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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O Decreto Apostolicam actuositatem sobre o Apostolado dos Leigos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Em nosso espaço Memória Histórica - 50 anos do Concílio Vaticano II, vamos continuar a tratar sobre os documentos conciliares, apresentando na edição de hoje, o Decreto Apostolicam actuositatem sobre o Apostolado dos Leigos.

O Decreto Apostolicam actuositatem foi promulgado pelo Papa Paulo VI em 18 de novembro de 1965. Dividido em seis capítulos, o documento inicia falando sobre a importância e a atualidade do apostolado dos leigos na vida da Igreja e conclui com uma exortação à generosidade : ‘Por isso, o sagrado Concílio pede instantemente no Senhor a todos os leigos, que respondam com decisão de vontade, ânimo generoso e disponibilidade de coração à voz de Cristo, que nesta hora os convida com maior insistência, e ao impulso do Espírito Santo. Os mais novos tomem como dirigido a si de modo particular este chamado, e recebam-no com alegria e magnanimidade. Com efeito, é o próprio Senhor que, por meio do sagrado Concílio, mais uma vez convida todos os leigos a que se unam a Ele cada vez mais intimamente, e sentindo como próprio o que é dele, se associem à sua missão salvadora’.

Quem nos apresenta o Decreto Apostolicam actuositatem, é o Presidente da Comissão Episcopal para o Laicato da CNBB e Bispo de Caçador (SC), Dom Severino Clasen :

É um documento que nasce a partir dos outros documentos da Igreja. São diversos que ao longo da história da Igreja vão sendo produzidos para a participação dos cristãos na Igreja e na sociedade. Por exemplo, antes do Concílio Vaticano II, temos alguns documentos tipo Aeterni patris de 1879, depois 1891 temos a Rerum Novarum. São grandes documentos que falam da participação dos leigos na sociedade e o mundo como caminha nas suas grandes transformações. Assim também, no Concilio Ecumênico Vaticano II, com a produção dos diversos documentos que temos aí, vamos citar sobretudo a Lumen Gentium e a Gaudium et spes, que fala da Igreja e sua missão no mundo, e também a Igreja e a transformação da sociedade, a doutrina e tudo mais. Dentro destes documentos, surge este documento do apostolado dos cristãos leigos e leigas, a missão deles na Igreja e na sociedade. Claro, que este decreto teve grandes discussões. Nós podemos imaginar, quando mais de 2.500 bispos reunidos neste Concílio, alguma coisa tem que se produzir de alto nível. E o pensamento do Concílio Ecumênico Vaticano II, produziu aquela ideia ‘Igreja, povo de Deus’. Uma nova maneira de interpretar, de entender a Igreja. A valorização dos cristãos leigos e leigas. E como já havia na época, antes da guerra e depois no pós-II Guerra Mundial, muitos documentos que começam a surgir a ação dos leigos. Temos aí a Ação Católica. Nós aqui no Brasil, depois nós temos a Ação Católica, temos diversos grupos, a Ação da Juventude. Eram expressões de grupos de leigos, tentando mostrar a sua participação e comprometimento com o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. Então nesta miscelânea de iniciativas, tentativas que já se encontrava e a Igreja gemendo, diria assim, como dores de parto, na necessidade de uma mudança, de uma transformação e tudo mais. E por isto o Concílio Ecumênico Vaticano II percebeu que não tem como produzir um Concílio sem falar de Leigos. E para dar um destaque especial, aí surge este documento. Foi preparado e até quando foi aprovado em 1965, mais precisamente foi no dia 18 de novembro, quando inclusive a Comissão do Laicato no Brasil celebrou, fez uma dedicação sobre isto, para que de fato a gente colocasse esta ideia da participação dos cristãos leigos e leigas’.’


Fonte :


domingo, 6 de setembro de 2015

A Igreja dos Leigos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Padre José Rebelo,
Missionário Comboniano


O papel fundamental dos leigos, além da caridade, está na evangelização pelo testemunho da vida quotidiana.


‘O que é a Igreja? Qual é o pensamento que nos vem de imediato à mente, sempre que ouvimos a palavra «Igreja»? Todos chegamos à mesma conclusão : o papa, os bispos e os padres... Por vezes acrescentamos os consagrados. Mas todo o batizado não é Igreja?

Recordo as minhas aulas de Direito Canônico e recorro à minha apostila onde leio o Decreto de Graciano, do século XII : «Existem duas espécies de cristãos. Aqueles que se ocupam com a liturgia e a oração e que se dedicam à contemplação : a esses pede-se que estejam longe da confusão das coisas temporais. Estes são os clérigos. Klêros quer dizer parte escolhida […] Existe outra espécie de cristãos : os leigos. Laos quer dizer povo. Estes podem possuir bens temporais, podem casar, cultivar a terra, ocupar-se da justiça civil, fazer ofertas e pagar as décimas: e assim poderão salvar-se, fazendo o bem e evitando o mal

O Concílio Vaticano II procurou destruir esta ideia, por isso referimo-nos a ele como o Concílio dos Leigos. Porém, dos textos promulgados não emerge um desenho completo e orgânico do papel destes na doutrina e na pastoral. Não era essa a intenção dos padres conciliares. No entanto, o uso de conceitos como «Povo de Deus» ou «Comunhão», procuram esse ideal : a Igreja, graças ao Batismo, como participação de todo o corpo eclesial.

Ao acompanhar o Papa Francisco nos seus gestos e nas suas palavras, esta forma de Igreja entra em ruína... O apelo que faz, respeitando os ministérios de cada um, destrói esta dualidade. A atenção que dá aos pobres e a quem com eles trabalha é uma das suas marcas de água. Se acompanharmos as homilias das celebrações em Santa Marta, vemos o cuidado com que se refere aos leigos e a luta contra as «zonas de conforto» em que a hierarquia pode «cair em tentação».

