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segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Encíclica do papa é traduzida para o russo por iniciativa de muçulmanos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
Papa Francisco, o Primeiro-Ministro Al Maktoum e o presidente do Pontifício Conselho Inter-religioso Dom Ayuso Guixot em Abu Dabhi, fevereiro de 2019

*Artigo do jornal Sete Margens

 

‘A tradução em língua russa da última encíclica do papa Francisco, Fratelli Tutti, acaba de ser publicada, segundo. A surpresa é ela ter sido feita e editada por instituições muçulmanas e ter surgido antes mesmo da tradução que estava a ser preparada pela Igreja Católica na Rússia.

A editora Medina e o Fórum Muçulmano Internacional foram as entidades que se encarregaram deste trabalho, publicado na véspera de Natal, coincidindo com o início da festa muçulmana de Eid al-Milad (Natividade de Isa ibn Maryam, ou seja Jesus, filho de Maria, que o Alcorão apresenta como um grande profeta).

No prefácio da edição, Damir Hazrat Mukhetdinov, secretário executivo do Fórum Muçulmano, escreve :

‘Como pode a tradução de um documento da Igreja Católica Romana ser importante para um muçulmano? A resposta é simples : além das próprias reflexões do papa Francisco (…) há a possibilidade de compreender melhor a própria religião, de vê-la de lados inesperados. A libertação do preconceito sobre os outros promove maior liberdade de pensamento, o que inevitavelmente leva à libertação do preconceito sobre si mesmo. Uma melhor compreensão de nós mesmos não passará despercebida pela forma como os outros nos entendem. Esse entendimento mútuo (não só do outro, mas sobretudo de si mesmo) ocorre durante o encontro. E o encontro é a principal mensagem da Fratelli tutti’.

Na apresentação feita na página da editora, sublinha-se ainda :

A encíclica Fratelli tutti é uma etapa sem precedentes no diálogo inter-religioso. Esta etapa é marcada pelo problema da convivência, o problema da sociabilidade. A base da interação social deve ser a ideia de abraçar a misericórdia de Deus e o amor ao próximo. A encíclica do papa Francisco fala sobre misericórdia social e amor. Qualquer pessoa que se preocupa com o amor e a misericórdia dialoga. O convite para esse diálogo foi a encíclica Fratelli tutti . A difusão da mensagem do papa em russo servirá à causa do diálogo, da amizade social, da fraternidade universal. Isso fortalecerá a cultura da reunião. A tradução é dirigida a todas as pessoas de boa vontade’.

A tradução da encíclica em língua russa não estava prevista no plano de traduções oficiais da Santa Sé, razão pela qual a Conferência Episcopal tinha em andamento uma tradução própria. Com esta iniciativa dos muçulmanos, que se antecipou à tradução católica, fica disponível um documento saudado com ‘alegre surpresa’, por parte do presidente da Conferência Episcopal da Rússia, o bispo Paolo Pezzi.

Segundo a agência de notícias SIR, dirigindo-se diretamente ao secretário do Fórum Muçulmano (e também primeiro vice-presidente da direção espiritual dos Muçulmanos da Federação Russa), Damir Mukhetdinov, que promoveu a iniciativa editorial, Paolo Pezzi escreveu :

Como toda a gente, eu sabia que esta encíclica nasce – em grande parte – do histórico encontro entre o papa e o grande imã de Al-Azhar, Ahmed Al-Tayyeb, e apela a renovadas relações fraternas entre os fiéis das nossas tradições religiosas. Mas eu não podia imaginar que esse apelo suscitaria uma resposta tão rápida e generosa nos corações dos muçulmanos russos’.

Em carta ao representante muçulmano, publicada na página da Igreja Católica russa, o arcebispo acrescenta :

A importância deste vosso passo, assim como da própria encíclica do papa, é realmente difícil de sobre-estimar. Parece-me que esse gesto seja incrivelmente relevante neste momento, quando muitas pessoas, infelizmente, acreditam que o diálogo inter-religioso seja uma formalidade vazia que não dá nenhum fruto real e não afeta a vida das pessoas. Mas não é assim : temos muitas provas de como seja importante uma ‘cultura de encontro’, que pode reavivar a esperança e levar à renovação’.

A carta cita neste ponto uma frase da encíclica de Francisco : ‘A verdade é que a violência não encontra nenhuma base nas convicções religiosas fundamentais, mas sim em suas deformações’.

