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segunda-feira, 24 de abril de 2023

Os radtrads são obcecados pela “societas perfecta”

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

Uma reflexão sobre manuais de história da Igreja que são editados para legitimar o ‘cristianismo bélico e glorioso’


Evitar o anacronismo é o mantra de todo historiador. E quando o assunto é história da Igreja, a atenção para não pender para esse tipo de abordagem precisa ser redobrada, já que estamos lidando com o fenômeno religioso. Porém, assumir o compromisso de não julgar o passado com categorias do presente não significa anular ou diminuir os crimes cometidos em séculos anteriores. O passado precisa ser conhecido e estudado, de modo que esses erros não sejam repetidos no presente.

Os últimos três papas, através de gestos e discursos, fizeram questão de enfatizar isso. João Paulo II, ao pedir perdão pela violência impetrada em nome de Deus por muitos homens da Igreja; Bento XVI, ao reconhecer que foi ‘providencial’, num dado momento, a Igreja ter se apartado do poder temporal; e Francisco, relendo a colonização da América, pediu perdão pelos abusos da instituição contra os povos originários. Ou seja, o papado contemporâneo olha para essa história como um percurso feito de luzes e sombras, de anjos e de demônios.

Positivismo histórico dos radtrads

Os adeptos do positivismo histórico, do século 19, viam o passado como um celeiro de mitos nacionais. Historia magistrae vitae? Sim. Mas só era mestra de vida na medida em que condecorava as personalidades ‘civilizadoras’, os heróis do Estado (muitas vezes, forçadamente fabricados pelos propagadores da ideologia dominante).

E muitos grupos sectários da atualidade têm se debruçado sobre o passado cristão pelas lentes do positivismo histórico. Há quem romantize a trajetória de Constantino, de Pepino, o jovem, de Carlos Magno e dos cavaleiros medievais. A ideia é acumular informações ‘gloriosas’ sobre a História da Igreja, não situá-la dentro de um contexto social, político ou cultural.

Os manuais de história da Igreja do século 19, que estão sendo republicados por muitas editoras controladas por esses nichos, estão repletos desses floreios. Não que tais atores não devam ser investigados e mencionados. O problema está em ressuscitá-los na pretensão de reconstruir uma ‘Idade de Ouro’ que sequer existiu.

Há quem se recorde da famigerada visão de Constantino, mas não cita os membros da família que ele executou após sua ‘conversão’. Há quem superestime as cruzadas como símbolo do triunfo, mas ignora o momento em que os cavaleiros se aliaram aos muçulmanos e o episódio em que os venezianos invadiram Constantinopla, em 1204, e profanaram a Basílica de Santa Sofia. E eu poderia citar tantos outros exemplos.

A maioria desses livros, principalmente aqueles que foram publicados antes da década de 1930, via a historiografia como um instrumento capaz de reproduzir uma narração precisa dos fatos, que era pautada somente pelos documentos oficiais. Ou seja, a história não era tratada como um processo repleto de nuances e pontos de vista, mas como uma grande crônica repleta de heróis, cujos feitos foram eternizados pela fonte escrita.

Cálculo político e erudição estéril

Sustentar uma visão anacrônica nem sempre é tão inofensivo quanto parece. O estrago, inclusive, às vezes acontece a longo prazo. Hitler se apoiou na trajetória de Lutero para criar uma religião política e nacionalista segundo os parâmetros do catecismo nazista : o ‘cristianismo positivo’. Mussolini evocou Constantino, o primeiro imperador cristão da história, para legitimar seu imperialismo. O ditador italiano, que era um anticlerical convicto, mudou o discurso e passou a tratar o catolicismo como parte integrante da cultura do país para atrair o apoio das autoridades eclesiásticas.

Em âmbito católico, os simpatizantes da erudição estéril e anacrônica isolam a história da instituição em 500 anos. O Concílio de Trento, que no século 16 padronizou o rito latino, é visto como a tradução mais perfeita da tradição, como se ela se resumisse a uma lista de rubricas e normas. Nada mais.

