui a compaixão se quebra com excessiva facilidade, se atrofia e se transforma em ‘sem-paixão’. Com isso, as nossas relações se desumanizam.

Tal ‘sem-compaixão’ é uma enfermidade social, um problema coletivo, algo que vai se fechando mais e mais, de tal modo que as pessoas vibram com menos gente, em círculos íntimos, e unicamente com quem faz parte do seu ‘gueto’.

Acostumamo-nos com a lógica deste mundo, que esvazia nossa capacidade de nos surpreender ou de nos inquietar; impermeabilizamos o coração frente à magnitude das feridas sociais, conformando-nos em responder ‘não há nada que fazer’. Vão desaparecendo os horizontes de sentido que incluem a alteridade. Qualquer implicação com o outro implica suspeita, frieza, distancia, preconceito...

Não basta a sensibilidade ou o sentimento. Não ficamos indiferentes quando a dor dos outros entra em nossas salas de estar. Mas, tão rápido como chega, o sentimento se vai, e não nos mobiliza porque não tem pontos de conexão com a realidade da exclusão.

A ‘privatização da vida’, a sensação de impotência diante das tragédias, a distância midiática (informação fria da realidade que não nos afeta e não desperta nossa paixão), a distância física, a não-comunicação (não há tempo para falar e escutar, os eletrônicos povoam nossos silêncios, o ativismo impede dedicar-nos uns aos outros), a falta de motivação (por quê deixar o outro invadir minha vida ou encher-me de inquietação?), a dificuldade para compreender a diferença (transitamos nos círculos de iguais ou semelhantes, compartilhamos gostos, modas, inquietudes, status, temos problemas comuns e metas similares, usamos produtos parecidos, lemos os mesmos livros e vemos os mesmos filmes), etc..

Quem olha para as manchetes de notícias, as escolhas e comportamentos atuais, talvez se deixe convencer de que a compaixão está perdendo a referência no elenco dos sentimentos humanos mais nobre. Afinal, produtividade, eficiência, competitividade, revelam-se pobres de atitudes compassivas.

No entanto, somos seguidores(as) do Compassivo; Jesus não passa friamente por nada. Ele não passa indiferente ao lado da fome, da doença, da exclusão, da morte, não passa friamente ao lado das multidões que vivem como ovelhas sem pastor. Seu sentimento está sempre engajado : Ele é o homem da prontidão de sentimentos, que deixa transparecer uma profunda sensibilidade. Sente-se tocado pela dor e miséria.

E jamais fica em sentimentalismos supérfluos; sua empatia e simpatia extravasam-se em ações comandadas pela compaixão : ela flui e jorra de seu coração.

Os Evangelhos destacam os profundos sentimentos de humanidade, compaixão, empatia, ternura e solidariedade misericordiosa de Jesus. Muitas vezes é mencionado que o Senhor foi ‘comovido até as entranhas’ e teve ‘frêmitos de compaixão’; trata-se de sentimento eminentemente humano.

Até podemos fazer referência origem etimológica da palavra compaixão. E aqui é muito pouco o apelo ao vocábulo latino cum-passio (padecer com). É preciso um novo passo. Para ‘compaixão’ é preciso ir até o grego antigo. Lá a compaixão está ligada às disposições maternas de conservar a vida. Naquela língua os termos ‘compaixão’ e ‘útero’ são equivalentes. Assim como o ventre materno acolhe a vida, envolve-a, protege-a e a faz nascer, algo semelhante fez o Senhor ao aproximar-se daquelas ‘ovelhas sem pastor’ : suscitou-lhes a esperança com expressões de amor fraterno. Foi uma aproximação generativa, isto é, gerou impulsos para uma nova vida.

Num mundo em que o anonimato impera e uma falta de compromisso com o outro parece predominar, é preciso ativar a compaixão, que começa pela capacidade de fixar o olhar nos rostos, desmontando os pré-juízos, ou pela possibilidade de perguntar ao outro por sua vida, seus sonhos, suas preocupações, seus desejos e sua dor. Procurar entender seus motivos sem passar logo a interpretá-los, a etiquetá-los ou a julgá-los. Aprender a escutar suas histórias e a acompanhar suas inquietações.

