quarta-feira, 30 de abril de 2025

Reinventar a esperança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Bernardino Frutuoso,

jornalista


‘Esther Hillesum (1914-1943), escritora neerlandesa, filha de judeus não praticantes, é considerada uma das místicas mais destacadas do nosso tempo. Ela viveu a dor da guerra, foi feita prisioneira e levada para Auschwitz, onde morreu com 29 anos. Num ambiente de ódio e intolerância, no meio do sofrimento que avassalava todos os que tinham sido restringidos a um campo de concentração, ela encontrava no seu interior a força divina para ser testemunha de fé, amor e esperança para aqueles deserdados. No meio daquelas sombras, sem perder a capacidade de olhar além do mal que a rodeava, animava os seus companheiros cativos e convidava-os a «reinventar a esperança».

Vivemos num mundo cheio de tragédias, crises, incertezas, guerras, medos e sofrimentos. A apatia e o desânimo podem também assombrar a nossa vida. Por isso necessitamos reinventar a esperança, pois como refere o filósofo Byung-Chul Han, «apenas a esperança nos permite recuperar a vida» porque «ela estende o horizonte do significativo, que revitaliza a vida e lhe dá asas. A esperança presenteia-nos com o futuro» (O espírito da esperança : contra a sociedade do medo, 2024). 

Para nós, crentes, a esperança é uma virtude teologal que nos incita a não perder de vista o objetivo último da existência. A Páscoa, que celebramos este mês, convoca-nos a renovar a esperança de Cristo Ressuscitado, que põe no nosso coração a certeza de que Deus sabe transformar tudo em bem, pois até do túmulo faz surgir a vida. Como referia o Papa Francisco na homilia da Vigília Pascal de 2020, «nesta noite de Páscoa, conquistamos um direito fundamental, que não nos será tirado : o direito à esperança. É uma esperança nova, viva, que vem de Deus. Não é mero otimismo, não é uma palmadinha nas costas, nem um encorajamento de circunstância, com o aflorar de um sorriso. Não. É um dom do Céu, que não podíamos obter por nós mesmos».

Para os discípulos missionários de Jesus, a esperança é também visionária e profética, projeta-nos para a futuro, dá-nos motivação para transformar a realidade e torná-la conforme ao projeto de Deus. Como escreve o Papa Francisco na bula de convocação do jubileu, a esperança é a virtude que imprime «a orientação, indicando a direção e a finalidade da existência crente. Por isso, o apóstolo Paulo convida-nos a ser ‘alegres na esperança, pacientes na tribulação, perseverantes na oração’ (Rm 12, 12). Assim deve ser; precisamos de transbordar de esperança (cf. Rm 15, 13) para testemunhar de modo credível e atraente a fé e o amor que trazemos no coração; para que a fé seja jubilosa, a caridade entusiasta; para que cada um seja capaz de oferecer ao menos um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito, sabendo que, no Espírito de Jesus, isso pode tornar-se uma semente fecunda de esperança para quem o recebe». Ancorados na esperança, sendo capazes de a reinventar no quotidiano da nossa vida, os crentes colaboramos ativamente na construção de um mundo melhor, mais justo, solidário e fraterno.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1338/reinventar-a-esperanca/

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Tornar-me eu mesma no mosteiro

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Vitral do Encontro, capela do mosteiro

*Artigo de Irmã Maria Terezinha Bezerra dos Santos, OSB

Mosteiro do Encontro, PR


‘Pediram-me para dar um testemunho sobre minha experiência monástica, porém, acho que mais que um testemunho, gostaria de partilhar o quanto a vida consagrada monástica me ajuda em minha caminhada humana, cristã e espiritual.

Sou monja beneditina do Mosteiro do Encontro, localizado em Mandirituba, Paraná, nasci em Palmeira dos Índios, Alagoas. Estou na vida monástica há 15 anos, sou professa solene há 9 anos.

Sabemos que a vida cristã é determinada por verbos de movimento, mesmo quando é vivida na dimensão monástica e contemplativa claustral, é uma contínua busca [1]. Bem sabemos que para São Bento a procura de Deus é o primeiro critério para se receber alguém que deseja entrar no Mosteiro [2]. Procurar a Deus no Ofício Divino : temos aí nosso primeiro serviço e, a partir dele, toda a nossa vida no mosteiro é organizada. Aprendi com esta organização, que meu trabalho não seria ‘visto’, nem apreciado pelas pessoas, não iria receber elogios e reconhecimento pelo que viria a fazer. No começo, devo reconhecer que não foi fácil aceitar isso, mas depois percebi que meu, nosso serviço, no Mosteiro do Encontro, não é um trabalho para ser reconhecido, mas recebido. Sei que nossa vida entregue à oração, por toda Igreja e por todo o mundo, dá frutos. A diferença é que estes frutos é o próprio Senhor quem os colhe!

Devo ser sincera em afirmar que nunca pensei em ser religiosa, menos ainda em ser monja! Mas Deus foi conduzindo a minha vida de tal modo que foi impossível dizer não ao seu chamado. Eu não conhecia a vida monástica, mas tinha um amigo que era monge beneditino, fui ao seu Mosteiro, em Santa Rosa, Rio Grande do Sul, fazer um retiro de preparação para entrar em uma congregação de vida apostólica. Quando participei das vésperas pela primeira vez com os monges, não sei explicar o que aconteceu, só sei que ali tive a certeza que Deus tinha me chamado para esta vida. Voltei decidida a entrar em um mosteiro, mas não sabia onde. Este mesmo amigo me indicou alguns mosteiros, entre eles o Mosteiro do Encontro.

Quando cheguei ao Mosteiro do Encontro meu primeiro desejo foi ir embora, achei que não era o meu lugar, mas fiquei o tempo que tinha me proposto a ficar e no final da estadia, (uma semana), pedi para fazer um tempo de experiência de 3 meses. Desde então passaram-se 15 anos. Meu sim passou e continua a passar por muitas purificações. Graças a Deus! Quando cheguei ao Mosteiro, pensava que entrando na vida religiosa a santidade era ‘automática’, eu era muito fechada em mim mesma, achava que o mosteiro me daria a oportunidade de ficar em meu lugar, tranquila, devo reconhecer que não foi fácil aceitar que a vida monástica não é só rezar e viver em meu próprio mundo. Pouco a pouco, entendi que a vida monástica é justamente um contínuo sair de mim mesma, e ir ao encontro do outro, seja na oração, na comunidade ou na acolhida dos que chegam ao Mosteiro.

O Mosteiro do Encontro tem um nome sugestivo, levando em consideração o que nosso Papa Francisco vem a todo o momento pregando sobre a cultura do encontro. Posso afirmar que fiz esta experiência do Encontro, de várias maneiras, mas vou limitar-me a três áreas onde pude viver e vivo continuamente este mistério do Encontro.

