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domingo, 10 de junho de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo VI



PERORAÇÃO
        

Na sexta e última etapa do sermão, o Padre António Vieira faz uso de um desfecho marcante para impactar os ouvintes, na esperança de que eles pratiquem os bons ensinamentos :   

v  Acentua que a irracionalidade, a inconsciência e o instinto dos peixes são melhores do que a racionalidade, o livre arbítrio, o entendimento e a vontade própria do homem  

v  Relata que os peixes e os homens nunca chegarão ao sacrifício final, uma vez que os peixes já vão mortos e os homens vão mortos de espírito 
 

v  Na bíblia, ao citar determinados animais escolhidos para sacrifício, Deus exclui os peixes, pela impossibilidade de chegarem vivos ao altar da imolação; afinal, Ele não quer seres mortos para enaltece-lo 
 
v  A repetição de ‘Louvai’ e ‘Deus’ cria uma atmosfera sonora cada vez mais intensa, apontando para a finalidade da prédica : louvar o Altíssimo.
Nosso missionário almeja que os homens imitem os peixes, convertam-se, guardem obediência e respeito ao Senhor.                 

Utiliza o hino Benedicite para finalizar o sermão num tom festivo, próprio à comemoração de Santo António, cuja festa 'corria solta' em 1654. 
 


Capítulo VI

‘Com esta última advertência vos despido (216), ou me despido de vós, meus Peixes. E para que vades consolados do Sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o Levítico (217). Na Lei Eclesiástica ou Ritual do Levítico, escolheu Deus certos animais, que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos eles ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de grande desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre, que mereceu dar a matéria (218) ao primeiro Sacramento (219)? O motivo principal de serem excluídos os peixes, foi porque os outrosanimais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos; a cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus Altares. Também este ponto era mui importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a eles. Oh quantas Almas chegam àquele Altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar, estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao Sacrifício, que chegar morto. Os outros animais ofereçam a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito e a reverência.  

Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo tão indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes; eu espero que o hei-de ver, mas com que rosto hei-de aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as minhas mesmas obrigações, disse a Suma Verdade (220), que melhor lhe fora não nascer ou não nascer homem: Si natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento, contentai-vos, Peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso. 

Benedicite, cete, et omnia quae moventur in aquis Domino: Louvai, Peixes, a Deus, os grandes e os pequenos, e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os instrumentos necessários para a vida; louvai a Deus, que vos deu um elemento tão largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este mundo, viveu entre nós, e chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua benção, vo-la dê também agora. Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.’

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(216) O mesmo que despeço, forma que já então existia.

(217) Livro da Bíblia, cuja finalidade é regular o culto entre os hebreus. O nome vem do fato de ter sido a tribo de Levi a escolhida para o serviço litúrgico. O primeiro livro do Levítico pode considerar-se um ritual dos sacrifícios.

(218) Água.

(219) O sacramento do batismo, que é realizado com o “elemento” água.

(220) Deus.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo V

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


CONFIRMAÇÃO


Na quinta etapa do sermão, o Padre António Vieira, numa visão de caráter particular, prossegue a crítica aos peixes e ao comportamento dos homens :

1º - O Roncador – referência ao ruído que este peixe faz
. simboliza a arrogância, a soberba e o‘muito falar’
          
2º - O Pegador – peixe pequeno que se agarra aos maiores
. simboliza o parasitismo e a adulação
         
3º - O Voador – peixe que cobiça viver no elemento água e no
elemento ar, contrariando sua natureza
. simboliza a presunção e o capricho 

4º - O Polvo – disfarça-se, muda de cor e ataca de emboscada
. simboliza a hipocrisia e a traição


v Todos eles contrapõem-se a Santo António, que era cândido e sincero

v Nosso pregador utiliza como exemplos bíblicos : São Pedro, Santo Ambrósio, São Basílio e o Gigante Golias 

 


Capítulo V

 
'Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa, no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os Roncadores (161) e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o Espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer Roncadores, e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. São Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de Soldados Romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco(162). Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado (163) Pedro (164) que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer, se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no Horto que vigiasse, e vindo daí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado (165): Sic non potuisti una hora vigilare mecum (166). Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, e não pudestes uma hora vigiar comigo? Pouco há tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos Roncadores? Se isto sucedeu ao maior peixe, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.
 