Nenhum concílio esgotou as possibilidades da fé católica

Só que a Tradição, para o catolicismo, escrita em T maiúsculo, se baseia principalmente no ensinamento de Jesus transmitido aos apóstolos, e não por acaso é chamada de Depositum Fidei, não de Ritus Romani. Portanto, a visão reducionista deles contradiz a própria doutrina. Dizer que um único concílio ecumênico foi capaz de interpretar o catolicismo na sua plenitude é destoar desse princípio, já que essa confissão cristã acredita na sucessão apostólica. E se o Concílio Vaticano II, constituído por um colégio de bispos, tomou certas decisões, que mais à frente foram revistas e chanceladas pelo próprio papa, deve ser seguido como todos os outros.

Não por acaso, as resistências em relação ao papa Francisco começaram justamente entre os tridentinos da internet, que inclusive têm uma visão completamente distorcida em relação ao conceito de reforma da Igreja Católica. Para eles, muito ligados ao espírito de Trento, reformar é impor ‘um modelo’, e ter um pontífice — e um concílio, no caso — que foca na renovação de seus membros, não nos acessórios, que muitas vezes ofuscam a essência da vida cristã, é demais para a cabeça deles.’ 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://rafaelmariae.medium.com/os-radtrads-s%C3%A3o-obcecados-pela-societas-perfecta-a8ce3f121fb3

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Quem contará a história de Jesus?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Manuel Augusto Lopes Ferreira,

Missionário Comboniano

 

Escolho como palavra para a missão deste mês o verbo «contar’ (no sentido de narrar, transmitir por meio da palavra), inserido na frase do título com que se abre este texto.

Tomo a frase de uma intervenção do senhor cardeal António Tagle, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos (chamada no passado de Propaganda Fide e que na recente reforma da Cúria Romana faz parte do agora chamado Dicastério para a Evangelização).

Mas o Papa Francisco também usa o verbo «contar», anunciar em relação à missão cristã. Como quando diz (na A Alegria do Evangelho (AE), números 8 e 9) que «se alguém descobriu o amor (de Cristo) que lhe restitui o sentido da vida, como pode conter o desejo de o (contar) comunicar aos outros?’ Ou quando recorda a expressão de São Paulo «Ai de mim se não anuncio o Evangelho!» (1 Cor 9, 16). Ou quando refere que «o anúncio renovado é fonte de fecundidade evangelizadora», pois Cristo é uma boa notícia eterna, «o mesmo hoje e sempre» (Heb 13, 18). Ou quando nos recorda que a narrativa cristã não envelhece e que «da vitalidade original do Evangelho nascem novos caminhos, formas de expressão, sinais eloquentes, palavras cheias de fecundo significado’ (AE, 11).

Ao contar a história de Jesus, o Papa Francisco dedica todo o capítulo terceiro da exortação apostólica A Alegria do Evangelho (números 111-175) reforçando a convicção de que a missão cristã vive da palavra das testemunhas, de todos os cristãos e não só da homilia do sacerdote na celebração eucarística; das testemunhas espera-se que contem o que viram e ouviram, como já afirma São Paulo a respeito do querigma, do anúncio, cristão : «transmiti-vos o que eu mesmo recebi» (1 Cor 11, 23).

Também no âmbito cultural, social e familiar, o Papa Francisco insiste na importância do contar, da transmissão oral das narrativas entre as gerações, particularmente quando se dirige aos jovens e quando fala da necessidade de conservar as próprias raízes; ou quando fala dos idosos e da necessidade de os jovens ouvirem os idosos e as narrativas que eles verbalizam, para saberem de onde vêm e para onde vão, para serem ajudados no desafio de encontrarem sentido para as próprias vidas.