A moção de compaixão permite que do coração humano brote a ‘excentricidade’.

A experiência cristã não nos imuniza contra a contaminação do ‘amor próprio, querer e interesse’; mas a pulsão solidária e compassiva para com o pobre e excluído, permanente e profunda, se converte na fornalha que purifica a insaciável autoafirmação e interesses que todos temos, e vai gestando, pouco a pouco, personalidades excêntricas, livres do domínio despótico do ego.

Texto bíblico : Mc 6,30-34

Na oração : Ser compassivo implica buscar e ativar uma disposição em sair das fronteiras do conhecido e do habitual, dos circuitos familiares e das dinâmicas mais rotineiras, para entrar em sintonia com as pessoas que são vítimas de estruturas sociais e políticas que geram miséria, dor e exclusão.

  • Compaixão ou indiferença? Eis o desafio! Qual delas se manifesta com mais constância em seu dia-a-dia?’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1527923/2021/07/ensinamento-com-a-marca-da-compaixao/

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Fratelli Tutti: os maiores ensinamentos da nova encíclica de Francisco

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo de 
Vincent J. Miller, Drew Christiansen e Kevin Ahern

Um chamado para discernir as profundezas políticas

‘Com o lançamento de cada encíclica, há uma corrida intelectual para avaliar o que há de novo e digno no mais recente documento, para ocupar as primeiras linhas nas mídias sociais e publicações. Há muitos deles em Fratelli Tutti, por exemplo, as críticas enérgicas aos efeitos divisivos do capitalismo e da tecnologia, uma rejeição magistral inequívoca da pena de morte e o que é talvez a denúncia mais sustentada da Igreja ao nacionalismo e populismo desde ‘Mit Brennender Sorge’ em 1937. Mas se concentrar apenas nas passagens que destacam pode levar alguém a perder a proposta como um todo.

Fratelli Tutti é cuidadosamente construída de uma forma que revela um aspecto distinto do ministério papal de Francisco. Sim, ele exorta fortemente os cristãos a buscarem a intimidade da amizade social, em vez da descartabilidade e indiferença do capitalismo contemporâneo ou a exclusão violenta do nacionalismo populista. Muito mais profunda do que uma discussão ou catequese, assim, a encíclica é um trabalho de discernimento espiritual.

O coração de Fratelli Tutti é a reflexão de Francisco sobre o bom samaritano, reflexão que é oferecida ao modo dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Em vez de buscar uma ‘moralização abstrata’ ou uma ‘mensagem social e ética’, Francisco nos convida a entrarmos nesta parábola evangélica. As palavras de Cristo para o mestre da lei são voltadas para nós : ‘Com qual das pessoas você se identifica?... Com qual desses personagens você se parece?’. Enfrentamos uma escolha fundamental. ‘Aqui, todas as nossas distinções, rótulos e máscaras caem : é a hora da verdade. Vamos nos curvar para tocar e curar as feridas dos outros?’.

O foco no discernimento marcou o papado de Francisco desde o início. Olhando para trás, é impressionante o quanto discutiu sobre discernimento em sua entrevista com Antonio Spadaro, S.J., aquele primeiro vislumbre de seus pensamentos sobre o papado. Francisco não se ofereceu como um líder heroico a ser seguido, ou um estudioso brilhante com respostas para tudo. Em vez disso, o papa procurou promover processos como os sínodos nos quais a Igreja pudesse ouvir, discernir e agir coletivamente (este foco em ouvir torna a ausência de vozes femininas em Fratelli Tutti ainda mais chocante).

Nesse modo de discernimento, Fratelli Tutti entra com força em nossa política. As representações de Francisco sobre o populismo doentio podem ser retiradas de eventos de campanha contemporâneos. A palavra ‘paredes’ aparece 14 vezes como um símbolo de nossa tentação de nos isolar das necessidades dos outros. A reafirmação de Francisco sobre a inadmissibilidade da pena de morte e seu apelo à sua abolição não termina com excomunhões, mas termina em um tom pastoral : ‘Aos cristãos que hesitam e se sentem tentados a ceder a qualquer forma de violência, convido-os a lembrar este anúncio do livro de Isaías : «transformarão as suas espadas em relhas de arado» (2, 4). Para nós, esta profecia encarna em Jesus Cristo, que, ao ver um discípulo excitado pela violência, lhe disse com firmeza : «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, morrerão à espada» (Mt 26, 52)’.