O arcebispo, portanto, agradece a Damir Hazrat, porque a tradução de Fratelli tutti não só torna os conceitos expressos pelo papa Francisco acessíveis aos leitores muçulmanos, mas também permite que ‘os católicos se vejam através dos olhos de nossos interlocutores’. E acrescenta : ‘Seria interessante se, num futuro próximo, pudéssemos realizar juntos um encontro sobre os temas importantes discutidos neste documento’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1491762/2021/01/enciclica-do-papa-e-traduzida-para-o-russo-por-iniciativa-de-muculmanos/

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Fratelli Tutti: os maiores ensinamentos da nova encíclica de Francisco

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo de 
Vincent J. Miller, Drew Christiansen e Kevin Ahern

Um chamado para discernir as profundezas políticas

‘Com o lançamento de cada encíclica, há uma corrida intelectual para avaliar o que há de novo e digno no mais recente documento, para ocupar as primeiras linhas nas mídias sociais e publicações. Há muitos deles em Fratelli Tutti, por exemplo, as críticas enérgicas aos efeitos divisivos do capitalismo e da tecnologia, uma rejeição magistral inequívoca da pena de morte e o que é talvez a denúncia mais sustentada da Igreja ao nacionalismo e populismo desde ‘Mit Brennender Sorge’ em 1937. Mas se concentrar apenas nas passagens que destacam pode levar alguém a perder a proposta como um todo.

Fratelli Tutti é cuidadosamente construída de uma forma que revela um aspecto distinto do ministério papal de Francisco. Sim, ele exorta fortemente os cristãos a buscarem a intimidade da amizade social, em vez da descartabilidade e indiferença do capitalismo contemporâneo ou a exclusão violenta do nacionalismo populista. Muito mais profunda do que uma discussão ou catequese, assim, a encíclica é um trabalho de discernimento espiritual.

O coração de Fratelli Tutti é a reflexão de Francisco sobre o bom samaritano, reflexão que é oferecida ao modo dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Em vez de buscar uma ‘moralização abstrata’ ou uma ‘mensagem social e ética’, Francisco nos convida a entrarmos nesta parábola evangélica. As palavras de Cristo para o mestre da lei são voltadas para nós : ‘Com qual das pessoas você se identifica?... Com qual desses personagens você se parece?’. Enfrentamos uma escolha fundamental. ‘Aqui, todas as nossas distinções, rótulos e máscaras caem : é a hora da verdade. Vamos nos curvar para tocar e curar as feridas dos outros?’.

O foco no discernimento marcou o papado de Francisco desde o início. Olhando para trás, é impressionante o quanto discutiu sobre discernimento em sua entrevista com Antonio Spadaro, S.J., aquele primeiro vislumbre de seus pensamentos sobre o papado. Francisco não se ofereceu como um líder heroico a ser seguido, ou um estudioso brilhante com respostas para tudo. Em vez disso, o papa procurou promover processos como os sínodos nos quais a Igreja pudesse ouvir, discernir e agir coletivamente (este foco em ouvir torna a ausência de vozes femininas em Fratelli Tutti ainda mais chocante).

Nesse modo de discernimento, Fratelli Tutti entra com força em nossa política. As representações de Francisco sobre o populismo doentio podem ser retiradas de eventos de campanha contemporâneos. A palavra ‘paredes’ aparece 14 vezes como um símbolo de nossa tentação de nos isolar das necessidades dos outros. A reafirmação de Francisco sobre a inadmissibilidade da pena de morte e seu apelo à sua abolição não termina com excomunhões, mas termina em um tom pastoral : ‘Aos cristãos que hesitam e se sentem tentados a ceder a qualquer forma de violência, convido-os a lembrar este anúncio do livro de Isaías : «transformarão as suas espadas em relhas de arado» (2, 4). Para nós, esta profecia encarna em Jesus Cristo, que, ao ver um discípulo excitado pela violência, lhe disse com firmeza : «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, morrerão à espada» (Mt 26, 52)’.

Aqui, novamente, Francisco não empurrou isso em uma proibição moral, mas o apresenta como uma ação ‘do coração de Jesus’ que fala para o presente ‘como um apelo duradouro’ ao qual cada um de nós deve decidir como responder. Em alguns setores da Igreja, a doutrina social é relegada às periferias da preocupação cristã; aqui, Francisco mostra que ela brota do coração do Evangelho. Em Fratelli Tutti, o papa fala a uma Igreja polarizada e nos chama não apenas para corrigir nossa política, mas para discernir as profundas apostas espirituais em suas profundezas.