A valorização inegável dos leigos está, sobretudo, na ativa participação no ministério da Igreja, enquanto catequistas, animadores litúrgicos, colaboradores na assistência aos pobres e doentes... Mas se ficarmos apenas por esta colaboração, caímos, de novo, no clericalismo... Se os vemos apenas como colaboradores ou como suplemento da ação do sacerdote, favorecemos e perpetuamos esta dualidade e pomos em risco a construção de uma verdadeira comunidade de batizados. Surge assim, como necessária, uma formação mais profunda do que é ser Igreja, na palavra e na ação.

Creio que o papel fundamental dos leigos, além da caridade, está na evangelização pelo testemunho da vida quotidiana. O Evangelho será melhor anunciado, quanto melhor for narrado por cristãos adultos na fé no confronto com os outros adultos. Sem dúvida que o clero, seja na condição de serviço à Igreja universal ou particular, terá sempre a responsabilidade desse primeiro anúncio à comunidade humana. Mas é impensável que seja o único. A Igreja precisa de pessoas comprometidas e empenhadas em evangelizar o mundo.

Os leigos anunciam o Evangelho onde vivem, por palavras e obras; vivem de várias formas o múnus profético, real e sacerdotal recebido pelo Batismo; contribuem, através da sua especificidade, para a compreensão do Evangelho na Igreja e do «nós» na vida eclesial.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuuEElVVAVLFGJQpFg


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Emirados Árabes Unidos : Uma Igreja migrante

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Francesco Strazzari, Jornalista

‘A 31 de Maio de 2011, com um decreto da Congregação para a Evangelização dos Povos, assinado pelo prefeito, cardeal Ivan Dias, foram erigidos o Vicariato Apostólico da Arábia do Norte, que se estende por uma superfície de 2 179 856 quilómetros quadrados; tem uma população de cerca de 35 milhões de habitantes e compreende o Bahrein, o Kuwait, o Qatar e a Arábia Saudita, sob a orientação pastoral de D. Camillo Ballin, um comboniano italiano. E o Vicariato Apostólico de Arábia do Sul, que compreende os Emirados Árabes Unidos, o Omã e o Iémen, estende-se por uma superfície de 929 969 quilómetros quadrados e tem uma população de 36 877 959 habitantes, dos quais 882 500 católicos, 15 paróquias e 53 sacerdotes, sob a orientação de D. Paul Hinder, um capuchinho suíço de 71 anos.


Situação desconhecida

«Muitos europeus que não conhecem a situação certamente pensam que na Arábia não haja cristãos e que portanto mesmo para um bispo não haverá lá nada que fazer», relata o bispo Paul Hinder. «Eu mesmo, até 1994, quando fui eleito para o governo central da Ordem dos Capuchinhos, tinha quase a mesma opinião. Mas quando, em Dezembro de 1997, visitei pela primeira vez os nossos confrades do golfo Pérsico, tive de corrigir radicalmente a minha maneira de pensar. Encontrei aí uma variada fileira de capuchinhos e de outros sacerdotes oriundos de países diferentes, que no seio de uma sociedade islâmica assistiam pastoralmente comunidades cristãs bastante vivas de católicos provenientes de mais de uma centena de nacionalidades.»

Continua o bispo: «Como quer que seja, não se podia deixar de notar também durante o sínodo dos bispos do Médio Oriente, em Outubro de 2010, em Roma, que destes países se sabe muito pouco. Quando se fala de cristãos do Médio Oriente, a maior parte pensa nas Igrejas orientais antigas, que, não obstante as muitas dificuldades, sobreviveram até hoje ao longo de uma história rica de lutas e muitas vezes também de sofrimentos. Só uma parte delas vive em comunhão com a Sé Apostólica, por exemplo, os maronitas ou aquelas minorias que no curso da História se expressaram pela união com a Igreja de Roma, desligando-se das suas Igrejas mães.»


Novos desenvolvimentos

«Nos últimos anos, verificou-se uma notável imigração de cristãos nos países do Médio Oriente em ascensão económica, especialmente nos do golfo Pérsico. Estes países, a partir dos anos 60 do século passado, atraem cada vez mais investidores e mão-de-obra de todas as regiões do mundo, em particular da Ásia. Actualmente nestes países há pelo menos três milhões de cristãos católicos.»

«A migração conduz a uma situação paradoxal: enquanto muitas Igrejas orientais nas suas zonas de origem, desde o Egipto ao Iraque, têm cada vez menos fiéis – embora tenham muitas vezes estruturas dispendiosas e múltiplas instituições – nos países do golfo Pérsico tem-se vindo a formar uma Igreja de migrantes, jovem, vital, vibrante, mas estruturalmente frágil. O número global destes fiéis parece rondar os 50 por cento de todos os católicos que residem no Médio Oriente. Deles fazem parte fiéis de mais de uma centena de nações, de inúmeras zonas linguísticas e de ritos diferentes. Os fiéis de rito latino rondam os 80 por cento, enquanto cerca de 20 por cento pertence às diversas Igrejas católicas orientais.»

«A Igreja é e permanece por ora uma Igreja de migrantes e para migrantes», conclui o bispo. «Para os fiéis, que vêm de todas as partes do mundo, mas sobretudo das Filipinas e da Índia, a pertença à Igreja Católica é muitas vezes o único ponto firme de referência. Pode estar aqui uma explicação para a surpreendente actividade e vitalidade das nossas comunidades. Essa gente é muitas vezes religiosamente mais activa do que nos seus países de origem.»


Igreja de estrangeiros

Os católicos na Península Arábica são pois «expatriados», isto é, operários, funcionários e empresários estrangeiros, activos na construção civil, na indústria do petróleo e do gás, nos serviços de saúde e noutros serviços, como nos trabalhos domésticos, no turismo, nos bancos e na administração. Provêm de todos os continentes. É notável a presença de católicos que falam árabe, originários dos países do Médio Oriente, especialmente do Líbano, Síria, Jordânia, Palestina, Egipto, Iraque.

«A flutuação da população estrangeira residente, que depende do desenvolvimento económico – observa o bispo Hinder – faz que tenhamos fiéis de todas as tradições eclesiais. Apesar de os católicos pertencentes ao rito latino serem cerca de 80 por cento, há todavia um número consistente que provém das Igrejas orientais sui iuris [igrejas orientais que estão em comunhão com Roma] (maronitas, melquitas, coptas dos países de língua árabe; arménios e – sobretudo – siro-malankares e siro-malabares originários do Kerala, na Índia)».