Voltando ao nosso título e à expressão do cardeal, na abertura de um simpósio universitário que debate a história de uma instituição, em que os holofotes estão voltados para tantas histórias (de papas e cardeais, de instituições e documentos...), a interrogação soa a provocação : «No mundo contemporâneo, da inteligência artificial, do extremismo, da polarização, da indiferença religiosa, da emigração forçada, dos desastres climáticos... como será contada a história de Jesus? E quem contará esta história?»

Sim, num mundo com tantas histórias a contenderem a primeira página dos jornais, a audiência das televisões, as emoções que correm nas redes sociais, a nossa própria atenção e interesse, como será contada a história de Jesus e quem a contará, se nós cristãos a não contarmos? Os missionários – que abraçam o mandato de Jesus «ide pelo mundo inteiro’ – respondem à nossa interrogação; mas o desafio de contar a história de Jesus dirige-se a todos os cristãos e aguarda de todos nós uma resposta criativa, à altura dos tempos que nos toca viver.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/892/quem-contara-a-historia-de-jesus/

domingo, 3 de julho de 2022

Relembrar e repensar a Igreja: uma tarefa para nosso tempo

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘A Igreja nasce por obra do Espírito Santo. Essa característica fundacional é muito bem enfatizada no livro dos Atos dos Apóstolos, em seus primeiros capítulos. Em sequência, há diversas narrativas que mostram como que aqueles e aquelas que creram e receberam o Espírito testemunhavam a respeito da ressurreição, vivendo em comunidade, tendo tudo em comum.

De início, tal movimento ficou conhecido como sendo a seita dos nazarenos, ou ainda os seguidores do Caminho, visto que grande parte dos novos adeptos eram da religião judaica. Dessa forma, em seu início, cristianismo e judaísmo não eram duas religiões diferentes. Tal divisão se acentuará somente após a queda de Jerusalém no ano 70, com a permanência de dois grupos, os cristãos e os fariseus. Estes deram origem ao que veio a se tornar o judaísmo atual, enquanto aqueles desenvolveram sua própria teologia, separando-se cada vez mais do movimento judaico.

A Igreja enquanto instituição já é algo mais tardio, não fazendo parte desse primeiro movimento de Atos, que consistia nas reuniões nas casas, na partilha do pão, no suprimento das necessidades de cada pessoa pertencente à comunidade. A institucionalização da Igreja e, posteriormente, a transformação da religião cristã em religião oficial do Império Romano trazem grandes mudanças na forma como ela própria se vê no mundo.

São conhecidas de todos e todas as grandes atrocidades cometidas pela Igreja cristã ao longo de vários séculos, principalmente na Idade Média, época conhecida também como cristandade no Ocidente. Ou seja, as matrizes social e cultural na qual todas as pessoas nasciam eram cristãs, de maneira que ser cristão era praticamente como, em nossos dias, ser pertencente à nação onde se nasce.

Diante disso, dada sua grande hegemonia e seu grande poder, a Igreja, com o passar do tempo, transformou-se naquilo que ela mesma combatia. Em outras palavras, de oprimida passou a ser a opressora. Agora, porém, com um discurso de que se estava fazendo a vontade de Deus, mesmo que para isso tivesse que torturar e matar pessoas em nome de uma suposta obediência à divindade.

Tempos mais tarde, ao perder sua hegemonia, parte da Igreja cristã passou, então, a ser contra diversos avanços na pesquisa científica, querendo, assim, manter de alguma forma o poder que havia tido nos séculos anteriores. Dessa forma, se colocar contra uma nova forma de exegese e hermenêutica, ou se levantar contra as novas descobertas científicas, tais como a teoria evolucionista de Darwin, ou novas leituras da sociedade, como a de Marx, aparentam ser fruto dessa tentativa se colocar como o baluarte e a única detentora da verdade última.

Se focarmos no lado protestante, a história não se mostra tão diferente assim. Desde a Reforma, as instituições perseguiram e continuam a perseguir aqueles e aquelas que pensam de forma diferente do poderio vigente. Talvez, a maior diferença seja uma não centralização do protestantismo mundial, o que possibilita novas formas de organização e comunidades, promovendo, assim, maior liberdade doutrinal, tanto para o bem quanto para o mal.