Aqui, novamente, Francisco não empurrou isso em uma proibição moral, mas o apresenta como uma ação ‘do coração de Jesus’ que fala para o presente ‘como um apelo duradouro’ ao qual cada um de nós deve decidir como responder. Em alguns setores da Igreja, a doutrina social é relegada às periferias da preocupação cristã; aqui, Francisco mostra que ela brota do coração do Evangelho. Em Fratelli Tutti, o papa fala a uma Igreja polarizada e nos chama não apenas para corrigir nossa política, mas para discernir as profundas apostas espirituais em suas profundezas.

Nunca mais a guerra

Em sua nova encíclica Fratelli Tutti, o papa Francisco deu mais um grande passo para distanciar a Igreja Católica de seu apoio tradicional à teoria da guerra justa. Ele escreve : ‘hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível «guerra justa». Nunca mais a guerra!’.

Fratelli Tutti é o último de uma série de pronunciamentos de papas recentes expressando ceticismo sobre a continuidade da viabilidade da tradição bélica. O que uma vez descrevi como ‘pensamento estrito de guerra justa’ tornou-se, com o tempo, mais uma teologia moral da pacificação, mostrando uma preferência pela não violência e caminhando para o pacifismo.

Quando se trata de guerra nuclear, Francisco já deixou claro em uma condenação de 2017 que as armas nucleares, mesmo para supostos fins de dissuasão, não são mais aceitáveis. Durante a Assembleia Geral das Nações Unidas no mês passado, o arcebispo Richard Paul Gallagher, ministro das Relações Exteriores do Vaticano, foi além, repudiando os ‘direitos legados’ às armas nucleares para as potências nucleares signatárias do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.

Fratelli Tutti vai o mais longe que se pode ir no sentido de criticar a noção de guerra justa, sem rejeitá-la. Talvez a posição da Igreja em relação à guerra hoje possa ser comparada à sua posição sobre a pena de morte na década de 1980 - o início de etapas e declarações políticas incrementais que podem eventualmente tornar a ideia de uma guerra justa ‘inadmissível’.

O papa parece ter começado a reconhecer que, embora em princípio uma guerra possa ser racionalmente justificável, como uma questão de prática o abuso da tradição da guerra justa e as realidades da guerra moderna tornam impossível travar uma guerra justa hoje. A extensão do ceticismo de Francisco pode ser vista em sua rejeição de ‘desculpas supostamente humanitárias, defensivas e preventivas’ para fazer a guerra. Parece que isso inclui até intervenções baseadas no que ficou conhecido como a ‘responsabilidade internacional de proteger’ comunidades não-combatentes ou indefesas (‘Princípios de precaução’ são o que os advogados humanitários internacionais chamam de normas de guerra justas).

O reverendo J. Bryan Hehir falou que acreditava que não havia guerra que São João Paulo II teria considerado justa. João Paulo II, no entanto, apelou à intervenção para prevenir o genocídio na ex-Iugoslávia, na região dos Grandes Lagos da África Central e em Timor-Leste.

Olhando para casos como a Líbia e a Síria, pode haver razão para repudiar a intervenção militar justificada por motivos humanitários. Eu teria gostado, no entanto, de ter visto uma análise mais detalhada desses casos difíceis e julgamentos mais precisos sobre eles. Outras intervenções preventivas, como aquela em Costa do Marfim, tiveram sucesso. E a Líbia pode ter sido um fracasso de política e não de princípios, embora esse grande fracasso de política em si possa ser uma razão para questionar a intervenção humanitária pela força.

A principal razão para o distanciamento do papa Francisco do pensamento de guerra justa parece ser suas consequências humanitárias, tanto experimentadas quanto potenciais. O sumo pontífice pede a seus leitores que ‘toquem a carne ferida das vítimas’, especialmente civis cujo assassinato foi considerado ‘dano colateral’. Ele sugere que os analistas da guerra justa estão muito distantes dos sofrimentos infligidos pela guerra. 