«Compreende-se porque é que as Igrejas, que experimentam uma diminuição de fiéis nas regiões de origem ou que dependem da ajuda externa, mostram um crescente interesse pelos seus membros que estão emigrados de modo permanente ou de modo temporário. Todavia, no caso dos países islâmicos do Golfo, a falta da completa liberdade de religião e de culto torna muitas vezes difícil ou até mesmo impossível a criação de estruturas próprias para todas as tradições eclesiais. Por isso em 2003, depois de intensas e acesas discussões, a Santa Sé decidiu que, para salvaguardar a unidade eclesial no interior e no exterior, todos os fiéis de qualquer rito para a jurisdição dependam exclusivamente do vicariato apostólico. Esta decisão de princípio, que encontra não poucas resistências, foi mais do que uma vez reconfirmada pela Santa Sé. Por conseguinte, os dois vigários têm a obrigação de garantir aos fiéis das diversas Igrejas católicas orientais a necessária assistência pastoral juntamente com o cuidado da sua liturgia e das suas tradições, tanto quanto seja possível e consentido no âmbito dos limites dos diversos países.»


Nova identidade

D. Hinder faz questão de sublinhar que «muitas vezes não se considera que os fiéis da Igreja dos migrantes dos Estados do Golfo fazem uma nova experiência de fé e de igreja. Pessoas, que na sua pátria eram sujeitas a um rígido código de pertença a um clã familiar e a um determinado rito, de repente encontram-se numa comunidade cristã, na qual se vêem muitas cores de pele, muitas línguas, culturas e tradições eclesiais. É inevitável uma certa mistura e nivelamento das culturas religiosas. Mas nesta transformação da identidade religiosa não devem ser considerados apenas os perigos e a perda do seu rito. Em tudo isto há também a possibilidade de ultrapassar os limites étnicos, raciais e linguísticos e de crescer dentro de uma nova identidade verdadeiramente católica, isto é, universal. Por isso podemos mesmo considerar uma Igreja de migrantes, qual é a do Golfo, como uma espécie de laboratório de como a Igreja pode crescer e prosperar num ambiente onde há apenas poucas estruturas sólidas e onde existe apenas uma frágil segurança social e política. É uma situação que lembra muito de perto as Igrejas dos Actos dos Apóstolos e das Cartas do Novo Testamento, que certamente, pelo menos no início, eram em grande parte comunidades de migrantes e que tiveram de desligar-se das suas origens para se afirmar como fermento na sociedade. Só assim a Igreja pôde crescer e difundir-se. A imagem da semente, que cai na terra e tem de morrer para depois germinar e dar fruto, certamente é válida também a este respeito.»’

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Abaixo, depoimento de Dom Paul Hinder :


 Forte desempenho dos leigos

‘Nos países da região do Golfo notei logo desde o início o forte empenho dos leigos, homens e mulheres. Actualmente nos sete países da Península Arábica, quase três milhões de católicos, contamos com cerca de 90 sacerdotes. O seu número, relativamente reduzido se comparado com o número dos fiéis, tem como consequência que os sacerdotes sejam completamente absorvidos pelo ministério sacramental e pelo anúncio. Por isso, têm particular significado os carismáticos e os outros grupos de oração, as associações de leigos e assim por diante.

A catequese, que envolve cerca de 30 mil crianças nos dias previstos (quinta/sexta ou sexta/sábado) está na mão de catequistas, homens e mulheres, especialmente preparados, que desenvolvem o seu serviço gratuitamente. O mesmo se diga no tocante aos encontros de oração nos chamados labour-camps, complexos residenciais dos trabalhadores estrangeiros, e no tocante às visitas aos hospitais e às prisões, sempre que possível, para a assistência espiritual aos marinheiros e assim sucessivamente.

A celebração de uma liturgia, que seja envolvente e viva, só é possível graças à ajuda de fiéis empenhados. Voluntários põem-se à disposição para a distribuição da comunhão, para as leituras, para o serviço de ordem na igreja, para os coros. Sem a sua ajuda, a vida da paróquia não funcionaria. Dado que aos fins-de-semana, segundo a amplitude das paróquias, se chegam a celebrar vinte missas ou mais, compreende-se bem como é considerável e precioso o trabalho desenvolvido pelos fiéis, que se disponibilizam. Quem alguma vez passou uma semana no Dubai ou em Abu Dhabi ter-se-á apercebido como a celebração da eucaristia requer uma notável organização. Só para termos uma ideia: no Dubai são distribuídas semanalmente mais de 50 mil hóstias, em Abu Dhabi cerca de 25 mil.’


Fonte :

*Artigo na íntegra de  http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFllZuZVVyBuBSRkqj


sábado, 8 de fevereiro de 2014

Uma vida transbordante de sentido

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de P.E. Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano

‘Propusemo-nos para este ano um percurso à descoberta dos sentidos. Desejaria, porém, que esta nossa reflexão vocacional mensal fosse não só uma partilha de ideias, mas também uma contemplação de vidas, um contato com testemunhas de vidas cheias, transbordando de sentido e de beleza! Os ideais podem ser apreciados e admirados, mas entusiasmam e apaixonam só quando os vemos vivos e incarnados numa pessoa de carne e osso! Como o de Paulo, partilhado com os cristãos de Filipos.

Toda a vocação cristã é uma chamada a viver a vida em toda a sua exuberância. A existência do cristão não é uma vida rebaixada, mas elevada à sua máxima potencialidade. Uma existência que respira energia por todos os poros da pele, que saboreia de verdade o gosto de viver. Uma vida profundamente rica de sentido, porque se alimenta de toda a capacidade sensorial de que Deus nos dotou, com os cinco sentidos físicos e espirituais. Orígenes diz que «há dois homens em cada um de nós: como há um homem exterior assim há também um interior». A cada sentido físico corresponde um «sentido espiritual» da alma, do «homem interior».