A Igreja católica com o Vaticano II propõe uma nova forma de se pensar a Igreja e, mesmo que isso tenha ocorrido há mais de 50 anos, tal proposta ainda não está totalmente assimilada, existindo diversos grupos que se colocam contra o Concílio e seus documentos.

Relembrar a história da Igreja, seu surgimento, o motivo de sua existência e, ainda, repensá-la em nossos dias se tornam tarefas fundamentais para que ela possa ser um testemunho atual da mensagem de Cristo.

A Igreja deve viver o amor de Deus, sendo reflexo da Trindade no mundo. Em outras palavras, uma comunidade que ama, onde todos e todas são acolhidas e se alegram por estarem ali, em comunhão uns com os outros.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1582762/2022/06/relembrar-e-repensar-a-igreja-uma-tarefa-para-nosso-tempo/

quinta-feira, 23 de junho de 2022

História: lugar da revelação de Deus

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘Disse ainda : ‘Eu sou o Deus de seu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó’ (Êxodo 3,6a).

Esse versículo se encontra no conhecido texto sobre a sarça ardente, quando Moisés recebe o chamado para ser o libertador do povo de Israel da terra do Egito. Essa denominação, por sua vez, será muito recorrente ao longo de todo texto bíblico e será uma das principais maneiras pela qual o povo de Israel falará a respeito de Deus.

Tal caracterização da divindade se mostra muito interessante, uma vez que agora o Deus deste povo, Israel, não é visto como uma divindade distante, mas uma divindade que se implica na história e, mais ainda, é conhecida pelos seus atos feitos na história do seu povo.

Se nós compararmos tal discurso a respeito de Deus com, por exemplo, os discursos feitos sobre os deuses gregos, perceberemos uma grande diferença. Enquanto esses vivem em um mundo próprio, o Olimpo, onde têm suas festas, seus conflitos etc, vindo à Terra somente para alguma aventura, ou interferindo das alturas nas ações dos seres humanos, o Deus apresentado nas páginas do texto bíblico se revela em outra perspectiva, como alguém que, vendo o sofrimento do seu povo, decide se importar com ele e caminhar ao seu lado.

Nessa perspectiva, a história não é vista como somente uma grande peça de teatro escrita para ser observada por entes divinos, ou como um seriado interativo, no qual é possível fazer as decisões que determinada personagem tomará, influenciando, assim, o enredo final da série. Muito pelo contrário, o próprio Deus se implica nessa história, fazendo dela também a sua própria, criando em si um espaço para que ela ocorra. Em outras palavras, como nos diz Moltmann, a história acontece no próprio Deus.

Essa compreensão de um Deus que caminha com seu povo e se faz presente na história, no entanto, parece que não faz tanto sucesso hoje em dia em diversos ambientes que se dizem cristãos. Em tais ambientes, o que comumente se escuta é a respeito de um Deus que vive no céu, cercado de miríades e miríades de anjos, sendo constantemente adorado e distribuindo bençãos ou maldições, de acordo com o que o departamento de Contabilidade Celestial lhe informa nos balancetes mensais.

Prega-se um Deus que não se importa com o sofrimento humano, que não se implica neles, que não sofre, não chora, não ri. Em outras palavras, um Deus impassível, incapaz de sentir algo, porque, como diriam os gregos, tal sentir causaria alterações na divindade que, por excelência, se quiser ser perfeita, não pode sofrer nenhuma alteração.

No entanto, ao se fazer isso, tais igrejas não pregam o Deus anunciado no texto bíblico : um Deus que sofre e caminha com seu povo, estando atento ao seu sofrimento, padecendo, por amor e reconciliando toda a criação Consigo mesmo.

Esse Deus, desde as páginas do Antigo Testamento é aquele que ouve o clamor dos que sofrem por causa de líderes cruéis, que sabe o quanto tais pessoas sofrem e, por isso, vem em auxílio delas.