Se as Baleias roncaram, tinham mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas Baleias não seria essa arrogância segura. O que é a Baleia entre os peixes, era o Gigante Golias entre os homens. Se o Rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, Filisteus (167). Quarenta dias contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás (168) roncava de saber: Vos nescitis quidquam (169) Pilatos (170) roncava de poder: Nescis quia potestatem habeo (171)? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmo experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.

Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores (172) se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria (173) se conta que vão seguindo de longe aos Leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes Pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome. Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto (174), depois que os nossos Portugueses o navegaram; porque não parte Vice-Rei ou Governador para as Conquistas, que não vá rodeado de Pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhe matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos Pegadores do mar.

Rodeia a Nau o Tubarão nas calmarias da Linha com os seus Pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro Soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo (175) acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos (176); enfim morre o tubarão, e morrem com ele os Pegadores. Parece-me que estou ouvindo a São Mateus (177), sem ser Apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes (178), diz o evangelista, apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe, que já se podia tornar para a pátria porque eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino: Defuncti sunt enim Qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo Menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes (179), todos os que seguiam e pendiam (180) da sua fortuna. Pois é possível que todos estes morressem juntamente com Herodes? Sim: porque em morrendo o tubarão, morrem também com ele os Pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt Qui quaerebant animam Pueri (181). Eis aqui, peixezinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo António.

Deus também tem os seus Pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem adhaerere Deo Bonum est (182).  Peguem-se outros aos grandes da terra, que eu só me quero pegar a Deus. Assim o fez também Santo António, e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode duvidar, qual dos dois é ali o pegador; e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a António. Mas António também se fez Menor, para se pegar mais a Deus (183). Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é imortal, seguros estão de morrer como os outros Pegadores. E tão seguros, que ainda no caso em que Deus se fez Homem e morreu, só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele. Bem se viu nos que estavam já pegados, quando disse: Si ergo me quaeritis, sinite hos abire (184): Se me buscais a mim, deixai ir a estes. E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor (185), que todas as aves do céu descansavam sobre os seus ramos, e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos; mas também diz, que tanto que foi cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles.

Considerai, Pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O Tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância, que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o Tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o Pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraciados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água (186), e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem no mar.

Com os Voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, Voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois ave, senão peixe, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, Voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros do vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas? Mais ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino (187) que todos. Aos outros peixes do alto, mata-os o anzol ou a fisga (188), a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o Marinheiro dormindo, e o Voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca, ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto. Grande ambição é, que sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vede, peixes, o castigo da ambição. O Voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, Voador, como correu pela posta (189) o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave bem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A Natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o Voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto (190). Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.

À vista deste exemplo, Peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um Voador da terra: Simão Mago (191), a quem a Arte Mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se, que ele era o verdadeiro Filho de Deus, sinalou (192) o dia em que nos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a voar muito alto; porém a oração de São Pedro, que se achava presente, voou mais depressa que ele, e caindo lá de cima o Mago, não quis Deus que morresse logo, senão que nos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés. Não quero que repareis no castigo, senão no género dele. Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, senão os pés? Sim, diz São Máximo (193), porque quem tem pés para andar, e quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut Qui paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset; et Qui pennas assumpserat, plantas amitteret (194). E Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas, para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, Voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro (195) se afogou no Danúbio, não haveria tantos Ícaros no Oceano.

Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e não para cima! Já São João (196) viu no Apocalipse (197) aquela mulher, cujo ornato gastou todas as suas luzes ao Firmamento, e diz que lhe foram dadas duas grandes asas de Águia: Datae sunt mulieri alae duae Aquilae magnae (198). E para quê? Ut volaret in desertum: para voar ao deserto. Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta, grande maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparuit in coelo, mulier amicta Sole (199). Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as de Santo António. Deram-se à Alma de Santo António duas asas de Águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas, que sendo Arca do Testamento (200), era reputado, como já vos disse, por Leigo (201) e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra) imitai o vosso Santo Pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela ou algum costado, encolhei-as para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros.

Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão Polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que São Basílio e Santo Ambrósio. O Polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um Monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma Estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta
hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja Latina e Grega(202), que o dito Polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do Polvo, primeiramente, em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no Camaleão são gala, no Polvo são malícia; as figuras, que em Proteu (203) são fábula, no Polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que o outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado (204), e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas (205)? Não fizera mais; porque nem fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o Polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o Polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O Polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é à luz, para que não distinga as cores. Vê, Peixe aleivoso (206) e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!

Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da Água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo Céu! Lá disse o Profeta por encarecimento (207), que nas nuvens do ar até a água é escura: Tenebrosa aqua in nubibus aeris (208). E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento sempre é clara, diáfana (209) e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor! Vejo, Peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossos mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes (210), ciladas e muito maiores e mais perniciosas (211) traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois o não posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso Pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo (212), fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser Português, não era necessário ser Santo.

Tenho acabado, Irmãos Peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra; Vos estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados (213) e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais (214), que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados e malditos. Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente. Mandou Cristo a São Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele, e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe, e que seja ele o que morra primeiro que os demais? Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis mostrar o Senhor que as penas que São Pedro ou seus sucessores fulminam contra os homens, que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes a seu modo as incorrem, morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessado na garganta. Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é pecado de que o mesmo São Pedro, e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo apressam a sua temporal (215), como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos naufragantes. '
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(161) Roncador : peixe cujo ruído se parece com o de um porco. Vive nas costas de Portugal e é uma espécie de corvina.

(162) João, 18, 10. Servo do pontífice a quem São Pedro na sua impetuosidade cortou a orelha direita, logo curada por Cristo, quando aquele vinha para O prender.

(163) Bravatear, fanfarronar.

(164) O principal discípulo de Cristo e um dos doze Apóstolos.

(165) Gabar.

(166) Marcos, 14, 37



(167) Originários de Kahptor, talvez a ilha de Creta, eram inimigos dos hebreus e contra eles combateram.

(168) Sumo sacerdote, nomeado por Valério em 18 D.C. e destituído no ano 36 por Vitélio. Foi ele quem decidiu da morte de Cristo e presidiu ao Sinédrio que resolveu prendê-lo.

(169) João, 11, 46.

(170) Pôncio Pilatos – 6º procurador Romano da Judeia desde o ano 26 a 36, sob o governo do Imperador Tibério. Embora reconhecesse a inocência de Cristo, permitiu que ele fosse condenado à morte. Para sinal de que estava inocente deste crime, lavou as mãos.


(171) João, 19, 10

(172) Peixe a que alguns dão o nome de Rémora.

(173) Intenção, propósito.

(174) Do mar alto.

(175) Içar, levantar, erguer.

(176) Esforço.

(177) Filho de Alfeu, cobrador de impostos de Cafarnaum, ao serviço de Herodes Antipas. Atribui-se-lhe o primeiro Evangelho.

(178) Herodes Antipas, tetrarca da Galileia e da Pérsia, filho de Herodes, o Grande. Roubou de seu irmão a mulher, Herodíade, fato que motivou uma grande censura de São João Baptista. Por isso, virá a ser decapitado por instigação de Herodíade. Em 38 D.C. Herodes dirigiu-se a Roma com o fim de obter do imperador Calígula, o título de rei, mas acabou deposto do seu cargo e exilado.

(179) Partidários, dependentes.

(180) Depender.

(181) Mateus, 2, 20.