Queria apresentar-vos hoje o testemunho de uma «vida transbordante de sentido»! Trata-se de Ana Lena (Annalena) Tonelli, uma leiga voluntária, missionária católica italiana, a «Madre Teresa» do povo somali. Recentemente decorreu o décimo aniversário do seu martírio. Ana Lena foi uma mulher extraordinária que viveu em silêncio, durante 33 anos, uma vida de radicalismo evangélico num ambiente completamente muçulmano, totalmente dedicada aos pobres. Foi assassinada no dia 5 de Outubro de 2003, precisamente no dia em que foi canonizado S. Daniel Comboni.

Ana Lena nunca gostou de falar de si mesma, mas em 2001 aceitou o convite insistente para participar em Roma num encontro sobre o voluntariado. Nessa ocasião, deu um extraordinário e emocionante testemunho, de que oferecemos alguns extractos. 


Viver para os outros

Sou Ana Lena Tonelli. Nasci na Itália, a 2 de Abril de 1943. Saí da Itália em Janeiro de 1969. Desde então, tenho vivido ao serviço do povo da Somália. Foram trinta anos de partilha. Optei por viver para os outros: os pobres, os que sofrem, os abandonados, os não amados… logo desde criança. Assim tenho vivido e assim espero continuar a viver até ao fim da minha vida.

Só queria seguir Jesus Cristo. Nada mais me interessava com tanta força: Ele e os pobres n’Ele. Foi por Ele que escolhi a pobreza radical… embora jamais possa ser tão pobre como um verdadeiro pobre… como os pobres de que está cheio cada dia da minha vida.

Eu vivo servindo, sem nome, sem a segurança de uma ordem religiosa, sem pertencer a nenhuma organização, sem salário, sem contribuições voluntárias para a minha velhice. Não sou casada porque assim o escolhi com alegria, desde a juventude. Queria ser toda para Deus. Era uma exigência da minha maneira de ser, a de não ter família própria. E foi o que aconteceu, por graça de Deus.


Proclamar o Evangelho com a vida

Parti da Itália após seis anos de serviço aos pobres numa favela da minha própria cidade. Convenci-me de que não poderia entregar-me por completo se ficasse na minha terra… as fronteiras da minha actividade pareciam-me demasiado apertadas… Compreendi bem depressa que se pode servir e amar em qualquer lugar, mas, entretanto, já me encontrava na África e sentia que fora Deus a levar-me para lá – e foi lá que fiquei, com alegria e com gratidão. Partira na decisão de «proclamar o Evangelho com a vida», a exemplo de Charles de Foucauld, que tinha incendiado a minha vida.

Passados trinta e três anos, continuo a proclamar o Evangelho apenas com a minha forma de vida e anseio por continuar a proclamá-lo assim até ao fim. É esta a minha motivação de base, juntamente com a paixão invencível pela pessoa ferida e menosprezada inocentemente, além da sua raça, da sua cultura e da sua fé. Procuro viver com respeito extremo por aqueles que Deus me deu. Até onde foi possível, assumi o seu estilo de vida. Vivo muito sobriamente em termos de habitação, alimentação, meios de transporte e vestuário. Renunciei espontaneamente aos costumes ocidentais. Tenho procurado dialogar com todos. Tenho oferecido carinho, amor, fidelidade e paixão. Que o Senhor me perdoe se estou a usar palavras demasiado grandes.


Vivo à espera de Deus

Praticamente, vivi sempre entre o povo da Somália; a princípio com os do Nordeste do Quénia; depois com os da Somália propriamente dita. Vivo num mundo que é rigorosamente muçulmano. Não há lá cristão algum com quem eu possa conviver. Duas vezes por ano, pelo Natal e pela Páscoa, o bispo de Jibuti vem celebrar a Eucaristia para mim e comigo.

Vivo sozinha porque as minhas colegas desta caminhada, que tal como os pobres fizeram da minha vida um paraíso na terra durante os meus dezassete anos de deserto, se dispersaram na altura em que fui obrigada a sair do Quénia. Aconteceu em 1984. O Governo do Quénia tentou perpetrar um genocídio contra uma tribo de nómadas do deserto. Era para eliminar cinquenta mil pessoas. Conseguiram matar mil. Mas eu consegui impedir que a chacina avançasse e se concretizasse. Por esta razão, fui deportada um ano mais tarde. Na altura daquela chacina, fui presa e apresentada a tribunal marcial… As autoridades disseram-me que me tinham feito duas emboscadas, a que miraculosamente escapara, mas que não teria essa sorte à terceira vez…

Posso afirmar que, durante a minha já longa existência, eu verifiquei várias vezes que não há mal que não venha ao de cima, nem há verdade que não venha a ser descoberta. O que importa é continuar a lutar como se a verdade já tenha vencido, os abusos não nos tenham tocado e o mal não tenha triunfado. Um belo dia, o bem haverá de brilhar. Peçamos a Deus a força de saber esperar, porque poderá tratar-se de uma longa espera… que poderá durar até depois da nossa morte. Eu vivo à espera de Deus e compreendo que me pesa menos que a outros à espera pelas coisas humanas. Vivo intimamente integrada no seio dos pobres, dos doentes, daqueles que ninguém ama.


O meu primeiro amor

Mas o meu primeiro amor foram os tuberculosos, as pessoas mais abandonadas, mais rejeitadas, mais recusadas naquele canto do mundo. O que mais rasgava o meu coração era o seu abandono, o seu sofrimento, que desconhecia qualquer tipo de conforto. Eu nada sabia de medicina. Comecei a levar-lhes a água das chuvas que ia recolhendo do telhado da bela casinha que o Governo me atribuíra na qualidade de docente da escola secundária. Levava os contentores cheios, esvaziava os deles da água salgadíssima dos poços de Wajir, e voltava a enchê-los com água doce. Eles faziam-me sinais de ordens, parecendo perturbados com a falta de jeito daquela jovenzinha branca de cuja presença pareciam querer ver-se livres o mais rapidamente possível.