A igreja atual precisa resgatar o anúncio desse Deus que se implica na história, que é contra a injustiça, que sofre com os que sofrem, que, em Jesus, se mostra como aquele que é contrário a toda forma de violência e toda forma de exploração.

A luta por justiça, igualdade social, ausência de discriminação deve ser também a causa de toda pessoa que se diz cristã. Do contrário, ao invés de sermos luzes no mundo, deixaremos ainda mais densa a escuridão que insiste em avançar sobre ele.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1581946/2022/06/historia-lugar-da-revelacao-de-deus/

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

A saga dos católicos da 'societas perfecta'

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Evitar o anacronismo é o mantra de todo historiador. E quando o assunto é história da Igreja, a atenção para não pender para esse tipo de abordagem precisa ser redobrada, já que estamos lidando com o fenômeno religioso. Porém, assumir o compromisso de não julgar o passado com categorias do presente não significa anular ou diminuir os crimes cometidos em séculos anteriores. O passado precisa ser conhecido e estudado, de modo que esses erros não sejam repetidos no presente.

Os últimos três papas, através de gestos e discursos, fizeram questão de enfatizar isso. João Paulo II, ao pedir perdão pela violência impetrada em nome de Deus por muitos homens da Igreja; Bento XVI, ao reconhecer que foi ‘providencial’, num dado momento, a Igreja ter se apartado do poder temporal; e Francisco, que na sua releitura da colonização da América, pediu perdão pelos abusos da instituição contra os povos originários. Ou seja, o papado contemporâneo olha para essa história como um percurso feito de luzes e sombras, de anjos e de demônios.

Os adeptos do positivismo histórico, do século 19, viam o passado como um celeiro de mitos nacionais. Historia magistrae vitae? Sim. Mas só era maestra de vida na medida em que condecorava as personalidades ‘civilizadoras’, os heróis do Estado (muitas vezes, forçadamente fabricados pelos propagadores da ideologia dominante).

E muitos grupos sectários da atualidade têm se debruçado sobre o passado cristão pelas lentes do positivismo histórico. Há quem romantize a trajetória de Constantino, de Pepino, o jovem, de Carlos Magno e dos cavaleiros medievais. A ideia é acumular informações ‘gloriosas’ sobre a História da Igreja, não situá-la dentro de um contexto social, político ou cultural.

Os manuais de história da Igreja do século 19, que estão sendo republicados por muitas editoras controladas por esses nichos, estão repletos desses floreios. Não que tais atores não devam ser investigados e mencionados. O problema está em ressuscitá-los na pretensão de reconstruir uma ‘Idade de Ouro’ que sequer existiu. Há quem se recorde da famigerada visão de Constantino, mas não cita os membros da família que ele executou após sua ‘conversão’. Há quem superestime as cruzadas como símbolo do triunfo, mas ignora o momento em que os cavaleiros se aliaram aos muçulmanos e o episódio em que os venezianos invadiram Constantinopla, em 1204, e profanaram a Basílica de Santa Sofia. E eu poderia citar tantos outros exemplos.

A maioria desses livros, principalmente aqueles que foram publicados antes da década de 1930, via a historiografia como um instrumento capaz de reproduzir uma narração precisa dos fatos, que era pautada somente pelos documentos oficiais. Ou seja, a história não era tratada como um processo repleto de nuances e pontos de vista, mas como uma grande crônica repleta de heróis, cujos feitos foram eternizados pela fonte escrita.

Sustentar uma visão anacrônica nem sempre é tão inofensivo quanto parece. O estrago, inclusive, às vezes acontece a longo prazo. Hitler se apoiou na trajetória de Lutero para criar uma religião política e nacionalista segundo os parâmetros do catecismo nazista : o ‘cristianismo positivo’. Mussolini evocou Constantino, o primeiro imperador cristão da história, para legitimar seu imperialismo. O ditador italiano, que era um anticlerical convicto, mudou o discurso e passou a tratar o catolicismo como parte integrante da cultura do país para atrair o apoio das autoridades eclesiásticas.