Meu primeiro encontro foi comigo mesma. Quando cheguei ao Mosteiro me deparei com uma irmã Maria Terezinha, que nunca havia percebido antes, não que ela não existisse, mas eu dava um jeito de deixá-la de lado, escondida nas aparências. Sempre vivi meus sentimentos e relações de maneira o mais superficial possível, tinha medo de tocar minhas fragilidades e que as pessoas conhecessem uma Terezinha com sentimentos muitas vezes reprovados. Não me permitia tocar minha raiva, ciúmes, medo, evitava olhar para uma Terezinha com limites ou simplesmente humana; em verdade, encontrei-me com minha humanidade. Este encontro foi indispensável para que eu pudesse começar a fazer um caminho de auto aceitação e reconciliação com minha própria história de salvação!

No Mosteiro fiz a experiência de sentir-me amada na situação em que me encontrava, não precisava mostrar ser uma pessoa que não era, podia ser eu mesma como sou, com qualidades e limites e isto me deu e dá coragem para continuar o caminho de conversão. Experimentei a paciência de minhas irmãs, que mesmo no silêncio diziam que acreditavam em mim. Aí se deu o meu segundo Encontro, com minha comunidade. Esta experiência de aceitação e acolhida por parte de minha comunidade me fez perceber o quanto eu precisava de pessoas que me confrontassem, que me ajudassem a sair de meu comodismo. Na vida comunitária descobri e pude desenvolver dons que nunca imaginei ter.

Minha experiência na vida comunitária foi como se eu tivesse a oportunidade de ‘renascer’. Sinto que cada dia, no ‘útero’ de minha comunidade, o Senhor me recria, me ensina a recomeçar, cura minhas feridas, demonstra seu amor, por meio de pessoas que nunca imaginei encontrar na minha vida. Claro que constantemente tenho que aprender a relacionar-me com pessoas diferentes de mim, que nem sempre estão de acordo com minhas ideias, nem eu com as delas, mas tenho que aprender a respeitá-las como são, não é um caminho fácil, mas este processo tem me ensinado a buscar o verdadeiro sentido de estar e permanecer no Mosteiro. Com a vida comunitária aprendo sempre mais que não posso caminhar sozinha, que preciso de relações verdadeiras para viver minha consagração como Deus me pede.

Só quando entendi que não podia viver minha consagração em meu próprio mundo de reservas, que tinha que caminhar com minhas irmãs, muitas vezes morrendo à minha própria vontade, pude entender o que é ser consagrada pelo Reino, para construir o Reino de Deus já aqui e agora vivendo e servindo em comunidade a caminho, mas com desejo verdadeiro de responder e ser fiel ao seguimento do único Senhor.

A terceira experiência de Encontro foi com as pessoas que chegam ao Mosteiro. Sabemos que para São Bento todos os que chegam ao Mosteiro devem ser acolhidos como o próprio Cristo [3]. Na prática e na vivência do cotidiano, esta acolhida não é tão simples assim. No começo não entedia por quê tinha que dar atenção para todos os que chegavam ao mosteiro, às vezes, humanamente falando, em horas inconvenientes... Muitas vezes não entendia porque deixamos os trabalhos, ou mesmo a oração, para ir ao encontro das pessoas que chegam até nós. Mas aos poucos fui me dando conta que as pessoas que chegam ao Mosteiro buscam a paz, querem ser acolhidas e escutadas, querem sentir-se amadas, valorizadas como pessoas. Muitas pessoas que chegam a nós têm tudo o que mundo e o dinheiro podem oferecer, mas não encontram o essencial. Então entendi que as pessoas buscam Aquele que é o único capaz de saciar esta busca e preencher o vazio, que nada nem ninguém poderia preencher. Elas procuram a Deus, e o modo como acolho estas pessoas pode proporcionar lhes este encontro. Hoje posso afirmar que cada vez que acolho uma pessoa, neste encontro, posso ser instrumento de Deus para esta pessoa, mas estas pessoas são sempre mais instrumentos de Deus em minha vida. Isto me faz perceber o quanto Ele pode realizar por nós, e em nós, utilizando-se de nossos irmãos e irmãs, que se tornam verdadeiramente manifestação de sua graça e presença em nossas vidas!

Não poderia terminar esta partilha, sem expressar minha gratidão à toda equipe da AIM, que desde o início de minha vida monástica esteve presente com sua ajuda para minha formação monástica, seja no período da formação inicial com a escola de formadores que também me proporcionou continuar meu encontro comigo mesma e minha humanidade, seja na continuação em minha formação permanente -, agora estou terminando o curso de formação monástica dos cistercienses em Roma. Sei que o Senhor age em nós com sua graça, mas bem sabemos que também nós precisamos abrir-nos ao que Ele tem a nos oferecer! Ficam aqui os meus sinceros agradecimentos a nossos irmãos e irmãs da AIM que não medem esforços para nos ajudar em nossa formação, proporcionando-nos ferramentas para vivermos de modo mais coerente nossa vida monástica! Que o Senhor nos sustente a cada dia em nosso sim, e com Ele sigamos com nosso desejo de em tudo glorificá-lo! Assim seja!’

[1] Ano da vida consagrada, Alegrai-vos: Carta circular aos consagrados e às consagradas do magistério do Papa Francisco, São Paulo, Ed. Paulinas, p. 23.

[2] Regra de São Bento 58,7.

[3] Regra de São Bento 53,1.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/117

sábado, 26 de abril de 2025

O legado espiritual deixado pelo Papa Francisco

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Adelson Araújo dos Santos, SJ


‘Os 12 anos de pontificado do Papa Francisco ficarão, com certeza, marcados na nossa memória afetiva e intelectiva, por tudo o que ele nos marcou com seu carisma pessoal de pastor que sempre buscou se aproximar das suas ovelhas e de não deixar ninguém de fora do rebanho de Cristo, como também por meio dos seus ensinamentos, caracterizados por uma forte teologia e espiritualidade do encontro, da escuta e do discernimento.

Contudo, tendo chegado aos 67 anos de vida consagrada como membro da Companhia de Jesus, não é de admirar que durante os seus 12 anos de pontificado, muito do que o Papa nos comunicou com gestos e com palavras tenha origem na espiritualidade dos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola. De fato, é possível identificar no jeito como Francisco viveu o seu pontificado alguns traços marcantes da espiritualidade inaciana. Ele mesmo fez questão de ressaltar isso em julho de 2013, no voo de volta da viagem que fizera ao Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude, quando perguntado se ainda se sentia jesuíta como Papa, assim respondeu : ‘Eu me sinto jesuíta na minha espiritualidade, na espiritualidade dos Exercícios, a espiritualidade que eu tenho no coração’.