Tudo me andava ao contrário naquela altura. Eu era jovem e, portanto, não era digna nem de ser ouvida nem de ser respeitada. Era branca e, portanto, desprezada por aquela raça que se considerava superior a todas as outras. Era cristã e, portanto, rejeitada e temida. Todos estavam então convencidos de que eu viera fazer proselitismo. E para cúmulo dos meus males, não era casada, coisa absurda naquele mundo em que o celibato não existe e não é um valor para ninguém.

Comecei logo a estudá-los, a observá-los, pois que estava todos os dias com eles, prestava-lhes serviço de joelhos, estava ao lado deles quando pioravam e não havia quem se importasse com eles, os olhasse nos olhos, ou lhes desse coragem… Passados alguns anos, todo o doente consciente do fim da sua vida só me queria a seu lado para morrer com o sentimento de que era amado.

Durante cinco anos, eles tinham-nos atirado à cara que jamais iríamos para o céu por não dizermos a fórmula de fé muçulmana «Não há Deus senão Deus e Maomé é o Seu profeta». Mas depois deu-se um episódio grave que pôs em risco a nossa vida e então o povo começou a dizer que certamente também nós entraríamos no paraíso. E depois começámos a ser apontadas como exemplo a seguir. O primeiro foi um velho chefe que gostava muito de nós… «Nós, muçulmanos, possuímos a fé, e vós possuís o amor», disse ele um dia. E foi como que a altura do grande descongelamento. As pessoas começaram a dizer cada vez mais que deveriam fazer como nós, que deveriam aprender a cuidar dos outros, em especial os mais doentes, os mais abandonados…


Só o amor tem sentido

A minha vida tem passado por tantos e tantos perigos; arrisquei-me a morrer tantas e tantas vezes. Vivi anos no meio da guerra. Vivi na carne dos meus, daqueles que eu amava, e portanto na minha própria carne, a malvadez do ser humano, a sua perversidade, a sua crueldade, a sua iniquidade. E cheguei a uma convicção inquebrantável, a de que só o amor conta. Só o amor tem sentido; só o amor liberta o homem de tudo aquilo que o escraviza. Só o amor nos faz respirar, crescer, florir; só o amor faz com que não tenhamos medo de nada, que nós apresentemos a face ainda não ferida ao escárnio e às bofetadas dos que nos batem porque não sabem o que fazem; que nós arriscamos a vida pelos nossos amigos, que em tudo temos fé, tudo suportamos e tudo esperamos…

É então que a nossa vida se torna digna de ser vivida. É ainda então que a nossa vida se transforma em beleza, graça, bênção. É também então que a nossa vida se torna uma felicidade até mesmo no sofrimento, porque nós vivemos na nossa carne a beleza do viver e do morrer.

Sinto vivamente que todos nós somos chamados ao amor… E eu gosto de pensar assim: só há uma tristeza neste mundo, a de não amar.’



Fonte :


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

"Missio ad gentes": dispostos a dar a vida por gratidão a Cristo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



"Evangelizem com amor, sejam missionários zelosos e alegres, não percam a alegria". Este é o mandamento do papa Francisco para as mais de 400 famílias do Caminho Neocatecumenal, enviadas neste fim de semana para anunciar o Evangelho de Cristo ressuscitado em todos os cantos da terra. Palavras, as do Santo Padre, que entraram para o tesouro de todas as 174 famílias que participarão das novas quarenta “missiones ad gentes” nas áreas mais descristianizadas da Europa, das Américas e da Ásia.
  
Estas missões "ad gentes" são uma forte ferramenta que o Caminho oferece aos bispos, que confiam nos testemunhos de amor e de perfeita unidade das famílias cristãs para reaproximar a Igreja das pessoas afastadas dela. São mães e pais que, junto com os filhos, respondem a esse chamado deixando de lado a casa, o trabalho, as amizades, na certeza de que o maior dom que o homem de hoje pode receber é conhecer o amor de Jesus Cristo.

É o mesmo amor que eles próprios experimentaram em primeira mão, como relatam Pedro e Carmen, um casal de Nova Jersey, pais de seis filhos, um dos quais no seminário em Dallas. Eles foram enviados pelo Santo Padre para a missão na Filadélfia. "Deus realmente me tirou de uma situação de morte", diz Pedro a ZENIT: "Eu morava na rua, no meio das gangues, imerso nas drogas. Deus me fez um homem novo, me deu uma esposa, me deu filhos e, acima de tudo, me deu uma família cristã. Ouvimos este chamado a ir pelo mundo anunciando o amor que Deus tem por nós".

“É claro, existe medo, mas, como eu disse, eu já tive a experiência de que Deus abriu um caminho para mim, para escapar da morte, e me deu a felicidade... Indo além das dificuldades, que com certeza vamos ter, eu confio nele”.

“Estou com mais medo pelos meus pecados do que pela missão", diz a mulher, "mas eu me lembro de onde Deus me tirou e das graças reais que Ele me deu: um casamento de 18 anos, seis filhos... E que eu não mereço". Quando perguntamos se os filhos estão felizes com a escolha dos pais, as próprias crianças respondem diretamente e em uníssono: "Siiiiiim! Estamos muito felizes!". Carmen termina: "Estamos muito felizes em fazer essa missão e eu mal posso esperar para me jogar nela e ver o que o Senhor preparou para nós".

O Santo Padre disse em seu discurso: "O Senhor sempre nos precede" e prepara um caminho mesmo "nos lugares mais remotos" e “nas mais diversas culturas”. Certos disso, Miguel e Beatriz, uma família com quatro filhos e sete "no céu", saiu da Espanha no ano passado rumo a Manchester. “Inicialmente foi bem difícil”, conta Miguel a ZENIT. “A língua, os costumes, a comida... Ficamos um ano ‘em estado de humildade’, sem conseguir nos comunicar, entender... Mas Deus nunca deixou de ajudar nem de fortalecer a nossa fé, dando-nos até as coisas concretas, como a casa, o trabalho...".

"O que mais nos impressionou foi ver como os nossos filhos se adaptaram rápido! Eles estavam felizes logo na chegada e aprenderam um inglês excelente". Esta missão, conclui o pai de família, é "a nossa maneira de dizer obrigado a Deus por tudo o que Ele fez, pela vida que Ele deu para nós e para os nossos filhos".