Nunca mais a guerra

Em sua nova encíclica Fratelli Tutti, o papa Francisco deu mais um grande passo para distanciar a Igreja Católica de seu apoio tradicional à teoria da guerra justa. Ele escreve : ‘hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível «guerra justa». Nunca mais a guerra!’.

Fratelli Tutti é o último de uma série de pronunciamentos de papas recentes expressando ceticismo sobre a continuidade da viabilidade da tradição bélica. O que uma vez descrevi como ‘pensamento estrito de guerra justa’ tornou-se, com o tempo, mais uma teologia moral da pacificação, mostrando uma preferência pela não violência e caminhando para o pacifismo.

Quando se trata de guerra nuclear, Francisco já deixou claro em uma condenação de 2017 que as armas nucleares, mesmo para supostos fins de dissuasão, não são mais aceitáveis. Durante a Assembleia Geral das Nações Unidas no mês passado, o arcebispo Richard Paul Gallagher, ministro das Relações Exteriores do Vaticano, foi além, repudiando os ‘direitos legados’ às armas nucleares para as potências nucleares signatárias do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.

Fratelli Tutti vai o mais longe que se pode ir no sentido de criticar a noção de guerra justa, sem rejeitá-la. Talvez a posição da Igreja em relação à guerra hoje possa ser comparada à sua posição sobre a pena de morte na década de 1980 - o início de etapas e declarações políticas incrementais que podem eventualmente tornar a ideia de uma guerra justa ‘inadmissível’.

O papa parece ter começado a reconhecer que, embora em princípio uma guerra possa ser racionalmente justificável, como uma questão de prática o abuso da tradição da guerra justa e as realidades da guerra moderna tornam impossível travar uma guerra justa hoje. A extensão do ceticismo de Francisco pode ser vista em sua rejeição de ‘desculpas supostamente humanitárias, defensivas e preventivas’ para fazer a guerra. Parece que isso inclui até intervenções baseadas no que ficou conhecido como a ‘responsabilidade internacional de proteger’ comunidades não-combatentes ou indefesas (‘Princípios de precaução’ são o que os advogados humanitários internacionais chamam de normas de guerra justas).

O reverendo J. Bryan Hehir falou que acreditava que não havia guerra que São João Paulo II teria considerado justa. João Paulo II, no entanto, apelou à intervenção para prevenir o genocídio na ex-Iugoslávia, na região dos Grandes Lagos da África Central e em Timor-Leste.

Olhando para casos como a Líbia e a Síria, pode haver razão para repudiar a intervenção militar justificada por motivos humanitários. Eu teria gostado, no entanto, de ter visto uma análise mais detalhada desses casos difíceis e julgamentos mais precisos sobre eles. Outras intervenções preventivas, como aquela em Costa do Marfim, tiveram sucesso. E a Líbia pode ter sido um fracasso de política e não de princípios, embora esse grande fracasso de política em si possa ser uma razão para questionar a intervenção humanitária pela força.

A principal razão para o distanciamento do papa Francisco do pensamento de guerra justa parece ser suas consequências humanitárias, tanto experimentadas quanto potenciais. O sumo pontífice pede a seus leitores que ‘toquem a carne ferida das vítimas’, especialmente civis cujo assassinato foi considerado ‘dano colateral’. Ele sugere que os analistas da guerra justa estão muito distantes dos sofrimentos infligidos pela guerra. 

Não podemos mais pensar na guerra como uma solução’, argumenta o papa, ‘porque seus riscos provavelmente sempre serão maiores do que seus supostos benefícios’. As novas tecnologias, observa, ‘conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes. É verdade que nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem’.

Fraternidade em notas de rodapé

As notas de rodapé papais sinalizam para o leitor como um texto oficial da Igreja está se baseando na Tradição. As notas de rodapé ajudam a iluminar a amplitude e a profundidade da tradição católica, enraizando os insights doutrinários sobre questões contemporâneas em uma conversa centenária.

Antes do papa Francisco, as fontes reconhecidas limitavam-se quase exclusivamente aos textos bíblicos, aos papas anteriores e às percepções dos santos. Com a Laudato Si, Francisco ampliou os parceiros de conversa para incluir referências a fontes não-cristãs, incluindo um místico muçulmano sufi, teólogos contemporâneos e ensinamentos de conferências nacionais de bispos.