Mas, como reconhecer no pontificado do Papa Francisco esse carisma inaciano? Para responder a esta pergunta eu destacaria três características centrais deixadas por Santo Inácio em seus Exercícios Espirituais, que moldaram a espiritualidade e o carisma dos jesuítas e que acompanharam Francisco diariamente na sua experiência de Deus e na sua missão como bispo de Roma e sucessor de Pedro.

A primeira característica é a de sentir-se chamado a ser um ‘contemplativo na ação’, expressão criada por Jerônimo Nadal, um dos primeiros jesuítas e estreito colaborador de Santo Inácio em Roma. Isto significa que, para um jesuíta (e todo inaciano ou inaciana) existe uma harmonia total entre a vida espiritual e a vida apostólica, pois em tudo aquilo que fazemos e em qualquer ambiente onde estivermos podemos (e devemos) buscar e encontrar a Deus, ou seja, não apenas nos momentos formais de oração ou no interior dos templos ou conventos. Isso faz com que seja o Espírito de Cristo a guiar tudo aquilo que faço ao longo do meu dia, para que se cumpra a vontade de Deus na minha ação apostólica. E, por outro lado, permite que o meu ministério e serviço não seja um mero ativismo ou rotina profissional, mas seja fruto da minha oração, como um encontro íntimo com o Senhor que não me fecha em mim mesmo, mas abre sempre para a missão e para os demais.

Ora, não temos dúvidas do quanto o Papa Francisco souber viver e ensinar essa necessária harmonia entre oração e ação, tendo sido ele mesmo um grande ‘contemplativo’, alguém que deu sempre um profundo testemunho do valor da oração e da vida espiritual, mas sem jamais abandonar a vida de serviço a Deus e ao próximo. De fato, ele mesmo em uma de suas catequeses alertou que ‘alguns mestres de espiritualidade do passado compreenderam a contemplação em oposição à ação, e exaltaram aquelas vocações que fogem do mundo e dos seus problemas, a fim de se dedicarem inteiramente à oração. Na realidade, em Jesus Cristo, na sua pessoa e no Evangelho não há oposição entre a contemplação e a ação, não. No Evangelho, em Jesus não há contradição’ (Catequese - 32. A oração contemplativa).

A segunda característica da espiritualidade que os membros da Companhia de Jesus buscam viver, como vimos o Papa Francisco fazer ao longo da sua vida, tem a ver com a nossa postura no mundo e no modo de viver a nossa fé e espiritualidade cristã de forma encarnada e em constante relação e diálogo com a realidade, com as diferentes culturas e com todas as criaturas que conosco habitam a mesma casa comum, que é o nosso planeta. De fato, nos Exercícios Espirituais meditamos e contemplamos a criação divina como obra do amor que Deus para com cada uma de suas criaturas, de modo muito especial o ser humano. E, quando pelo pecado pessoal e estrutural essa criação é ameaçada e destruída, afastando-se do plano divino, meditamos e contemplamos como a Santíssima Trindade resolve enviar ao mundo o Redentor, não para condenar, mas para salvar o mundo, por meio de Jesus, caminho, verdade e vida.

Desse modo, quando vemos a preocupação que teve o Papa pelas criaturas de Deus, ao escrever uma encíclica (Laudato Si’ – 2015) nos chamando a atenção para a necessidade de cultivarmos uma ecologia integral, que cuide melhor de tudo aquilo que Deus criou e nos chama a uma mudança de hábitos e uma verdadeira ‘conversão ecológica’ para assegurar às futuras gerações um mundo melhor, ele certamente estava expressando uma espiritualidade que não nos deixa indiferente ao que se passa ao nosso redor e com os nossos semelhantes e outras criaturas de Deus, pois nos Exercícios inacianos rezamos que Cristo deseja ter colaboradores que o ajudem em sua missão redentora e salvífica, o que implica também viver uma espiritualidade que se preocupe com a dimensão ambiental, social, política, cultural e cotidiana da vida, já que em tudo isso o Espírito de Cristo age. Da mesma forma, Francisco mostrou a fonte inaciana da sua espiritualidade quando escreveu ‘Fratelli tutti’, encíclica que nos recorda que somos todos irmãos e, portanto, temos que ter cuidado pelo outro, como queria Santo Inácio que fosse as relações fraternas nas comunidades jesuítas, chamando a seus membros de ‘amigos no Senhor’ e levando-os a praticar a solidariedade e a justiça do Reino em favor dos que sofrem injustiças e abandono.

Finalmente, a terceira característica marcante do carisma inaciano que facilmente identificamos na vida e na mensagem do Papa Francisco foi o de sempre ter buscado o ‘discernimento’ espiritual em tudo o que fazia e em todas as decisões que tomava. De fato, este é um dos maiores dons deixado pelos Exercícios Espirituais, não apenas para os membros da Companhia de Jesus, mas para todos os cristãos. Como afirmou o Superior Geral dos jesuítas, Pe. Arturo Sosa, ‘os Exercícios Espirituais Inacianos são um tipo de escola do discernimento. Seguindo os Exercícios Espirituais, toda pessoa pode ser ajudada a escutar a voz de Deus chamando a totalidade da vida humana a decidir pelo seguimento dessa voz – para fazer uma escolha’.

Se observarmos bem, todo o pontificado de Francisco foi uma constante escola de discernimento apostólico e eclesial, como se verificou recentemente com o Sínodo da sinodalidade, cujo tema foi ‘Por uma Igreja Sinodal : Comunhão, Participação e Missão’. Tendo participado da comissão de espiritualidade de preparação ao sínodo e, posteriormente, das duas sessões da assembleia sinodal em outubro de 2023 e 2024, pude perceber claramente o desejo do Papa de que nós nos puséssemos em um caminho de reflexão no qual todos as vocações da Igreja — leiga, religiosa, sacerdotal, diaconal — se sentissem chamadas a participar ativamente, escutando-se mutuamente e discernindo a voz do Espírito Santo falando por meio de todos os batizados e batizadas.

Muitas outras características do modo de ser, de pensar e de agir do Papa Francisco poderiam ser identificadas como oriundas das fontes inacianas dos Exercícios Espirituais, que ele conheceu desde cedo na sua formação jesuítica e que procurou viver até o fim da sua vida terrena, agora chegada ao fim. Que neste momento em que ele nos deixa, seja esse legado espiritual que nos deixa, um tesouro que saibamos preservar e aumentar, como Igreja verdadeiramente discípula, missionária e sinodal.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2025-04/legado-espiritual-deixado-papa-francisco.html


quinta-feira, 24 de abril de 2025

O jovem rico (Mt 19,16-26)

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo da Madre Escolástica Ottoni de Mattos, OSB

Abadessa de Santa Maria, SP


‘Lendo esta passagem de Mt 19,16-26, fixemo-nos nas primeiras palavras : ‘Alguém se aproximou de Jesus’ Contemplemos a diversidade de pessoas que se aproximam de Jesus no evangelho de Mateus e suas diferentes motivações. Ponhamo-nos em movimento para ir ao seu encontro :

4,3 : o tentador aproxima-se de Jesus para o pôr à prova;

4,11 : os anjos aproximam-se para o servir;

8,2 : um leproso aproxima-se para ser purificado;

8,19-20 : um escriba aproxima-se e propõe-se seguir Jesus em toda a parte;

13,36 : os discípulos aproximam-se para perguntar o sentido de uma parábola;

17,14 : um homem aproxima-se para implorar compaixão para seu filho lunático;

26,7 : uma mulher aproxima-se com o frasco de alabastro para ungir a cabeça de Jesus;

26,49 : Judas aproxima-se para dar a Jesus o beijo da morte.