(182) Salmo, 72, 2


(183) Alusão à mais corrente figuração de Santo António, representado com o menino Jesus ao colo.

(184) João, 18, 8 

(185) Um dos mais famosos monarcas de Babilonia, famoso pelas suas conquistas e pelo cativeiro a que sujeitou os hebreus. (605 – 562 A. C.).


(186) A água do batismo.

(187) Mesquinho.

(188) Espécie de arpão em forma de garfo para apanhar peixe.

(189) Vir depressa

(190) Os quatro elementos da natureza, segundo os pensadores antigos eram: o primeiro a terra, o segundo a água, o terceiro o ar e o quarto o fogo.

(191) Conhecido por Mago por se dedicar à prática da magia, atraindo desta forma o povo. Quando São Pedro e São João se dirigem a Samaria para impor o Espírito Santo aos fiéis, Simão Mago pede aos apóstolos que lhe vendam o dom de dar o Espírito Santo. Pelo fato foi repreendido severamente por São Pedro e acabou por se submeter à verdade.
(192) Marcar, indicar.

(193) Teólogo grego e abade do Mosteiro de Crisópolis no séc. VII. Por ter se mantido fiel à sua fé, arrancaram-lhe a língua e a mão direita, tendo sido deportado para o Cáucaso, onde morreu.

(194) São Máximo


(195) Personagem mitológica grega que, ao pretender voar com asas de cera, caiu no mar e aí se afogou, quando as asas derreteram. Filho de Dédalo, inventor do labirinto, na ilha de Creta.

(196) Apóstolo e Evangelista do séc. I, filho de Zebedeu e de Salomé, irmão de Tiago Maior, um dos primeiros discípulos de Cristo. Escreveu o quarto Evangelho do Novo Testamento, bem como o Apocalipse.

(197) Revelação de realidades que por si só são inacessíveis à compreensão do homem. A própria etimologia da palavra relaciona-o com " Escondido, oculto". Foi escrito por São João e termina o Novo Testamento.

(198) Apocalipse, (1), 2, 14

(199) Apocalipse, 12, 1.


(200) Também conhecida por Arca da Aliança entre Jeová e os hebreus. Nela estavam encerradas as Tábuas da Lei, que Moisés recebera no Monte Sinai.

(201) No seu significado teológico o termo Leigo opõe-se ao de Clerical, com funções distintas. Daí falar-se, em apostolado laico, enquanto exercido por pessoas sem ordens clericais.

(202) Também conhecidos por Padres da Igreja, eram elementos do clero regular e secular que se distinguiam na virtude e haviam contribuído para a definição dos dogmas da religião cristã.

(203) Deus marinho da mitologia grega que tinha o poder de se metamorfosear em toda a espécie de animais e elementos. Revelava o futuro apenas àqueles que conseguissem capturá-lo ao meio-dia.

(204) Desprevenido.

(205) Judas Iscariotes, um dos doze apóstolos, a quem estava confiada a guarda do dinheiro daquele grupo. Infiel no seu cargo, veio a atraiçoar o Mestre, vendendo-o aos seus inimigos por trinta moedas de prata. Pouco depois da prisão de Cristo, dominado pelo desespero, enforcou-se.

(206) Pérfido, desleal, perverso, malévolo.

(207) Exagero.

(208) Salmo, 17, 12


(209) Translúcida.

(210) Engano, cilada, traição.

(211) Prejudicial, perigoso.

(212) Cilada, traição.

(213) Costa ou margem cheia de escolhos à flor da água, mais ou menos cobertos segundo as marés.

(214) Notar, considerar.

(215) A sua morte temporal.