Com Fratelli Tutti, o papa Francisco novamente reflete uma conversa mais ampla. Além de muitas referências às Escrituras, a encíclica cita 292 fontes em 288 notas de rodapé. A maioria dessas citações, 172, vem de seus próprios escritos. Laudato Si recebe o maior número de citações de qualquer texto único com 23 referências. Evangelii Gaudium segue com 22 referências. Coletivamente, suas mensagens para o Dia Mundial da Paz são citadas 11 vezes. Para grande desgosto de seus críticos, talvez, Francisco cita seu documento conjunto com o Sheikh Ahmed Al-Tayyeb, sobre a ‘Fraternidade Humana’, um total de nove vezes, incluindo uma citação substancial no final (Fratelli Tutti, nº 285) .

O papa Bento XVI obtém o maior número de referências depois de Francisco com 22 citações. Caritas in Veritate é referenciada 19 vezes. Outros papas são citados 29 vezes. Francisco novamente afirma o trabalho das conferências episcopais e parece querer ter pelo menos uma referência a cada região do mundo. Em Fratelli Tutti, o papa cita o trabalho de 12 conferências, incluindo os documentos sobre racismo e migração produzidos pelos bispos norte-americanos.

Com Fratelli Tutti, o papa novamente expande o círculo de conversa além de bispos e santos, incluindo Karl Rahner, S.J., Paul Ricoeur e, notavelmente, Rabino Hillel (Nos números 59-60). Mas este círculo é grande o suficiente?

Antes de se dedicar à obra do Beato Carlos de Foucauld, o papa fala que se inspirou nos escritos de São Francisco de Assis, Martin Luther King Jr., Desmond Tutu e Mahatma Gandhi (nº 286). Isso é um tanto estranho, porque em nenhum lugar Francisco cita diretamente o trabalho de King, Tutu ou Gandhi. Uma citação mais direta de King teria fortalecido a condenação do texto ao racismo. Da mesma forma, um envolvimento mais direto com a filosofia de não violência de Gandhi poderia ter contribuído para a seção sobre a guerra.

Mas a omissão mais flagrante nas notas de rodapé é qualquer referência às vozes das mulheres. O papa poderia facilmente ter trazido o trabalho de Dorothy Day, que citou em seu discurso de 2015 no Congresso, ou o ativista pela paz liberiano Leymah Gbowee, que foi mencionado ao lado de King e Gandhi na mensagem do papa para o Dia Mundial da Paz de 2017. Muitas teólogas feministas há muito abordam os temas do documento. E a vida de inúmeras religiosas, de Santa Clara a Santa Josefina Bakhita, poderia ter sido elevada como modelos de amizade social.

Embora a ampliação da conversa para fontes não papais realmente reflita o estilo do papa, a omissão das mulheres também pode ser reflexo de algo mais profundo. Esperançosamente, a próxima encíclica não repetirá esse erro.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1476670/2020/10/fratelli-tutti-os-maiores-ensinamentos-da-nova-enciclica-de-francisco/


domingo, 4 de outubro de 2020

Nova encíclica é o testamento de Francisco

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘‘Lírica, bíblica e existencial’, foi uma frase que Carlos Drummond de Andrade pronunciou ao descrever a obra de Adélia Prado. Pedimos licença a esses mestres da nossa literatura, para definir, dessa forma, a nova encíclica de papa Francisco, Fratelli Tutti (Todos Irmãos), publicada neste domingo (4), que trata da fraternidade universal e da amizade social.

Inspirado nos ideais de Francisco de Assis, o santo do século 13 que pregou a paz e a concórdia, o papa traça um plano de ação para reaproximar as pessoas em plena pandemia. Foca em valores como o diálogo, o respeito e o cuidado com os mais pobres em âmbito público e privado. Um texto sentimental, carregado de ensinamentos bíblicos aplicados à realidade e, por assim dizer, humanista. Um documento que foi feito para ser lembrado. É o testamento de Francisco.

Na encíclica, o pontífice reforça conceitos elaborados ao longo de seu pontificado. Elege temas já debatidos em suas encíclicas, discursos e catequeses. Porém, para não fugir às suas próprias regras de ousadia, agrega à sua reflexão o parecer de bispos católicos de vários países.