Também por gratidão, Cedric, Cristine e os quatro filhos decidiram partir em missão para Rajkot, na Índia. Um ato de fé extraordinário, considerando que o país é conhecido pela perseguição contínua contra os cristãos. "Os riscos são muitos", diz o indiano, falando em um tímido italiano; "a maioria da população é hinduísta, alguns até fanáticos. É tudo difícil. Mesmo na Índia, temos que aprender outra língua, outra cultura, é tudo diferente". Então, por quê? "Porque a gratidão a Deus é mais forte. Temos visto milagres e amor demais para não sermos capazes de compartilhar isso tudo com os outros". Um exemplo, conta ele, "foram as gravidezes difíceis da minha esposa. Ela arriscou muito, mas tínhamos fé, oramos e Deus nos deu quatro filhos. Um verdadeiro milagre: cada criança foi um presente! As nossas crianças são conscientes de que a vida foi um presente de Deus. E por isso estão felizes".

Outro belo testemunho é o de Paolo e Anna, um jovem casal italiano de Trieste, ele com 28 e ela com 25 anos, pais de duas crianças pequenas. Estão entre as famílias enviadas para a Ásia. "Encontramos Jesus Cristo, nos sentimos amados e estamos dispostos a levar esse amor para qualquer lugar", conta Paolo. "Nem sempre é fácil, a vida às vezes pesa, mas nós confiamos no Espírito Santo. Sem Ele, nós não fazemos nada".

"É realmente um milagre ver todas essas pessoas partindo para evangelizar, saindo de casa, da sua segurança", disse a ZENIT dom Anthony Sablan Apuron, arcebispo na ilha de Guam. "Eu fiquei especialmente impressionado com as famílias enviadas para a China, dispostas a aprender uma nova língua, uma cultura totalmente diferente, dispostas a perder a vida. Estou certo de que o Senhor vai ajudá-los".

Dom John McIntyre, bispo auxiliar de Filadélfia, para onde vão 12 famílias enviadas na missão “ad gentes”, concorda. "Foi um encontro muito bonito e comovente, especialmente por ver a preocupação do Santo Padre com as famílias e o interesse dele pelos seus filhos, mas também a generosidade dessas pessoas que se oferecem tão maravilhosamente para a missão da Igreja. Nós somos muito gratos a essas famílias, a esses sacerdotes e seminaristas, especialmente pela coragem de enfrentar os desafios humanos que vão surgir, não só a língua e as novas culturas, mas também para encontrar emprego, encontrar uma escola para os filhos. Mas eu tenho certeza de que eles vão conseguir, sustentados em tudo pela fé em Cristo e na sua vitória sobre os problemas, sobre o pecado e a morte".


Fonte :

* Artigo na íntegra de http://www.zenit.org/pt/articles/missio-ad-gentes-dispostos-a-dar-a-vida-por-gratidao-a-cristo


domingo, 10 de junho de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo VI



PERORAÇÃO
        

Na sexta e última etapa do sermão, o Padre António Vieira faz uso de um desfecho marcante para impactar os ouvintes, na esperança de que eles pratiquem os bons ensinamentos :   

v  Acentua que a irracionalidade, a inconsciência e o instinto dos peixes são melhores do que a racionalidade, o livre arbítrio, o entendimento e a vontade própria do homem  

v  Relata que os peixes e os homens nunca chegarão ao sacrifício final, uma vez que os peixes já vão mortos e os homens vão mortos de espírito 
 

v  Na bíblia, ao citar determinados animais escolhidos para sacrifício, Deus exclui os peixes, pela impossibilidade de chegarem vivos ao altar da imolação; afinal, Ele não quer seres mortos para enaltece-lo 
 
v  A repetição de ‘Louvai’ e ‘Deus’ cria uma atmosfera sonora cada vez mais intensa, apontando para a finalidade da prédica : louvar o Altíssimo.
Nosso missionário almeja que os homens imitem os peixes, convertam-se, guardem obediência e respeito ao Senhor.                 

Utiliza o hino Benedicite para finalizar o sermão num tom festivo, próprio à comemoração de Santo António, cuja festa 'corria solta' em 1654. 
 


Capítulo VI

‘Com esta última advertência vos despido (216), ou me despido de vós, meus Peixes. E para que vades consolados do Sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o Levítico (217). Na Lei Eclesiástica ou Ritual do Levítico, escolheu Deus certos animais, que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos eles ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de grande desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre, que mereceu dar a matéria (218) ao primeiro Sacramento (219)? O motivo principal de serem excluídos os peixes, foi porque os outrosanimais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos; a cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus Altares. Também este ponto era mui importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a eles. Oh quantas Almas chegam àquele Altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar, estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao Sacrifício, que chegar morto. Os outros animais ofereçam a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito e a reverência.  

Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo tão indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes; eu espero que o hei-de ver, mas com que rosto hei-de aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as minhas mesmas obrigações, disse a Suma Verdade (220), que melhor lhe fora não nascer ou não nascer homem: Si natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento, contentai-vos, Peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso. 

Benedicite, cete, et omnia quae moventur in aquis Domino: Louvai, Peixes, a Deus, os grandes e os pequenos, e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os instrumentos necessários para a vida; louvai a Deus, que vos deu um elemento tão largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este mundo, viveu entre nós, e chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua benção, vo-la dê também agora. Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.’

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(216) O mesmo que despeço, forma que já então existia.

(217) Livro da Bíblia, cuja finalidade é regular o culto entre os hebreus. O nome vem do fato de ter sido a tribo de Levi a escolhida para o serviço litúrgico. O primeiro livro do Levítico pode considerar-se um ritual dos sacrifícios.

(218) Água.

(219) O sacramento do batismo, que é realizado com o “elemento” água.