 

quinta-feira, 29 de março de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo IV

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


CONFIRMAÇÃO       


 Na quarta etapa do sermão, o Padre António Vieira, numa visão de conjunto (ou de caráter geral) censura os defeitos dos peixes :
  
v  pelo fato de se comerem uns aos outros, nivelam-se à antropofagia social dos homens
v  e os homens, numa ganância desmedida, exploram seus mortos devorando-os em cadeia alimentar
v  tendo a Sagrada Escritura como base, o orador talha habilmente uma lógica implacável para demonstrar este canibalismo : assim como o pão é o alimento para todos os dias, os pequeninos são o pão quotidiano dos graúdos
v  critica, novamente, a prepotência dos grandes; a vaidade dos homens; o mau comportamento dos parasitas, ambiciosos, hipócritas e traidores
 
Percebam o quanto António Vieira é inigualável ao aguçar e reter o ouvinte, alternando a cadência da pregação, que varia do lento, ao rápido e ao muito rápido. Nas frases longas, o compasso é tranquilo, nas frases curtas, é pungente, permitindo que o sermão flua como o ondular das águas mar.

            No arremate, a cegueira e a ignorância também são defeitos gravíssimos. Por causa de um anzol, os peixes caem no afago da isca e são levados à morte.
 
O que dizer, então, dos homens que se esfolam por causa do hábito de uma Ordem Militar (ordem de Malta, Avis, dentre outras)? Ou quando as embarcações de Portugal chegam às colônias, carregadas de panos e todos se matam para te-los?
Em contraste, cita a humildade de Santo António, que não se deixou enganar pela soberba do mundo. Pobre e sempre discreto, fisgou muitas almas para a salvação.

 
 
 
Capítulo IV
 
 
'Antes, porém, que nos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica (117), peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho (118): Homines pravis, perversisque cupiditatibus facit sunt veluti piscis invicem se devorantes (119): Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o Sertão? Para cá, para cá; para a Cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias (120) se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-de comer.

Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos, e os dos defundos e ausentes; come-o o Médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defundo o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra (121). Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job (122), uando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? (123): Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne? Quereis ver um Job destes? Vêde um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o Meirinho (124), come-o o Carcereiro, come-o o Escrivão, come-o o Solicitador, come-o o Advogado, come-o o Inquiridor, come-o a Testemunha, come-o o Julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.

E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne cognoscent omnes, Qui operantur iniquitatem, Qui devorant plebem meam, ut cibum panis? (125) Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido aqueles que cometem a maldade? E que maldade é esta, à qual Deus singularmente (126) chama a maldade, como se não houvera outra no mundo? E quem são aqueles que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão (127) declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na República, estes são os comidos. E não só diz, que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das Cidades e das Províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come; e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuadamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.

Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganai-vos. Assim como Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas (128), que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos. Assim foi. Mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo, que esses mesmos maiores, que cá comiam os pequenos, quando lá chegam acham outros maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da divina Justiça tão antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram:

 
 Vos quibus rector maris, atque terrae
Jus dedit magnum necis, atque vitae;
Ponite inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid a vobis minor extimescit,
Maior hoc vobis Dominus minatur
(129).

Notai, Peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae. Governador do mar e da terra; para que não duvideis que o mesmo estilo, que Deus guarda com os homens na terra, observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande Doutor da Igreja, Santo Ambrósio, quando, falando convosco disse: Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem (130). Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o Xaréu (131) correndo atrás do Bagre (132) , como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o Tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. É o que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Praedo minoris fit praeda maioris (133). Mas não bastam, peixes, estes exemplos para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos, tem já emparelhada o castigo na voracidade dos grandes.
 
Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que daqui por diante sejais mais Repúblicos (134) e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quanto são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos (135) Não vedes que contra vós se emalham (136) e entralham (137) as redes; contra vós se tecem as nassas (138), contra vós se torcem as linhas, contra vós se dobram e farpam (139) os anzóis, contra vós as fisgas e os arpões (140)? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas adentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim, e sereis felizes.

Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar (141). E de que se sustentam entre vós muitos, que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia (142), e não estatuto (143) da Natureza. Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies de todos se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do Dilúvio, porque tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo Dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na Arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol (144) comum, que Noé lhes repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos (145) foram capazes desta temperança, porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude.