Em âmbito católico, os simpatizantes da erudição estéril e anacrônica isolam a história da instituição em 500 anos. O Concílio de Trento, que no século 16 padronizou o rito latino, é visto como a tradução mais perfeita da tradição, como se ela se resumisse a uma lista de rubricas e normas. Nada mais.

Só que a Tradição, para o catolicismo, escrita em T maiúsculo, se baseia principalmente no ensinamento de Jesus transmitido aos apóstolos, e não por acaso é chamada de Depositum Fidei, não de Ritus Romani. Portanto, a visão reducionista deles contradiz a própria doutrina. Dizer que um único concílio ecumênico foi capaz de interpretar o catolicismo na sua plenitude é destoar desse princípio, já que essa confissão cristã acredita na sucessão apostólica. E se o Concílio Vaticano II, constituído por um colégio de bispos, tomou certas decisões, que mais à frente foram revistas e chanceladas pelo próprio papa, deve ser seguido como todos os outros.

Não por acaso, as resistências em relação ao papa Francisco começaram justamente entre os tridentinos da internet, que inclusive têm uma visão completamente distorcida em relação ao conceito de reforma da Igreja Católica. Para eles, muito ligados ao espírito de Trento, reformar é impor ‘um modelo’, e ter um pontífice – e um concílio, no caso – que focam na renovação de seus membros, não nos acessórios, que muitas vezes ofuscam a essência da vida cristã, é demais para a cabeça deles.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1532139/2021/08/a-saga-dos-catolicos-da-societas-perfecta/

sábado, 3 de julho de 2021

Sobre cruzadores (as) de fronteiras

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Nello Pulcinelli


‘No fluxo migratório contemporâneo no Brasil, não identificamos significativamente Imigrantes oriundos de países norte-hemisféricos desenvolvidos (América do Norte, Europa ocidental, Ásia, etc.), mas sim pessoas em situação de migração vindas de países considerados econômico-industrial-tecnologicamente em desenvolvimento, onde as parcelas mais vulneráveis e excluídas da população estão submetidas a menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) e de acesso às Políticas Públicas essenciais.

Nesse fluxo, notamos sobretudo nações latino-americanas hispânicas, caribenhas e africanas, cujo segmento migrante é estimulado por possibilidades (algumas vezes irreais) de desenvolvimento financeiro por meio de trabalho duro, com longas jornadas e por vezes sem direitos trabalhistas e organização abusiva, chegando a haver situações pontuais de trabalho análogo ao escravo.

Também integram fortemente essa movimentação, pessoas em situação de refúgio que, por definição, não tiveram outra alternativa senão deixar seus países de origem devido a fundado temor por sua vida e pela integridade dela, por conta de conflitos armados, disputas políticas violentas, violências perpetradas por governos e outros agentes públicos, intolerância religiosa, catástrofes naturais e perseguições por orientação sexual e identidade de gênero. Esse grupo está intensamente formado por seres humanos vindos de países africanos e do Oriente Médio, protegidos por pactos humanitários internacionais e legislações nacionais específicas.

Mas, afinal, imigrar ou refugiar-se é apenas transitar de um país a outro? O que mais envolve e permeia todo esse processo?

É sabido que, além dos inúmeros e importantes aspectos jurídicos, diplomáticos, históricos e sociológicos presentes e dos reflexos diretos de desdobramentos político-econômicos, há ainda configurações delicadas do que se compreende como um fenômeno psicossocial.

Imigrantes e refugiados são, acima de tudo, seres humanos e como tais possuem uma configuração extremamente complexa e múltipla, contendo intelecto, cognição, sentimentos, emoções, vivências, relações, moral, ética, cultura, habilidades, sensibilidades, e muito mais, o que os faz criaturas únicas.