Aqui, em 19,16, alguém se aproxima e pergunta : ‘Que devo fazer de bom para ter a vida eterna?’ A pessoa que se aproxima nesta passagem é chamada de ‘alguém’ (eis em grego). Isso significa que pode ser cada um de nós. No entanto, é alguém que se dirige a Jesus como ‘Mestre’;

- procura a vida eterna;

- é um jovem;

- observa os mandamentos;

- é sem meias medidas, ainda que se afaste todo triste porque se vê na impossibilidade de receber a única coisa que lhe falta…

Não ter nada, somente ‘um tesouro nos céus’ é a lição final.

Olhemos o texto com mais atenção. É composto por duas cenas distintas, muito estruturadas literalmente :

I. Diálogo de alguém com Jesus

a) Aproximar-se de Jesus (v. 16 a)

            b) interrogar Jesus (v 16. b)

                        c) Receber uma resposta de Jesus (v. 17)

            b’) interrogar Jesus (v. 18 a)

                        c’) receber uma resposta de Jesus (v. 18-19)

            b’’) interrogar Jesus (v. 20)

                        c’’) receber uma resposta de Jesus (v. 21)

a’) afastar-se de Jesus

Este diálogo está enquadrado pela antítese que expressa um conflito e um combate, fortes, porque tocam um engajamento de toda a vida e até do ‘pós-vida’. Para O TODO, é pedido tudo :

v. 16 : ‘Aproximar-se’ é o oposto de ‘afastar-se’ (v. 22)

v. 16 ‘Ter a vida eterna’ é o oposto de ‘ter grandes bens’ (v. 22)

No interior do debate, no v. 21, as antíteses são numerosas : ir # vir; vender # possuir; dar aos pobres # ter um tesouro. Estes paralelismos antitéticos são um contraste com a síntese muito estável do anúncio de Jesus : entrar na vida, entrar no reino dos céus, entrar no reino de Deus (v. 17.23.24)

O moço está preocupado com o TER; sendo rico e habituado a possuir tudo, quer, com boa intenção e lógica, possuir a vida eterna. Jesus apresenta-lhe uma outra realidade : ‘Ser perfeito…seguir-me’ e para isso nada ter. Trata-se de um despojamento total em vista do Absoluto que o chama. Como sublinha Romano Guardini : ‘Possuir seja o que for, já é ser rico (…) O que importa é a posse em si mesma’ São Bento nos lembra isto no capítulo das Boas Obras : ‘Nada preferir ao amor de Cristo’ (RB 4,21). Também no fim da Regra, como alguém que dá testemunho de ter feito um percurso sério na vida cristã e monástica, diz : ‘Nada, absolutamente nada preferir ao Cristo, que nos conduza juntos para a vida eterna’ (RB 72,11-12).

Os mandamentos da lei, expressos sob forma negativa, mostram já a necessidade de que falte algo, que faz um vazio na vida, um vazio necessário para uma plenitude : desapegar-se do instinto de matar, de cometer adultério, de roubar, de fazer um falso testemunho. Paulo Beauchamp afirma : ‘As proibições do diálogo (decálogo) fazem o vazio diante de um espaço em que Deus não pede nada’ Nos mandamentos aqui citados concentra-se toda a Lei.

Então, ‘que me falta ainda?’ (v. 20) ‘Se queres ser perfeito’ (v. 21). O adjetivo teleios, do verbo teleio, significa literalmente uma ‘ação realizada até ao fim’, ‘chegada à maturidade’. Aliás é o que evoca já a raiz da palavra grega que significa ‘mandamento’, entolé: en toleios, em vista de uma realização. Este moço não chegou ainda à maturidade, embora observe os mandamentos; ele vive entre um vender e um possuir, dar aos pobres e ter para si; está no começo do caminho. O fundador do hassidismo, Baal-Shem-Tov, o rabino do séc. 17, dá-nos esta pérola da tradição judaica :

‘Eis as palavras que Moisés disse a todos os filhos de Israel, no além Jordão, no deserto (Dt 1,1) Há os que pensam ter encontrado a Deus e não o conhecem. Há os que pensam suspirar para Deus de longe, e Deus está bem perto. Quanto a ti, pensa sempre que estás na beira do Jordão e que ainda não entraste no país. E se pensas que já observas um bom número de mandamentos, fica sabendo que ainda não fizeste nada’.

O jovem em todas as suas aproximações e afastamentos, nos seus numerosos vai e vem, guarda a ilusão de ser cumulado com seus próprios bens. Não consegue aceitar o vazio, que é o espaço para o outro, para o Cristo nele.

II – Diálogo de Jesus com os discípulos

a) As palavras de Jesus

            1. Dificilmente um rico entrará (v. 23)

            2. Mais fácil um camelo passar (v. 24)

            b) A pergunta dos discípulos a Jesus : ‘Quem então pode ser salvo?)

a’) As Palavras de Jesus

            1. Impossível aos homens (v. 26)

            2. Possível a Deus (v. 26)

No coração da antítese – ‘dificilmente…mais fácil’ – a pergunta dos discípulos jorra como um drama, diz respeito à salvação : ‘Quem então pode ser salvo?’ (v. 25). ‘Ser salvo’ é uma realidade que aparece muitas vezes no Evangelho de Mateus, desde o começo. Coloquemo-nos na presença da pergunta :

– está ligada ao nome de Jesus : ‘O chamará Jesus, pois Ele salvará o povo dos seus pecados’ (Mt 1,21)

– também pode estar ligada a um perigo : ‘Senhor salva-nos, pois perecemos’ (Mt 8,25)

– uma doença : ‘Se ao menos tocar na sua veste, serei salva’ (Mt 9, 21-22).

O que é visado em nossa perícope está expresso no versículo ‘Aquele que perseverar até ao fim (eis telos) será salvo (Sotesetai)’ (Mt 10,22). Estamos de novo na perspectiva da realização, consumação. Nada chegará à realização, fora desta visão. Mas concretamente para Jesus, ir até ao fim, significa ir até à cruz, a porta pela qual se entra na vida. A questão é tão séria que Jesus deixa entender que tal coisa só é possível a Deus. Assim Jesus nos ensina a necessária dependência de Deus para se ser salvo. O próprio Jesus não se salva sozinho. E, no entanto, é justamente a isso que o convidam quando ele está na cruz : ‘Salva-te a ti mesmo, se és Filho de Deus, e desce da cruz’(Mt 27,40). E ainda : ‘Salvou outros, e não pode salvar-se a si mesmo’ (Mt 27,42).