A opinião desses líderes, que são latinos, europeus, africanos, asiáticos, pessoas de todas as raças e estilos, ganha destaque no texto do papa. Sem contar que a declaração conjunta do papa Francisco e o grande imã de Al-Azhar, Ahmed Al-Tayyib, assinada em 2019, em Abu Dhabi, na qual se comprometem a lutar pela paz mundial, conduziu grande parte da reflexão. Francisco burla o protocolo da ‘autorreferencialidade pontifícia’ que é própria das encíclicas. 

Principais temas

Desta vez, o papa argumenta com mais liberdade, e sem filtros. Dá nome aos bois, aponta caminhos e condena as injustiças. Destaque para o trecho no qual diz que o neoliberalismo não é a única via. Considera que ‘visões liberais individualistas reduzem a sociedade a uma mera soma de interesses que coexistem’. E afirma que ‘o mercado não resolve tudo’. Sugere, em vez disso, um novo ordenamento social, baseado num ‘amor político’ capaz de vencer a desigualdade.

A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças. Devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos’, salienta.

Além disso, faz um apelo à cooperação internacional e, ao mesmo tempo, diagnostica um ‘falso globalismo’ que destrói identidades. Chama o racismo de ‘um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, e está sempre à espreita’.  Condena a xenofobia e diz que os latino-americanos que vivem nos Estados Unidos ‘são fermento de valores para o país’, ao contrário do que pensam os propagadores da ‘cultura dos muros’ que os vê como uma ameaça. ‘Quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes’, profetiza.

Cristãos também são criticados. Diz que alguns têm aderido a ‘determinadas preferências políticas em detrimento das profundas convicções da própria fé’. Se refere às políticas anti-imigração, sustentadas por alguns governos, que recebem o beneplácito de alguns grupos católicos. E culpa a falta de manejo de muitos líderes religiosos na contenção de grupos fundamentalistas, assumindo que a Igreja demorou muito tempo para condenar algumas formas de violência em várias fases de sua história.

Ainda há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados pela sua fé a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes. A fé, com o humanismo que inspira, deve manter vivo um sentido crítico perante estas tendências e ajudar a reagir rapidamente quando começam a insinuar-se’, exortou.

Além disso, Francisco trata dos direitos das mulheres, condena o que ele chama de ‘cultura do descartável’, denuncia mais uma vez os populismos. Pede a reforma das Nações Unidas, de modo que o organismo possa, de acordo com ele, ‘encarnar o sentido de família das nações’ e sugere uma governança global que possa atuar em favor dos imigrantes.

Um texto para todos

É a terceira encíclica do pontificado de Francisco, e a segunda de cunho social. A primeira foi a Laudato Si, de 2015, que faz um apelo à preservação do meio ambiente.

No prefácio da Fratelli Tutti, o papa diz que os destinatários da mensagem são ‘os homens de boa vontade’, não somente os católicos. Repete a fórmula criada por João XXIII, que foi o primeiro romano pontífice a dirigir-se à humanidade inteira num documento papal. Antes dele, documentos desse tipo se dirigiam somente a bispos, padres e fiéis católicos.

O papa bom, como é conhecido, inaugurou, em 1963, na sua encíclica Pacem in Terris, essa nova saudação pontifícia. Anos depois, foi copiado por Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, que adotaram essa mesma introdução em suas encíclicas sociais.

Fratelli Tutti, de Francisco, e a Pacem in Terris, de João XXIII, à distância de quase seis décadas uma da outra, se complementam em torno de alguns princípios. Ambas, por exemplo, a partir do próprio contexto, afirmam, com segurança : ‘Não existe guerra justa!’. Francisco chega a dizer que ‘a guerra é o fracasso da política e da humanidade’.

Em 1963, em plena Guerra Fria, João XXIII fez um apelo à união, em vista do bem comum, quando o mundo era dividido em dois blocos ideológicos. Em sua mensagem, Francisco também trata da polarização, a qual, desta vez, não só provoca cismas fraternais, mas serve de combustível para novos nacionalismos e populismos.

As novidades

1 - Fake news e manipulação das consciências

É uma encíclica que também aponta os estragos causados pelas instrumentalizações religiosas e políticas. O santo padre fala sobre a postura grosseira que, em outros tempos, faria qualquer político perder o respeito. Hoje, segundo Francisco, esse tipo de atitude sequer é repudiada.