Não podemos mais pensar na guerra como uma solução’, argumenta o papa, ‘porque seus riscos provavelmente sempre serão maiores do que seus supostos benefícios’. As novas tecnologias, observa, ‘conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes. É verdade que nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem’.

Fraternidade em notas de rodapé

As notas de rodapé papais sinalizam para o leitor como um texto oficial da Igreja está se baseando na Tradição. As notas de rodapé ajudam a iluminar a amplitude e a profundidade da tradição católica, enraizando os insights doutrinários sobre questões contemporâneas em uma conversa centenária.

Antes do papa Francisco, as fontes reconhecidas limitavam-se quase exclusivamente aos textos bíblicos, aos papas anteriores e às percepções dos santos. Com a Laudato Si, Francisco ampliou os parceiros de conversa para incluir referências a fontes não-cristãs, incluindo um místico muçulmano sufi, teólogos contemporâneos e ensinamentos de conferências nacionais de bispos.

Com Fratelli Tutti, o papa Francisco novamente reflete uma conversa mais ampla. Além de muitas referências às Escrituras, a encíclica cita 292 fontes em 288 notas de rodapé. A maioria dessas citações, 172, vem de seus próprios escritos. Laudato Si recebe o maior número de citações de qualquer texto único com 23 referências. Evangelii Gaudium segue com 22 referências. Coletivamente, suas mensagens para o Dia Mundial da Paz são citadas 11 vezes. Para grande desgosto de seus críticos, talvez, Francisco cita seu documento conjunto com o Sheikh Ahmed Al-Tayyeb, sobre a ‘Fraternidade Humana’, um total de nove vezes, incluindo uma citação substancial no final (Fratelli Tutti, nº 285) .

O papa Bento XVI obtém o maior número de referências depois de Francisco com 22 citações. Caritas in Veritate é referenciada 19 vezes. Outros papas são citados 29 vezes. Francisco novamente afirma o trabalho das conferências episcopais e parece querer ter pelo menos uma referência a cada região do mundo. Em Fratelli Tutti, o papa cita o trabalho de 12 conferências, incluindo os documentos sobre racismo e migração produzidos pelos bispos norte-americanos.

Com Fratelli Tutti, o papa novamente expande o círculo de conversa além de bispos e santos, incluindo Karl Rahner, S.J., Paul Ricoeur e, notavelmente, Rabino Hillel (Nos números 59-60). Mas este círculo é grande o suficiente?

Antes de se dedicar à obra do Beato Carlos de Foucauld, o papa fala que se inspirou nos escritos de São Francisco de Assis, Martin Luther King Jr., Desmond Tutu e Mahatma Gandhi (nº 286). Isso é um tanto estranho, porque em nenhum lugar Francisco cita diretamente o trabalho de King, Tutu ou Gandhi. Uma citação mais direta de King teria fortalecido a condenação do texto ao racismo. Da mesma forma, um envolvimento mais direto com a filosofia de não violência de Gandhi poderia ter contribuído para a seção sobre a guerra.

Mas a omissão mais flagrante nas notas de rodapé é qualquer referência às vozes das mulheres. O papa poderia facilmente ter trazido o trabalho de Dorothy Day, que citou em seu discurso de 2015 no Congresso, ou o ativista pela paz liberiano Leymah Gbowee, que foi mencionado ao lado de King e Gandhi na mensagem do papa para o Dia Mundial da Paz de 2017. Muitas teólogas feministas há muito abordam os temas do documento. E a vida de inúmeras religiosas, de Santa Clara a Santa Josefina Bakhita, poderia ter sido elevada como modelos de amizade social.

Embora a ampliação da conversa para fontes não papais realmente reflita o estilo do papa, a omissão das mulheres também pode ser reflexo de algo mais profundo. Esperançosamente, a próxima encíclica não repetirá esse erro.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1476670/2020/10/fratelli-tutti-os-maiores-ensinamentos-da-nova-enciclica-de-francisco/