Outra cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando (146), até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida? Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques (147), dos chuços (148) e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca nas pontas desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama Hábito de Malta (149), ou verde, que se chama de Avis (150), ou vermelho, que se chama de Cristo (151) e de Santiago (152), e os homens por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de Hábitos.

Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um Mestre de Navio de Portugal com quatro varreduras (153) nas lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhe passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela (154) e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os Bonitos, ou os que o querem parecer, todos (155) esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra (156) para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento (157). Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho (158), ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pagens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo ano.

Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir, vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia (159) de Cónego Regrante (160), e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.'

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(117) Escandalizar.

(118) Agostinho, Bispo de Hipona que viveu de 354 a 430. Ouvindo em Milão as pregações de Santo Ambrósio, acabou por se converter ao cristianismo, depois de ter levado, durante a juventude, uma vida muito desregrada. Escreveu diversas obras, porém, as mais conhecidas são: As Confissões e A Cidade de Deus. 

(119) Santo Agostinho (N. de V.)


(120) Tribo de Índios brasileiros.
 
(121) Jogo de palavras: toda a terra está com o sentido de "toda a gente".

(122) Deve ter vivido em Hus, na Transjordânia, a sudeste do Mar Morto, no tempo dos Patriarcas. É o símbolo da resignação, porque no meio das maiores calamidades aceitou a providência divina, que ora permite o sofrimento, como castigo dos pecados, ora aperfeiçoa os bons e lhes prova a virtude. Na Bíblia, no Antigo Testamento, consta O Livro de Job.

(123) Job, 19, 22 (N. de V.).

(124) Juíz régio a quem cabia mandar executar as sentenças do soberano.

(125) Salmo, 13, 4 (N. de V.). Trad.: Não compreenderão todos os obreiros do mal que devoram o meu povo como quem come pão.

(126) Especialmente, propriamente.
(127) Senão = mas ainda.

(128) Os "remeiros" das canoas eram Índios.

(129) Séneca, tragédia Thyestes, versos 606-610. Trad.: Vós a quem o governador do mar e da terra / deu o magno direito da morte e da vida, / ponde de lado os rostos inchados e intumescidos; / tudo aquilo que de vós teme o mais pequeno com isso os ameaça o Senhor mais forte.

(130) Santo Ambrósio (N. de V.).

(131) Peixe semelhante ao churréu.

(132) Dois peixes da costa do Brasil.

(133) Santo Agostinho (N. de V.). Trad.: O que aprisiona o mais fraco torna-se presa do mais forte.

(134) Dedicados à coisa ou causa pública.

(135) Alusão à guerra ofensiva dos holandeses na colônia brasileira.

(136) Prender nas malhas, enredar.

(137) Prender a rede às tralhas.

(138) Espécie de cesto de verga afunilado, que se destina a apanhar peixe.

(139) Pôr farpas em, rasgar.

(140) Instrumento que se usa na pesca de peixes grandes.

(141) Era o grande argumento dos colonos a favor da escravização dos Índios.

(142) Tortura, crueldade, desumanidade.

(143) Lei da natureza.

(144) Depósito de provisões alimentares. 

(145) Quente, escaldante.

(146) Abrir e fechar a boca, prestes a morrer.

(147) Espécie de lança antiga terminada em ponta.

(148) Pau armado de aguilhão ou choupa.

(149) Referência ao hábito dos Cavaleiros da Ordem de Malta.

(150) Traje próprio identificativo de uma ordem religiosa ou monástico-militar.

(151) Referência ao hábito da Ordem de Cristo.

(152) Referência ao hábito da Ordem de Santiago.

(153) Restos.

(154) Puxão.

(155) Subentende-se: todos acodem.

(156) Colheita.

(157) Exagero.

(158) Engenho de fazer açúcar.

(
159) Alusão ao hábito dos Franciscanos, a cuja ordem pertenceu Santo António.

(160) Também chamados cônegos regulares. Trata-se de clérigos que, vivendo em comunidade, faziam seus votos religiosos.