Jesus, Deus e homem não quis passar sem um vazio, como diz São Paulo aos Filipenses 2,16 e ss : ‘Ele que era de condição divina, não se agarrou ao ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, (…) e como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz’. Salvar-se a si mesmo, não é ir até ao fim do despojamento de si mesmo, é descer da cruz, não precisar dela. E no entanto, essa é a chave do despojamento, do despossuir-se.

Conclusão

Como nos diz a Carta aos Hebreus, Moisés ‘considerou a humilhação do Cristo como uma riqueza maior que os tesouros do Egito, pois ele tinha os olhos na recompensa final’ (Heb 11,26). A tradição judaica nos diz que Moisés entrou na vida por meio do beijo de Deus. Mesmo se chegarmos a viver 120 anos em diálogo com Deus, nós precisamos, como ele, deixar-nos corajosamente desinstalar das nossas certezas formais e das nossas ilusões. ‘De começo em começo’, a caminho, seguindo a Cristo pelo buraco profundo e fascinante, e pela inovação desta pergunta que nunca se responde ‘Que me falta ainda?’'.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/117

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Ser monge num monaquismo jovem

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Alex Echeandia, OSB

Prior da Comunidade de Lurin, Peru

 

‘A palavra ‘experiência’ é habitualmente usada para uma pessoa mais velha, um homem, ou uma mulher, que viveu no quadro de uma grande tradição de hábitos, costumes e de um estilo de vida. Neste sentido a tradição do monaquismo peruano é bastante nova, pois é recente, data da fundação do primeiro mosteiro beneditino que foi fundado nos anos 1960.

A Igreja do Peru não conhecia a palavra ‘monaquismo’ quando as ordens mendicantes chegaram. De fato, a Coroa espanhola não autorizava os monges a entrar nas Novas Índias, porque eram consideradas terra de missão. A história conta que quando Cristóvão Colombo fez a segunda viagem à América já havia frades franciscanos. O objetivo principal era evangelizar o Novo Mundo. A evangelização precisava de catequese e do desaparecimento de toda a forma de idolatria.

Mas, a evangelização foi realizada por monges, bem antes que as ordens mendicantes existissem na Igreja. Na Igreja dos primeiros séculos houve monges missionários muito célebres, como São Columbano, Santo Agostinho de Cantuária, São Bonifácio de Fulda e muitos outros, que levaram o Evangelho para a Europa e para o Leste.

O fato das Ordens mendicantes estarem muito vivas no final do século 15, foi crucial para a decisão dos espanhóis em enviar sobretudo franciscanos e dominicanos para evangelizar a América. Aliás a vida monástica na Espanha estava em fase de reforma. Por isso a Coroa não pediu aos monges para se juntarem ao novo movimento de evangelização. Só as monjas dessas Ordens foram convidadas a ajudar na intenção dessas missões, com sua oração e seu modo de vida. Na história do Peru, contudo, diz-se que houve um pequeno grupo de monges que veio da Espanha. De fato, os Jeronimitas e os monges de Monserrate estabeleceram-se no país, mas como uma simples presença, sem nenhum desenvolvimento.

Houve também, e é admirável, um mosteiro cisterciense fundado no século 16 em Lima, por uma mãe e sua filha, Lucrécia de Sanzoles e Mencia de Vargas : o mosteiro da Santíssima Trindade. Com aprovação do Papa, a fundação foi erigida por São Turíbio de Mongrovejo, então arcebispo de Lima. O mosteiro existiu desde o século 16 até aos anos 1960, quando foi supresso. As monjas cistercienses de Huelgas (Espanha) vieram em 1992 para refundar o mosteiro na periferia de Lima, em Lurín, onde retomaram a história desse mosteiro. Elas voltaram para Espanha em 2017, por falta de vocações, e pediram-nos para assumir o lugar onde estão enterradas as fundadoras e monjas cistercienses, que morreram. É lá que nós vivemos, continuando a história e a tradição, e sobretudo a oração de uma comunidade monástica na Igreja do Peru. Os fatos históricos manifestam, seguramente, que Deus trabalha segundo perspectivas inesperadas.

Menciono estes fatos históricos porque depois de quatro projetos abortados, vindos de regiões e de congregações beneditinas diferentes, nós sobrevivemos pela graça de Deus. Somos a primeira comunidade beneditina no Peru, vivendo a vida monástica com, unicamente monges peruanos. O monaquismo masculino é quase desconhecido no Peru. Mas o Senhor inspirou homens a viverem um estilo de vida, que existe desde os primeiros séculos da Igreja no seio de uma rica tradição.

Pessoalmente não conhecia muita coisa da vida monástica, por não existirem muitas informações sobre o assunto na Igreja do Peru. As primeiras Ordens estabelecidas no país eram mais conhecidas. No entanto, o Senhor chama homens e mulheres para o procurarem na perspectiva dinâmica de uma vida de oração e de trabalho, com o Ofício Divino, a lectio e o estudo, o acolhimento e o acompanhamento espiritual, no interior do claustro e para a Igreja e o mundo inteiros.

Entrei no mosteiro quando tinha 20 anos. Encontrei uma pequena comunidade fundada em 1981 (2 anos antes de eu nascer) pela abadia de Belmont na Inglaterra. Fui convidado a visitá-lo, sem saber a imensa alegria que ia produzir em mim aquela hora de oração em que iria participar : as Completas. Fui cativado e tocado no mais profundo do meu ser. Algo de estranho e de novo aconteceu. Experimentei o conhecimento do que era a vida monástica. Rezar os salmos foi, concretamente, para mim um encontro com Deus, na minha própria vida de fé.

Não conhecia nada da cultura monástica. Progressivamente aprendi mais sobre sua história, o sentido, a riqueza e o objetivo desse tipo de vida. Foi um encontro com Deus por meio de um caminho bem misterioso. O Senhor me fez fazer a experiência do seu chamado e da minha resposta no contexto da vida monástica.

Como já disse, não havia verdadeiramente história monástica nos países de língua espanhola na América do Sul. Diferentemente do Brasil, de língua portuguesa, os outros países da América do Sul só receberam as primeiras fundações monásticas no final do século 19. É interessante notar que se o monaquismo é o ponto de partida da vida religiosa na Igreja, na vida religiosa do continente latino-americano, é uma realidade totalmente nova.

Minha comunidade e eu mesmo no Peru fizemos a experiência da presença de Deus à medida que nos desenvolvemos na terra deserta deste país. A comunidade tem, agora, sete monges de votos solenes, há dois noviços e um certo número que se prepara para entrar.