São homens e mulheres, bebês, crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, pais e filhos. Há entre eles estudantes e profissionais, artistas e atletas, cientistas e pesquisadores, civis e militares. Encontram-se nesse coletivo moradores do campo e da cidade, religiosos, agnósticos e ateus, conservadores e progressistas, pessoas comuns e anônimas e também de projeção pública. São como todos demais seres humanos, cheios de características e adjetivos que ora os distancia e ora os aproxima, como em toda sociedade.

Quando ocorre a ação migratória, propriamente dita, certamente serão encontradas pessoas trazendo consigo, quando Imigram ou se Refugiam, suas dores, traumas, sequelas, tristezas, medos, insatisfações, inseguranças, dúvidas, desinformações, raivas, revoltas, objeções, resistências, saudades, solidão, choques culturais, burocracias, tensões, dificuldades de comunicação, contatos com agentes estatais, preconceitos e discriminações, carregadas nas bagagens que, materialmente, muitas vezes são bem pequenas ou até nenhuma, mas existencialmente são universos imensos, inexplorados, desconhecidos para o novo contexto que os recebe cotidianamente…

Porém, nem tudo é negativo. A migração traz também esperança, alívio, perseverança, ânimo, disposição, objetivos, metas, diversidades, riqueza cultural, força de trabalho, qualificação profissional, experiências de vida, famílias, amores, patriotismo, idiomas, identidade, nomes, direitos, dignidade, religiões (espiritualidade, fé), recomeços, nova pátria, novo povo, adaptações, integrações, liberdade, direitos, novos aprendizados, partilhas e justiça, guardadas no mesmo lugar imaterial no interior de cada indivíduo.

Mas, nessa mobilização de povos por fronteiras, não há só o trazer e o carregar, há também o deixar. Quantas coisas Imigrantes e Refugiados deixam para traz, muitas vezes para nunca mais… Deixam a terra que os viu nascer e de onde muitos jamais pensou sair, seu povo, sua cultura, sua língua, as pessoas amadas, os entes queridos, a casa, propriedades, frutos de seu trabalho e esforço de uma vida, fotografias, lembranças, cores, sons, cheiros e sabores, e muitos deixam a própria alma… E, por mais coisas que tragam consigo nessa longa (por mais curta que possa parecer) viajem, que é também uma imensa transição, sempre deixam muito mais…

Quantas coisas envolvem ainda, na nação de chegada, a Imigração e o Refúgio, sempre escritos aqui com iniciais maiúsculas como mais uma forma de humilde homenagem. Vistos, ‘papéis’, taxas, polícia, indocumentação, cursos de português, informações sobre o país, conhecimentos das leis nacionais, trabalho, direitos trabalhistas e previdenciários, avaliação de currículo escolar, conclusão dos estudos, convalidação de diplomas, exercício da profissão, geração de renda, empregabilidade, gestão de negócios, educação e saúde públicas, mobilidade, transportes públicos, habitação, comunidade apoiadora de compatriotas, guetos, integração local, acolhidas, desconfianças, restrições, rejeições, e tantas outras questões.

Nesse contexto, muitas são as frases ouvidas por eles: seja bem-vindo; esse não é seu país; porque não volta pra sua terra?; vêm tirar nossos empregos; precisa de ajuda?; fala português?; estão invadindo nossa terra; porque o governo não impede a entrada deles?; o Brasil foi construído por imigrantes; falam muito enrolado; eles têm os mesmos direitos que nós, e um sem-fim de sentenças. Mal sabemos o poder de nossas palavras…

Por fim, há mais uma coisa que os que migram sempre portam consigo,. Um verdadeiro tesouro identitário e existencial. Inalienável quanto há vida : suas histórias. Histórias de jornadas de luta pessoal e familiar, de sonhos (e, as vezes, pesadelos), de alegrias e tristezas, de integração e de retorno. A estas lindas ou terríveis histórias de vida, com suas dores e doçuras, ônus e bônus, é dedicada cada palavra deste texto e, doravante, à sua contação será dedicado este espaço.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://migramundo.com/sobre-cruzadores-as-de-fronteiras/