(220) Deus.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo V

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


CONFIRMAÇÃO


Na quinta etapa do sermão, o Padre António Vieira, numa visão de caráter particular, prossegue a crítica aos peixes e ao comportamento dos homens :

1º - O Roncador – referência ao ruído que este peixe faz
. simboliza a arrogância, a soberba e o‘muito falar’
          
2º - O Pegador – peixe pequeno que se agarra aos maiores
. simboliza o parasitismo e a adulação
         
3º - O Voador – peixe que cobiça viver no elemento água e no
elemento ar, contrariando sua natureza
. simboliza a presunção e o capricho 

4º - O Polvo – disfarça-se, muda de cor e ataca de emboscada
. simboliza a hipocrisia e a traição


v Todos eles contrapõem-se a Santo António, que era cândido e sincero

v Nosso pregador utiliza como exemplos bíblicos : São Pedro, Santo Ambrósio, São Basílio e o Gigante Golias 

 


Capítulo V

 
'Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa, no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os Roncadores (161) e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o Espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer Roncadores, e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. São Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de Soldados Romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco(162). Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado (163) Pedro (164) que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer, se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no Horto que vigiasse, e vindo daí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado (165): Sic non potuisti una hora vigilare mecum (166). Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, e não pudestes uma hora vigiar comigo? Pouco há tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos Roncadores? Se isto sucedeu ao maior peixe, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.
 
Se as Baleias roncaram, tinham mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas Baleias não seria essa arrogância segura. O que é a Baleia entre os peixes, era o Gigante Golias entre os homens. Se o Rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, Filisteus (167). Quarenta dias contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás (168) roncava de saber: Vos nescitis quidquam (169) Pilatos (170) roncava de poder: Nescis quia potestatem habeo (171)? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmo experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.

Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores (172) se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria (173) se conta que vão seguindo de longe aos Leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes Pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome. Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto (174), depois que os nossos Portugueses o navegaram; porque não parte Vice-Rei ou Governador para as Conquistas, que não vá rodeado de Pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhe matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos Pegadores do mar.

Rodeia a Nau o Tubarão nas calmarias da Linha com os seus Pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro Soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo (175) acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos (176); enfim morre o tubarão, e morrem com ele os Pegadores. Parece-me que estou ouvindo a São Mateus (177), sem ser Apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes (178), diz o evangelista, apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe, que já se podia tornar para a pátria porque eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino: Defuncti sunt enim Qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo Menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes (179), todos os que seguiam e pendiam (180) da sua fortuna. Pois é possível que todos estes morressem juntamente com Herodes? Sim: porque em morrendo o tubarão, morrem também com ele os Pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt Qui quaerebant animam Pueri (181). Eis aqui, peixezinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo António.

Deus também tem os seus Pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem adhaerere Deo Bonum est (182).  Peguem-se outros aos grandes da terra, que eu só me quero pegar a Deus. Assim o fez também Santo António, e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode duvidar, qual dos dois é ali o pegador; e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a António. Mas António também se fez Menor, para se pegar mais a Deus (183). Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é imortal, seguros estão de morrer como os outros Pegadores. E tão seguros, que ainda no caso em que Deus se fez Homem e morreu, só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele. Bem se viu nos que estavam já pegados, quando disse: Si ergo me quaeritis, sinite hos abire (184): Se me buscais a mim, deixai ir a estes. E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor (185), que todas as aves do céu descansavam sobre os seus ramos, e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos; mas também diz, que tanto que foi cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles.

Considerai, Pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O Tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância, que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o Tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o Pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraciados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água (186), e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem no mar.

Com os Voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, Voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois ave, senão peixe, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, Voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros do vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas? Mais ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino (187) que todos. Aos outros peixes do alto, mata-os o anzol ou a fisga (188), a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o Marinheiro dormindo, e o Voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca, ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto. Grande ambição é, que sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vede, peixes, o castigo da ambição. O Voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, Voador, como correu pela posta (189) o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave bem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A Natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o Voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto (190). Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.

À vista deste exemplo, Peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um Voador da terra: Simão Mago (191), a quem a Arte Mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se, que ele era o verdadeiro Filho de Deus, sinalou (192) o dia em que nos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a voar muito alto; porém a oração de São Pedro, que se achava presente, voou mais depressa que ele, e caindo lá de cima o Mago, não quis Deus que morresse logo, senão que nos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés. Não quero que repareis no castigo, senão no género dele. Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, senão os pés? Sim, diz São Máximo (193), porque quem tem pés para andar, e quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut Qui paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset; et Qui pennas assumpserat, plantas amitteret (194). E Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas, para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, Voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro (195) se afogou no Danúbio, não haveria tantos Ícaros no Oceano.

Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e não para cima! Já São João (196) viu no Apocalipse (197) aquela mulher, cujo ornato gastou todas as suas luzes ao Firmamento, e diz que lhe foram dadas duas grandes asas de Águia: Datae sunt mulieri alae duae Aquilae magnae (198). E para quê? Ut volaret in desertum: para voar ao deserto. Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta, grande maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparuit in coelo, mulier amicta Sole (199). Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as de Santo António. Deram-se à Alma de Santo António duas asas de Águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas, que sendo Arca do Testamento (200), era reputado, como já vos disse, por Leigo (201) e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra) imitai o vosso Santo Pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela ou algum costado, encolhei-as para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros.

Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão Polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que São Basílio e Santo Ambrósio. O Polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um Monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma Estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta
hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja Latina e Grega(202), que o dito Polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do Polvo, primeiramente, em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no Camaleão são gala, no Polvo são malícia; as figuras, que em Proteu (203) são fábula, no Polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que o outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado (204), e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas (205)? Não fizera mais; porque nem fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o Polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o Polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O Polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é à luz, para que não distinga as cores. Vê, Peixe aleivoso (206) e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!

Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da Água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo Céu! Lá disse o Profeta por encarecimento (207), que nas nuvens do ar até a água é escura: Tenebrosa aqua in nubibus aeris (208). E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento sempre é clara, diáfana (209) e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor! Vejo, Peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossos mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes (210), ciladas e muito maiores e mais perniciosas (211) traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois o não posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso Pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo (212), fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser Português, não era necessário ser Santo.