Atrelado à ascensão desses líderes políticos que normalizam o discurso violento, o pontífice afirma que ‘há interesses econômicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão sutis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático’.

Segundo ele, o funcionamento de muitas plataformas acaba favorecendo a formação de ‘clãs’ que não admitem o confronto entre as diferenças. Estes circuitos fechados, comenta o papa, ‘facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios’.

2 - Liberdade, Igualdade e Fraternidade

Outro ponto interessante é a reelaboração, à luz do Evangelho, do lema ‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade’, as três palavras que, juntas, constituem os ideais da Revolução Francesa. Na visão do pontífice, não existe igualdade e liberdade sem a fraternidade.

O que acontece quando não há a fraternidade conscientemente cultivada? [...] A liberdade se atenua, predominando assim uma condição de solidão, de pura autonomia para pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e desfrutar. Tampouco se alcança a igualdade definindo, abstratamente, que todos os seres humanos são iguais, mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da fraternidade’, reflete o pontífice.

3 - Propriedade privada

Para alguns vaticanistas, a parte na qual o papa fala sobre a propriedade privada é a grande novidade da encíclica. No entanto, é importante frisar que a visão de Francisco sobre o assunto remete à própria doutrina social da Igreja. Para o catolicismo, que sempre defendeu a propriedade privada, afirma que ela só é moralmente aceitável ‘em vista do bem comum’.

O desenvolvimento não deve orientar-se para a acumulação sempre maior de poucos, mas há de assegurar os direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos. O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo ambiente, pois quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos’, escreve Francisco.

Algumas considerações

Interessante notar que, em todas as partes da encíclica, reconhecemos Francisco. Apesar de sabermos que ele não escreve sozinho esse tipo de texto e conta com uma equipe de colaboradores para redigir parte do conteúdo, está claro que a revisão, feita pelo santo padre, foi criteriosa. É uma encíclica quase falada, como se, por um momento, ouvíssemos as indagações e contemplássemos os silêncios de Francisco. Homilia, declaração, exortação : tudo junto no mesmo texto.

Na exortação Evangelii Gaudium, de 2014, o papa argentino traçou seu programa de governo. Na Fratelli Tutti deste ano, ele fecha um ciclo. Não que estejamos fazendo previsões apocalípticas sobre a morte do sumo pontífice, mas está claro que ele se prepara para a última parte de seu pontificado. Pode ser que ele viva 100 anos (e que assim seja!). No entanto, é provável que esse ‘resumão’ em torno de questões primordiais para ele, não tenha sido articulado em vão.

Os papados, na história, não necessariamente enfraquecem em sua última fase. Francisco cresce. E terminará seu papado assim, em ascensão. A crise, para ele, é um impulso para focar no concreto, no essencial. Outros papas, porém, se concentraram em tratados doutrinais.

Paulo VI viveu muitos anos após sua última encíclica, Humanae vitae (1968), porém, minou sua popularidade depois dela. Francisco, ao contrário, pode, através dessa sua ‘cartada final’, fazer justamente o contrário. Portanto, reforço : ele lança as bases para uma conclusão honrosa.

Como nós, Francisco faz as contas. A pandemia, de certa forma, redimensionou nossas prioridades, despertou incertezas e nos fez desbravar o desconhecido. Não foi diferente, certamente, para o atual líder da Igreja Católica. ‘Todos irmãos’ é um clamor para que ele, nem nós, não nos sintamos sozinhos. É um convite para caminharmos, juntos, rumo à coroação de um pontificado que não só promove mudanças, mas já é, por si só, a mudança. Recomecemos. Nosso mentor nessa retomada em meio ao caos é Francisco. Ninguém solta a mão de ninguém. Nem a dele.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1474870/2020/10/nova-enciclica-e-o-testamento-de-francisco/


sábado, 12 de setembro de 2020

Título de nova encíclica papal não será traduzido

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘Muitos questionaram a respeito do título da terceira encíclica do papa Francisco, que será assinada pelo pontífice no dia 3 de outubro, em Assis, na Itália. Adiantamos nesta quinta-feira (10), em primeira mão, que ela se chamará Fratelli tutti em todas as línguas. A Sala de Imprensa da Santa Sé informou ao Dom Total que não será feita nenhuma tradução do título. Especulava-se que o nome declinaria para ‘Todos irmãos’, em português. Alguns sites americanos especializados, inclusive, chegaram a apostar em ‘All brothers’, em inglês. 