O Senhor me chamou para viver a vida monástica num tempo e num espaço determinado. Convidou-me, assim como a meus irmãos, a seguir o Cristo segundo a Regra de São Bento. É assim que a vida monástica se estabeleceu no nosso país, para que em tudo seja Deus glorificado.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/117


sábado, 19 de abril de 2025

Cristo, nossa Páscoa!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Leomar Antonio Brustolin,

Arcebispo Metropolitano de Santa Maria, RS


‘A palavra ‘Páscoa’ remonta ao ambiente semita, cujo significado é ‘passagem’. Povos antigos, de tradição agrícola, festejavam a passagem do inverno e a chegada da primavera. Na claridade da lua cheia, os pastores imolavam os primeiros cordeiros, acreditando que esse sacrifício asseguraria proteção contra as influências do mal. Comiam a carne numa refeição familiar que cultuava os laços de parentesco e da tribo.

O povo judeu deu um novo sentido a essa passagem. Na entrada da primavera celebravam a Páscoa fazendo memória do anjo que passou pelas portas das casas dos hebreus, marcadas pelo sangue dos cordeiros e que poupou da morte os primogênitos deles antes da travessia do mar Vermelho, quando foram libertados da escravidão egípcia. Essa festa é celebrada ainda hoje entre as famílias israelitas. O simbolismo das antigas culturas pastoris e agrícolas adquiriu um novo significado: as ervas amargas, que outrora eram consumidas na refeição noturna dos pastores, entre os judeus significam a lembrança do tempo difícil da escravidão. Os pães sem fermento evocam a miséria no Egito e a pressa com que os israelitas partiram, sem ter tempo de levedar a massa. É celebrada na primavera, pois no começo dessa estação Israel saiu do Egito. É uma festa noturna, porque o Êxodo se realizou em noite iluminada pela lua cheia (cf. Dt 16,1).

Nós, cristãos, assumimos essa festa como a passagem da paixão e da morte de Jesus Cristo para a sua ressurreição e vitória eterna. Em Jesus Cristo se revela o mistério pascal da cruz e da ressurreição. A passagem que Jesus oferece à humanidade é do vazio e do absurdo para a plenitude do sentido. O mistério pascal celebra a vitória do impossível e a possibilidade do impensável. Em Jesus Cristo, a humanidade recebe a salvação de Deus, o perdão dos pecados e a vida que não conhece mais o fim.

Celebrar a Páscoa é considerar a unidade inseparável entre cruz e ressurreição. O crucificado da Sexta-feira Santa é o vitorioso ressuscitado do Sábado Santo. Separar a cruz da ressurreição é esvaziar o sentido da Páscoa. Se celebrássemos apenas a morte de Jesus de Nazaré, perderíamos a novidade surpreendente de Deus, que é capaz de renovar todas as coisas e dar nova vida ao que já morreu. Se celebrássemos, no entanto, somente a ressurreição, esvaziaríamos o sentido das experiências de cada dia, marcadas por sombras e preocupações, angústias e tristezas e até sonhos e desejos de um mundo melhor. A Páscoa cristã celebra a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo : rosto humano de Deus, rosto divino do ser humano.

A Páscoa nos ensina que o povo de Deus não pode deixar de sonhar, de desejar e esperar. Contra todo desespero e ilusão é necessário seguir criando e trabalhando por um mundo melhor. Apesar dos impérios da morte, da potência do vazio, do absurdo e das propostas que favorecem uma minoria mundial, o cristão não pode deixar de profetizar em favor da vida, da dignidade humana e da preservação do cosmos.

Pode parecer estranho, mas a única maneira de os cristãos mostrarem-se realistas é aspirar ao impossível. Caminha-se neste mundo rumo ao futuro de Deus, onde estarão unidos para sempre o Céu e a Terra. Tudo se dirige para a mesma meta: o Senhor que ressuscita e vem, o mundo que chegará à sua plena realização em Cristo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/cristo-nossa-pascoa.html

sexta-feira, 18 de abril de 2025

A Cruz e a Igreja Católica

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Lino Rapazzo


‘Abrindo o livro de Atos dos Apóstolos, escrito por São Lucas, podemos verificar como nasceu a Igreja. Foi pelo anúncio do Evangelho. 

‘Evangelho’ é um termo de origem grega que significa ‘bom anúncio’. Qual foi esse ‘bom anúncio’? Podemos responder com a seguinte afirmação : Jesus Cristo morreu e ressuscitou para a nossa salvação. 

Simplesmente do ponto de vista histórico, a morte de Jesus foi o assassinato de um inocente, mas, à luz da fé, sua morte foi o maior ato de amor da história, que salva a humanidade. Graças a esse grande ato de amor, Deus perdoa os homens, que são irmãos de Jesus, por isso Ele se tornou homem. É o Cristo mesmo que transmite o sentido verdadeiro da sua morte, mais exatamente nas palavras da consagração da Última Ceia : ‘Isto é meu corpo, dado por vós : fazei isto em memória de mim’ (Lc 22,19); ‘Este cálice é a nova aliança em meu sangue, derramado por vós’ (Lc 22,20).

É a partir desse anúncio que Pedro, no dia de Pentecostes, pede que os ouvintes da mensagem se arrependam dos pecados, recebam o Batismo e entrem a fazer parte da Igreja. Os novos cristãos ‘perseveraram na doutrina dos apóstolos, na vida da comunidade, na fração do pão, e nas orações’ (At 2,42). 

Ressalta-se que a expressão ‘fração do pão’ indicava a celebração da santa Missa. Nessa celebração, como acima lembrado, os cristãos sentem-se estritamente ligados à cruz, graças ao corpo de Cristo, ‘dado por nós’, e ao sangue de Cristo, ‘derramado por nós’.

Voltamos ao grande mistério do sofrimento e da morte de Cristo. Isso é demonstrado pela atitude dos discípulos de Emaús, que tinham perdido a esperança em Jesus diante da sua condenação à morte. A essa altura, o mesmo Jesus explicou como devia ser interpretada sua terrível morte : ‘Não era necessário que o Cristo sofresse essas coisas para entrar na sua glória? E, começando por Moisés e percorrendo todos os profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que lhe dizia respeito’ (Lc 24,26-27).

A partir dessa ‘base da nossa fé’, começamos todas as nossas orações com o sinal da cruz, vivenciamos a sexta-feira como o dia da cruz de Cristo e o domingo como o dia da ressurreição. Celebramos a Semana Santa, com destaque na quinta-feira, dia da Última Ceia, na sexta-feira, dia da morte de Cristo, e no domingo da Páscoa, dia da ressurreição.