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Razão, história e fé: algo sobre o percurso de Joseph Ratzinger

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Cardeal Joseph Ratzinger antes de sua eleição como papa

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

Pensar a própria fé é uma tarefa teológica. Toda e qualquer pessoa que se propõe a se debruçar sobre a teologia precisa estar disposta a fazer esse exercício. Ao mesmo tempo, a fé deve ser compreendida como um movimento vivo, sempre tendo clareza de que a teologia se faz a partir de questões de nosso tempo. Toda teologia que não acompanha seu tempo tende a não cumprir seu papel e se mostrar como sistema morto para o momento em que se está.

Ratzinger exemplifica muito bem essa situação ao utilizar o conto de Kierkegaard, colocando o teólogo como um palhaço sem máscara que tenta avisar uma aldeia que o circo no qual trabalha está a pegar fogo e este atingirá a cidade se nada for feito. Por acharem que o palhaço está a fazer palhaçadas, todos da aldeia não lhe dão atenção. Como consequência, o circo pega fogo, a cidade pega fogo e todos morrem.  O mesmo drama que sofre o palhaço ao ver que não lhe dão ouvidos, assim também sofre o teólogo no mundo de hoje ao tentar expor sua fé com a antiga roupagem medieval (RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. 1970, p.9).

Vemos em Ratzinger a preocupação com essa teologia que deve ser atualizada para o mundo contemporâneo e que sirva de base para diversos cristãos que querem responder a respeito de sua fé.

Na atualidade, por sua vez, é possível perceber certo movimento duplo: ao mesmo tempo em que há grande valorização daquilo que é comprovável pela ciência e pode ser tangível, também há a busca constante das experiências espirituais por parte do ser humano contemporâneo. A sociedade de hoje busca a experiência, o novo, o diferente, como que em uma tentativa feroz de sair daquilo que pode ser visto e cientificamente provado.

É comum surgir novos movimentos que propõem a explicação do Universo, o encontro consigo mesmo, a interação com a natureza. Diante disso, poderíamos nos perguntar : haveria nessa atitude impressa a necessidade da busca por algo que transcende a nós mesmos? Estaria nossa sociedade cansada de tanta comprovação e partiria a buscar algo que não pode ser explicada pela via científica e histórica? Terá nossa sociedade a necessidade de algo que seja mistério, somente experimentado pelo mais profundo do ser?

Ratzinger, por sua vez, está longe de ser um místico no sentido comumente pensado do termo. Todo aquele que se dispuser a ler suas obras com atenção perceberá que a intenção de nosso teólogo é fazer a conciliação entre razão, história e fé. Esta talvez pode ser caracterizada como uma de suas principais bandeiras ao longo da trajetória como teólogo. Porém, ao mesmo tempo em seus escritos, revela-se como alguém que vê com grande valor a experiência de fé.

Dessa forma, Ratzinger se mostra como teólogo que busca de alguma maneira contribuir para o enriquecimento da fé cristã, seja por meio da grande pesquisa científica que faz, seja pelo grande interesse que tem em propor um relacionamento pessoal com Jesus Cristo para todo aquele que se dispõe a Segui-lo.

Revisitar o pensamento de Ratzinger se mostra de grande valia para o cristianismo contemporâneo, visto seu esforço enquanto teólogo ter se mostrado como tentativa de trazer a fé cristã para um mundo que não está mais na cristandade, mantendo o comprometimento intelectual demandado pelo nosso tempo e uma fé genuína, ancorada na pessoa de Jesus Cristo.

Caso o leitor e a leitora desse pequeno texto tenham interesse em conhecer mais sobre a obra de Ratzinger, recomendo seu livro Introdução ao Cristianismo, elaborado com base nos cursos de verão dados em 1967, bem como sua trilogia escrita a partir de 2005, Jesus de Nazaré.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1511634/2021/04/razao-historia-e-fe-algo-sobre-o-percurso-de-joseph-ratzinger/