Outra novidade em relação ao documento papal é que o nome oficial não será em latim, como aconteceu com as demais encíclicas do pontífice (Lumen Fidei e Laudato si'). Com isso, papa Francisco ousa mais uma vez : nenhum outro pontífice, na história do catolicismo, batizou uma encíclica com um idioma moderno.

Quando o título é publicado em latim, é de praxe que ele não seja traduzido. Como se tratava de uma frase em italiano, havia incertezas em relação à denominação por parte do Vaticano. Portanto, fim do mistério.

A frase Fratelli Tutti – todos irmãos, do italiano –, introduz a ‘sexta admoestação de Francisco de Assis’, cujo título é A imitação do Senhor. O trecho faz parte de uma coleção de 28 textos curtos medievais, inspirados nos princípios de vida do santo, que é considerada a carta magna da espiritualidade franciscana. Depois da Laudato si, será a segunda encíclica a se inspirar no legado do religioso do século 13.

Conteúdo da encíclica

Francisco é o papa das surpresas, porém, em alguns momentos, consegue ser previsível. Tudo isso porque o papado, enquanto instituição, não foge às próprias regras, independente de quem governe a Igreja Católica.

É de se esperar que, em momentos de crise, o romano pontífice, de alguma forma, se manifeste. E na maioria das vezes, escolhe a encíclica como instrumento para expor um parecer oficial.

O documento nada mais é que uma ‘carta circular’, como o próprio nome sugere, e é endereçada a todos os católicos. Desta vez, Francisco seguiu a cartilha pontifícia. E pode confirmar uma tendência : nas fases mais desafiadoras da história, o catolicismo produziu seus mais célebres escritos.

Com João XXIII, esse tipo de texto se tornou ainda mais abrangente, já que foi ele quem começou a inserir na introdução das encíclicas a expressão ‘aos homens de boa vontade’; ou seja, não somente aos católicos aquela mensagem é destinada. Na Pacem in Terris (1963) aparece essa nova modalidade.

E é provável que Francisco repita a fórmula. Na Laudato si (2015), à diferença da Lumen Fidei (2013), que especifica os destinatários (bispos, padres, diáconos, consagrados e fiéis leigos), o papa ocultou essa especificação.

De acordo com o comunicado oficial do Vaticano, publicado no último dia 5, será um texto ‘sobre a fraternidade humana’, o que sugere um apelo à cooperação internacional em tempos de crise. É uma encíclica de cunho social, que poderá se tornar uma das mais completas já publicadas pelos pontificados contemporâneos, no tocante à versatilidade de temas tratados.

Talvez seja cedo para dizer, mas cogita-se que, se assim for, causará um impacto tão expressivo quanto a Pacem Terris de João XXIII, citada anteriormente, que foi escrita num contexto de Guerra Fria. Ainda hoje, os especialistas consideram o documento do papa bom um texto fundamental sobre a dimensão social do evangelho.

Além de focar nos problemas causados pelo coronavírus, é provável que Francisco insista nos assuntos que tem evidenciado em seus discursos sobre a pandemia : o cessar-fogo global, o cuidado para com o meio ambiente, o espírito de coletividade e o convite à colaboração entre cristãos e não cristãos.

A declaração conjunta do papa Francisco e o grande imã de Al-Azhar, Ahmed Al-Tayyib, assinada em Abu Dhabi, em 2019, também poderá servir de base para o texto. No documento, que também privilegia o tema da fraternidade humana, os dois líderes se comprometeram a trabalhar juntos na construção de um mundo mais justo, rechaçando os ataques contra a dignidade humana em todas as suas formas.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1470518/2020/09/titulo-de-nova-enciclica-papal-nao-sera-traduzido/

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Louvado sejas, meu Senhor

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo Metropolitano de Belém, PA


O pobrezinho de Assis, Francisco, livre e franco pelo nome e pela transparência de vida, há séculos ilumina com o fulgor de seu exemplo a humanidade. Uma das muitas tradições relativas ao Cântico das Criaturas dá conta de que o santo estivesse cego quando, em 1224, redigiu a maior parte do magnífico texto posto à luz pelo Papa Francisco, em sua recente e magistral Encíclica, chamada justamente ‘Laudato si’, pelas palavras iniciais do poema de São Francisco, da qual desejo trazer alguns ensinamentos. É que o olhar interior de São Francisco ou do Papa Francisco, quiçá de todos nós, consegue enxergar a obra de Deus em ato. A proximidade da Festa de São Francisco nos conduza a rezar e cantar com alegria.