Tenho acabado, Irmãos Peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra; Vos estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados (213) e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais (214), que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados e malditos. Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente. Mandou Cristo a São Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele, e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe, e que seja ele o que morra primeiro que os demais? Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis mostrar o Senhor que as penas que São Pedro ou seus sucessores fulminam contra os homens, que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes a seu modo as incorrem, morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessado na garganta. Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é pecado de que o mesmo São Pedro, e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo apressam a sua temporal (215), como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos naufragantes. '
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(161) Roncador : peixe cujo ruído se parece com o de um porco. Vive nas costas de Portugal e é uma espécie de corvina.

(162) João, 18, 10. Servo do pontífice a quem São Pedro na sua impetuosidade cortou a orelha direita, logo curada por Cristo, quando aquele vinha para O prender.

(163) Bravatear, fanfarronar.

(164) O principal discípulo de Cristo e um dos doze Apóstolos.

(165) Gabar.

(166) Marcos, 14, 37



(167) Originários de Kahptor, talvez a ilha de Creta, eram inimigos dos hebreus e contra eles combateram.

(168) Sumo sacerdote, nomeado por Valério em 18 D.C. e destituído no ano 36 por Vitélio. Foi ele quem decidiu da morte de Cristo e presidiu ao Sinédrio que resolveu prendê-lo.

(169) João, 11, 46.

(170) Pôncio Pilatos – 6º procurador Romano da Judeia desde o ano 26 a 36, sob o governo do Imperador Tibério. Embora reconhecesse a inocência de Cristo, permitiu que ele fosse condenado à morte. Para sinal de que estava inocente deste crime, lavou as mãos.


(171) João, 19, 10

(172) Peixe a que alguns dão o nome de Rémora.

(173) Intenção, propósito.

(174) Do mar alto.

(175) Içar, levantar, erguer.

(176) Esforço.

(177) Filho de Alfeu, cobrador de impostos de Cafarnaum, ao serviço de Herodes Antipas. Atribui-se-lhe o primeiro Evangelho.

(178) Herodes Antipas, tetrarca da Galileia e da Pérsia, filho de Herodes, o Grande. Roubou de seu irmão a mulher, Herodíade, fato que motivou uma grande censura de São João Baptista. Por isso, virá a ser decapitado por instigação de Herodíade. Em 38 D.C. Herodes dirigiu-se a Roma com o fim de obter do imperador Calígula, o título de rei, mas acabou deposto do seu cargo e exilado.

(179) Partidários, dependentes.

(180) Depender.

(181) Mateus, 2, 20.

(182) Salmo, 72, 2


(183) Alusão à mais corrente figuração de Santo António, representado com o menino Jesus ao colo.

(184) João, 18, 8 

(185) Um dos mais famosos monarcas de Babilonia, famoso pelas suas conquistas e pelo cativeiro a que sujeitou os hebreus. (605 – 562 A. C.).


(186) A água do batismo.

(187) Mesquinho.

(188) Espécie de arpão em forma de garfo para apanhar peixe.

(189) Vir depressa

(190) Os quatro elementos da natureza, segundo os pensadores antigos eram: o primeiro a terra, o segundo a água, o terceiro o ar e o quarto o fogo.

(191) Conhecido por Mago por se dedicar à prática da magia, atraindo desta forma o povo. Quando São Pedro e São João se dirigem a Samaria para impor o Espírito Santo aos fiéis, Simão Mago pede aos apóstolos que lhe vendam o dom de dar o Espírito Santo. Pelo fato foi repreendido severamente por São Pedro e acabou por se submeter à verdade.
(192) Marcar, indicar.

(193) Teólogo grego e abade do Mosteiro de Crisópolis no séc. VII. Por ter se mantido fiel à sua fé, arrancaram-lhe a língua e a mão direita, tendo sido deportado para o Cáucaso, onde morreu.

(194) São Máximo


(195) Personagem mitológica grega que, ao pretender voar com asas de cera, caiu no mar e aí se afogou, quando as asas derreteram. Filho de Dédalo, inventor do labirinto, na ilha de Creta.

(196) Apóstolo e Evangelista do séc. I, filho de Zebedeu e de Salomé, irmão de Tiago Maior, um dos primeiros discípulos de Cristo. Escreveu o quarto Evangelho do Novo Testamento, bem como o Apocalipse.

(197) Revelação de realidades que por si só são inacessíveis à compreensão do homem. A própria etimologia da palavra relaciona-o com " Escondido, oculto". Foi escrito por São João e termina o Novo Testamento.

(198) Apocalipse, (1), 2, 14

(199) Apocalipse, 12, 1.


(200) Também conhecida por Arca da Aliança entre Jeová e os hebreus. Nela estavam encerradas as Tábuas da Lei, que Moisés recebera no Monte Sinai.

(201) No seu significado teológico o termo Leigo opõe-se ao de Clerical, com funções distintas. Daí falar-se, em apostolado laico, enquanto exercido por pessoas sem ordens clericais.

(202) Também conhecidos por Padres da Igreja, eram elementos do clero regular e secular que se distinguiam na virtude e haviam contribuído para a definição dos dogmas da religião cristã.

(203) Deus marinho da mitologia grega que tinha o poder de se metamorfosear em toda a espécie de animais e elementos. Revelava o futuro apenas àqueles que conseguissem capturá-lo ao meio-dia.

(204) Desprevenido.

(205) Judas Iscariotes, um dos doze apóstolos, a quem estava confiada a guarda do dinheiro daquele grupo. Infiel no seu cargo, veio a atraiçoar o Mestre, vendendo-o aos seus inimigos por trinta moedas de prata. Pouco depois da prisão de Cristo, dominado pelo desespero, enforcou-se.

(206) Pérfido, desleal, perverso, malévolo.

(207) Exagero.

(208) Salmo, 17, 12


(209) Translúcida.

(210) Engano, cilada, traição.

(211) Prejudicial, perigoso.

(212) Cilada, traição.

(213) Costa ou margem cheia de escolhos à flor da água, mais ou menos cobertos segundo as marés.

(214) Notar, considerar.

(215) A sua morte temporal.