Vamos concluir estas reflexões com o hino que o apóstolo Paulo nos apresenta na Carta aos Filipenses : ‘Cristo Jesus, apesar de sua condição divina, não reivindicou seu direito de ser tratado como igual a Deus. Ao contrário, aniquilou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens. Por seu aspecto, reconhecido como homem, humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte e morte de cruz. Por isso Deus o elevou acima de tudo e lhe deu o nome que está acima de todo nome, de modo que ao nome de Jesus todo joelho se dobre nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai’ (Fl 2,6-11).’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/a-cruz-e-a-igreja-catolica.html

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Uma experiência de liberdade interior para a união com Deus

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo do Irmão Edmond Amos Zongo, OSB

Mosteiro de Koubri (Burkina Faso)


‘Com estas linhas gostaria de tentar dizer o que representa a vida religiosa na Igreja, e por isso, o que a vida monástica representa para mim.

Em nossos dias, a vida monástica parece, aos olhos de muitos jovens cristãos, um tipo de vida religiosa de uma época passada, pois para eles o monge não faz apostolado direto, etc. Não tentarei justificar-me, pois para mim a vida monástica tem sua fonte no Evangelho. Palavra viva, atual, que lhe dá sua utilidade. É fácil apreciar positiva ou negativamente a vida monástica do exterior, mas falar de uma experiência única é, ao mesmo tempo mais difícil e mais útil. Sou jovem e quase sem experiência para falar do que vivo. Só os verdadeiros monges, quero dizer, aqueles que já viveram pelo menos uns trinta anos de vida religiosa poderiam fazê-lo. Mas mesmo assim, direi o que sinto.

Chamo-me irmão Edmond Amos Zongo. Senti o chamado à vida religiosa como muitos outros, quando era muito jovem; falei com o padre encarregado das vocações na minha paróquia. Ele orientou-me para o seminário menor para ser padre diocesano. Mas eu disse-lhe que sentia, em mim, o chamado para uma vida mais contemplativa do que ativa ; no entanto, como não conhecia nenhum mosteiro na Africa, isso me parecia difícil. Ele disse-me que existia um mosteiro beneditino na arquidiocese de Ouagadougou, e encarregou-se de dar os passos necessários em meu lugar. Deus seja louvado!

O primeiro contato com o mosteiro foi em 1995. Depois de diversos tempos de experiência, entrei em outubro de 1997. No final do noviciado, fiz a profissão temporária em 18 de outubro de 2001 e a solene em 10 de fevereiro de 2007.

A vida monástica é uma forma de vida religiosa, com o compromisso de seguir os conselhos evangélicos que a história resume nos três votos de pobreza, castidade e obediência. Para os monges que seguem a regra de São Bento há o voto de obediência, o de estabilidade e o de conversão de sua vida, que engloba a pobreza, a castidade e as outras dimensões da vida religiosa. O monaquismo é a forma mais antiga da vida religiosa cristã. Sua particularidade, para mim, está no fato de estar centrada mais na oração do que no trabalho. A nossa Ordem tem como lema ‘Ora et Labora’. Ora está na frente. A tradição colocou-a em primeiro lugar, pois São Bento não queria que o trabalho dominasse a oração : a tendência natural do homem é pôr o trabalho em primeiro lugar. Um provérbio dos comerciantes diz que ‘o cliente passa, mas Deus é estável’ Assim o trabalho passa, mas tu podes sempre rezar na hora que quiseres. São Paulo dá um puxão de orelhas nos cristãos, com este mesmo lema ‘Quem não quer trabalhar, também não coma’ (2 Ts 3,10). Pois Deus colocou o homem na terra para este continuar a sua obra : ‘viverás do suor do teu rosto’ (Gn 3,17-19). Apesar de tudo, é uma glória de São Bento ter reabilitado o amor ao trabalho, ‘a ociosidade é inimiga da alma’ (RB 48). Nos votos monásticos cada um tem um papel complementar em relação ao outro, no entanto o monge deve rezar em todas as circunstâncias, inclusive, pondo em prática a obrigação do trabalho.

A pobreza : em primeiro lugar devemos fazer uma diferença clara entre a pobreza de que fala Jesus, e uma certa pobreza que é sinônimo de miséria. Na miséria não se pode procurar a Deus. Há um provérbio que o diz muito bem ‘Quem tem fome, é surdo a toda a palavra’ (‘Em casa onde não há pão, todos falam e ninguém tem razão’). A pobreza evangélica é uma pobreza escolhida livremente, para chegar ao objetivo proposto pelas bem aventuranças, ‘felizes os pobres, pois é deles o Reino dos Céus’ Como discípulo de Jesus, escolhi esta forma de pobreza para ser livre de todos os apegos, para poder servir livremente. É somente na vida cristã e religiosa que a pobreza é vista como uma virtude. Nosso mundo tem horror desta palavra, pois cada um, jovem ou velho, quer ser livre, enquanto que a pobreza nos obriga a viver dependente de alguém.

A castidade igualmente ajuda os religiosos/as a consagrarem-se totalmente a serviço da Igreja para poder ser irmão ou irmã de todos, sem exceção de raça ou de etnia. Não tendo mulher, nem filhos, procuramos amar toda pessoa, com o próprio amor de Cristo : ‘Amai-vos uns aos outros como eu vos amei’. Sem o voto de castidade penso que me seria difícil, digo mesmo impossível, consagrar-me inteiramente a serviço da Igreja universal. Mas sei que é o voto mais difícil e mais complicado. Atualmente uma das fraquezas da Igreja católica vem deste voto, que cria dificuldades aos homens e mulheres consagrados a serviço da Igreja. Para mim, só a vida comunitária pode me ajudar a viver plenamente este voto. É muito exigente e pode deixar-nos mal à vontade.

Daqui chego ao voto de obediência. São Bento fala da obediência em três capítulos : RB 5; 68;71 (o cap. 72 é para mim um complemento do 71). A obediência para mim, que sou um Mossi (uma das etnias do Burkina) não é muito difícil, pois na nossa cultura o mais novo é obrigado a obedecer ao mais velho. Mas será essa a obediência de que fala São Bento? Diria que não. Pois São Bento fala de dois tipos de obediência. No capítulo 5 da RB é a obediência aos superiores, enquanto que no capítulo 71 trata-se de obediência mútua. É aqui que a obediência exige um discernimento : é difícil obedecer a um inferior. Para que se torne mais fácil, é preciso que o monge esteja verdadeiramente impregnado da vida monástica. Não obedece a um ser humano, mas a uma ordem vinda de Deus, transmitida por um próximo. Quem consegue chegar a tal grau de percepção, não tem mais dificuldade na obediência.