 ‘Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas. Só a ti é devido o louvor, ó Altíssimo Deus Criador. Altíssimo, onipotente, bom Senhor, são teus o louvor, a glória, a honra e toda a bênção. Só a ti, Altíssimo, são devidos, e homem algum é digno de pronunciar teu nome. Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor, irmão sol que clareia o dia e com sua luz nos alumia. E ele é belo e radiante com grande esplendor : de ti, Altíssimo, é a imagem. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas que no céu formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento, pelo ar nublado ou sereno e por todo o tempo, pelo qual, às tuas criaturas, dás alimento. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo, pelo qual iluminas a noite. Ele é belo e alegre é vigoroso e forte. Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz frutos diversos e coloridas flores e ervas. Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor e suportam enfermidades e tribulações. Felizes os que sustentam as provações em paz : por ti, altíssimo, serão coroados. Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. Ai dos que morrerem separados de ti. Felizes os que a morte encontrar realizando a tua santíssima vontade! Criaturas todas, louvai e bendizei ao meu Senhor! Dai-lhe graças servindo a Deus com grande humildade!

 O Papa Francisco, no decorrer da Encíclica na qual quis falar à Igreja e ao mundo sobre o cuidado com a ‘casa comum’, oferece a contribuição da Escritura e da  Igreja para suscitar diálogo e empenho conjunto, no qual todas as forças atuantes na sociedade podem colaborar (Cf. ‘Laudato si’, capítulo II). É bom, para a humanidade e para o mundo, que conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções. Chama de ‘Evangelho da criação’  e afirma que a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o pensamento contemporâneo, permitindo várias sínteses entre fé e razão e motivações altas para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis.

Na primeira narração da obra criadora, no livro do Gênesis, o plano de Deus inclui a criação da humanidade. Depois da criação do homem e da mulher, diz-se que ‘Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa’ (Gn 1, 31). Cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (Cf. Gn 1, 26). Como é maravilhosa, afirma extasiado o Papa, a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer : ‘Antes de te haver formado no ventre materno, eu já te conhecia’ (Jr 1, 5).

Para a Encíclica, a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas : com Deus, com o próximo e com a terra. Estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. É o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas. Este fato distorceu também a natureza do mandato de ‘dominar’ a terra (Cf. Gn 1, 28) e de a ‘cultivar e guardar’ (Cf. Gn 2, 15). É significativo que a harmonia vivida por São Francisco com todas as criaturas tenha sido interpretada como uma cura daquela ruptura.

Não somos Deus. A terra existe antes de nós e nos foi dada. Os textos bíblicos nos convidam a ‘cultivar e guardar’ o jardim do mundo (Cf. Gn 2, 15). Enquanto ‘cultivar’ quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, ‘guardar’ significa proteger, cuidar, preservar, velar o que implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras. Em última análise, ‘ao Senhor pertence a terra’ (Sl 24/23, 1), a ele pertence ‘a terra e tudo o que nela existe’ (Dt 10, 14). Por isso, Deus proíbe toda a pretensão de posse absoluta : ‘Nenhuma terra será vendida definitivamente, porque a terra me pertence, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes’ (Lv 25, 23). Isso implica que o ser humano respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo.

Jesus retoma a fé bíblica no Deus criador e destaca um dado fundamental : Deus é Pai (Cf. Mt 11, 25). Jesus convidava os discípulos a reconhecer a relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e recordava-lhes, com comovente ternura, como cada uma delas era importante aos olhos dele : ‘Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus’ (Lc 12, 6). ‘Olhai as aves do céu : não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste as alimenta’ (Mt 6, 26).

E o Novo Testamento não nos fala só de Jesus terreno e da sua relação tão concreta e amorosa com o mundo; mostra-o também como ressuscitado e glorioso, presente em toda a criação com o seu domínio universal. ‘Foi nele que aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão no céu’ (Cl 1, 19-20). Isto nos lança para o fim dos tempos, quando o Filho entregar ao Pai todas as coisas ‘a fim de que Deus seja tudo em todos’ (1 Cor 15, 28). Assim, as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude.

Fique apenas o convite, vindo do exemplo de São Francisco e da Encíclica do Papa, à glorificação da obra de Deus e a uma nova e fecunda responsabilidade diante da criação!’


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