A estabilidade, voto próprio dos monges, liga o monge a um lugar fixo. Ali, onde o monge se engaja, essa comunidade, torna-se para ele uma nova família, mais que uma família adotiva, esta comunidade torna-se para ele como um bem privado. O voto de estabilidade nos ajuda e até nos obriga, a cultivar um clima de paz, pois desde agora estamos condenados a ver, todos os dias, as mesmas caras, quer dizer as mesmas pessoas. Com o voto de estabilidade descobrimo-nos a nós mesmos, e aos outros, completamente : podemos afirmar que  conhecemos tal irmão por ter vivido com ele 15 anos, quarenta ou mais, no mesmo mosteiro. A vida monástica é caraterística de tal fenômeno. A estabilidade é um valor a cultivar.

Por que é que os monges se retiram do mundo para viver à parte? Quanto mais uma alma se separa, se liberta, mais está apta a atingir seu Criador e disposta a acolher as graças de Deus. É Jesus quem nos mostra a importância de um lugar à parte, para um tempo de face a face com Deus. Quando Jesus se retirava, não era para descansar, mas para estar com aquele que ele chamava seu Pai. Os monges não inventaram a oração, nem o pôr-se à parte para poderem se unir a Deus. Cada vez que Jesus tinha uma coisa importante a fazer, ou a decidir, retirava-se para a montanha. Para mim, a altitude simboliza o deserto de que falam os antigos. Em toda a religião há oração : é o lugar, por excelência, de silêncio, que permite entrar em contato com Deus. Cada dia, o monge cultiva este clima de silêncio nele e à volta dele. É o amor pelo silêncio que leva o contemplativo a ter um tempo para parar, para se retirar no deserto. Este silêncio permite-lhe estar sozinho com o Só. Retirando-me do mundo tenho mais tempo para louvar a Deus, e ao mesmo tempo mais tempo para implorar a bondade de Deus para todos os homens.

O que gosto mais na vida monástica é a vida comunitária, a oração com sua dimensão de silêncio, e o trabalho. A vida é feita para ser partilhada. O monge cenobita é aquele que vive sem ser sozinho. Deus está com ele, e ele está ligado a uma comunidade. Na vida comunitária vivo com irmãos; ajudamo-nos mutuamente para tentar avançar para a perfeição, passo a passo, seguindo o ritmo de cada um, dia após dia. Esta verdadeira ajuda mútua, ou partilha, toca todos os campos : serviço prestado, encorajamento mútuo e, sobretudo, o amor que temos uns pelos outros. Na vida comunitária reencontro o tipo de família que deixei. É da oração que a comunidade tira a sua força para a vida fraterna. Uma comunidade que não reza, não pode ser, verdadeiramente, uma comunidade religiosa; é, no mínimo, uma associação em vista de um determinado objetivo.

É por meio do trabalho que a comunidade dos irmãos ganha a vida : pois nosso Pai São Bento deseja que ‘os irmãos vivam do trabalho de suas mãos’ (RB 48,8). Para mim; a vida monástica é para a Igreja universal o que é o ar para o corpo humano. Sem uma vida totalmente consagrada à oração, para si e para os outros, o mundo estaria sob o domínio do mal. Sou feliz por ser monge, pois estou convencido da utilidade da vida monástica; mesmo que o meu ministério seja invisível, é importante e insubstituível. Mesmo que a Igreja deixe de ter escolas para a educação de crianças, cada país pode e deve assegurar essa responsabilidade, enquanto que para a oração não é assim. Mesmo em países de caráter religioso, o Estado não pode impor que todo o mundo reze.

A oração na vida monástica : na vida monástica damos a Deus nossa vida, nossa fé, todo o nosso ser. Ele torna-se nossa segurança, nossa força e, simplesmente, nossa fonte de vida. Posso ser traído por meu próximo, mas nunca o serei por Deus. Minha fé e minha confiança apoiam-se no Filho de Deus que morreu e ressuscitou para salvar o homem, a começar por mim mesmo. Que há de mais normal do que fazer todo o possível para lhe mostrar meu reconhecimento. Deus é misericordioso. Esta misericórdia sente-se fortemente na vida monástica, pois cada dia conto com Ele. Ouso dizer que a originalidade da nossa vida consiste em mostrar que o amor de Deus (ágape) se concretiza, ou melhor, deve se concretizar, quando nos amamos como Deus quer. Sobretudo quando canto o salmo 132 (Como é bom, como é suave os irmãos viverem juntos, unidos), vivo a alegria do ideal monástico que é tão difícil de alcançar. É na oração que encontro Deus, que posso falar com ele, como com meu Mestre e meu Salvador. Fui criado para viver na presença contínua de Deus, é isso que significa ser religioso. O religioso é um homem ligado ao Ser supremo. Ele quer que o descubramos sempre mais. Nesta forma de vida religiosa como é que se pode entrar em contato com Deus senão pela oração? Na minha oração de cada dia, não cesso de pensar em todos aqueles que põem sua confiança em Deus, e imploro a misericórdia dele para todos os que precisam de alguma oração. A vida monástica devia nos fazer tender, todos os dias, para a perfeição : conhecer o Senhor, amá-lo, é minha maior felicidade.

Agora quero tocar num outro ponto da oração própria aos monges : a lectio divina. É necessário precisar bem o que significa este termo : lectio divina, pois pode designar também um estudo, ou a leitura de uma obra espiritual. De fato, seu sentido verdadeiro é sobre uma leitura da Sagrada Escritura. Outras tradições religiosas conhecem a meditação. A lectio é uma leitura que leva à meditação. Só se digere depois de comer. A meditação é quando se tem alguma coisa na memória. A lectio abre-se para a meditação, que se transforma em oração ou contemplação. A meditação das Escrituras equivale ao mastigar o alimento. Esta ruminação do texto consiste em ler a Escritura, deixando-se transformar por ela. Desta iluminação do texto brota o sentido espiritual. É o Cristo que dá esta iluminação. Portanto, todo monge deve ser um especialista da leitura, pois cada dia faz a lectio. Com a lectio, diria que a leitura é uma arte que se deve aprender. Não é porque sou capaz de juntar as letras do alfabeto, que sei ler. Na lectio lê-se sabendo o que se quer aproveitar.

Desde que estou na vida monástica, embora cada dia tenha os seus problemas e suas dificuldades, sinto-me muito à vontade. O provérbio diz que não há um país ideal, mas que é preciso saber viver e integrar-se bem. Quando entrei nesta vida tinha um projeto que continuo a desejar : a perfeição. Viver sem objetivo leva ao desânimo. No dia do desânimo, se tens um objetivo, podes ultrapassar esse desânimo.

Queridos irmãos e irmãs leitores, para concluir este trabalho peço vossa clemência, pois isto é fruto da experiência de um jovem monge e não de uma pessoa experimentada. Sei que alguns acharão esta experiência edificante, outros pensarão o contrário. O que é que um noviço pode trazer a pessoas que devoraram os escritos dos grandes espirituais, como São Bento, Santo Anselmo, São Domingos ou outros? Obrigado àqueles que se interessaram por esta leitura.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/117