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domingo, 17 de outubro de 2021

Mergulhando na encarnação continuada do Verbo

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo d0 Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ

 

‘As mais antigas tradições cristãs perceberam a riqueza inesgotável da oração de contemplação dos Mistérios da Vida de Cristo. Entre eles trazemos aqui Ludolfo de Saxônia, autor da Vita Christi que transformou o orgulhoso cavaleiro Íñigo de Loyola em um Peregrino que nada mais queria do que revestir-se das insígnias de Cristo pobre e humilhado, com a Cruz às costas.

González Buelta assim situa a importância da consideração orante dos Mistérios da Vida de Cristo, a serem contemplados ‘como se eu estivesse presente’, como ensina Ludolfo :

‘‘Jesus trouxe toda a novidade trazendo-se a si mesmo’ (Santo Irineu). Mas isso não quer dizer que nós o tenhamos já compreendido plenamente. Desde esta situação atual que abre a um leque de tradições culturais e religiosas como nunca antes na história, e desde nossas complexas situações pessoais, aproximamo-nos de Jesus, de cada uma das cenas da sua vida, de cada um de seus mistérios, porque ele os viveu para as pessoas de todos os tempos, não só para o pequeno grupo que o cercava no momento de sua vida. Nós acolhemos hoje sua novidade imprevisível, aproximando-nos de seu mistério através da contemplação de cada momento de sua vida’.

Aproximamo-nos de Jesus ‘desde nossas complexas situações’ e ‘em cada parcela (expressão) de sua vida terrena’, captamos lampejos da eternidade. E assim vamos crescendo no nosso amor por Ele e no desejo de segui-Lo mais e mais!

Quando nos aproximamos de um texto da Sagrada Escritura, quando tomamos uma cena da vida de Jesus para contemplar, é preciso inicialmente tomar consciência que nessa vida humana que o Verbo de Deus assumiu está também a minha existência, que Ele por amor também assume de agora em diante, colocando assim as bases para um diálogo continuado e eterno comigo.

A Encarnação não é um evento arqueológico que enxergamos num passado longínquo. González Buelta insiste que o Verbo encarnado assumiu também a minha vida, por amor, e por isso podemos verdadeiramente conversar com Ele pessoalmente. Santo Inácio, apropriando-se criativamente da tradição da Lectio Divina beneditina, sentia reverberar nas suas entranhas mais profundas cada um dos Mistérios da vida de Cristo, que o interpelavam a uma mudança de vida. Isso explica por que, ao escrever o famoso livrinho dos Exercícios, ele insiste trazendo algumas frases desconcertantes, entrelaçando as existências de Cristo Nosso Senhor e as nossas : 

Imaginando Cristo, nosso Senhor diante de mim, na cruz, fazer um colóquio : como, de Criador, se fez homem e como, da vida eterna, chegou à morte temporal e assim morreu por meus pecados’ (EE 53). Quando fiz meus primeiros Exercícios espirituais, como jovem inexperiente noviço jesuíta, confesso que tal frase me causou indignação : como poderia Cristo morrer por meus pecados, se morreu dois mil anos antes de eu nascer? Demorou muito tempo até que eu compreendesse que a Encarnação continua acontecendo!

A humildade de Deus que dialoga conosco : Na nossa vida de oração, somos chamados a acompanhar, desde dentro, o itinerário de Nosso Senhor, no seu incansável movimento amoroso encarnatório. O Verbo se fez carne, se fez homem, mas que tipo de homem? Quais suas opções, escolhas, renúncias? O que abraçou verdadeiramente e o que jamais consentiu na sua caminhada entre nós? Importa muito na oração realmente termos os olhos fixos em Jesus, como nos exorta o autor da Carta aos Hebreus : ‘Corramos com constância a corrida que nos espera, com os olhos fixos naquele que iniciou e realizou a fé, em Jesus, o qual, pela alegria que lhe foi proposta, sofreu a cruz, desprezou a humilhação e sentou-se à direita do trono de Deus. Refleti sobre aquele que suportou tal oposição dos pecadores, e não sucumbireis ao desânimo. Ainda não resististes até o sangue em vossa luta contra o pecado’ (Hb 12,1-4).

Nossa oração se resumirá, pois, em ver Jesus, ouvir o que diz, considerar o que faz. A Ele toda a honra e glória!

Sigamos ainda uma vez mais González Buelta :

Deus não se fez simplesmente homem, mas sim um homem pobre, que nasceu nos subúrbios de Belém e morreu expulso de Jerusalém. Essa imagem de Deus e a humildade com que se aproximou de nós, transformou a vida dos simples, mas provocou a rejeição dos que se viam ameaçados em seus privilégios, instalados na segurança religiosa de seus conceitos, na superioridade que lhes conferia sua justiça e no poder de sua riqueza. Em Jesus Deus se revela como um Deus pobre e humilde, socialmente débil, que desceu até o fundo da vida humana, e a partir dali assume permanentemente cada vida destroçada para levá-la à plenitude da vida em uma solidariedade sem fim’.

Estamos diante de um Deus que se abaixa, se inclina para poder ‘colocar-se à altura’(!) da nossa vida, não como um Todo Poderoso que nos esmaga com sua Onipotência, mas como um ‘companheiro’ que se interessa verdadeiramente por nós e tem interesse em conversar conosco sobre o que está se passando na nossa vida.

Jesus assume permanentemente cada vida destroçada para levá-la à sua plenitude’ : Nas palavras de González Buelta, ecoa a definição mais perfeita da vida de Jesus, registrada por Lucas nos Atos dos Apóstolos (10,38) : ‘Ele passou pelo mundo fazendo o bem!’. Somos convidados, no movimento da oração, ao configurar-nos a Cristo, a assumir, com a sua graça, essa missão de nos aproximarmos das vidas descartadas pela sociedade, insuflando nelas o Espírito de Vida e Consolação!

O ‘não saber’, ‘a diferença’ e ‘o sem sentido’ se integram contemplando a Jesus : Muitas vezes, quando nos inclinamos para orar, nossos corações estão cheios de angústia, a mente repleta de dúvidas atormentadoras, somos abraçados pela incerteza e incapacidade de ver bem o que fazer. Pois bem, é exatamente em momentos como esses, onde o peso da vida e os limites próprios, da Instituição, da sociedade pesam sobre nós, que a oração se faz mais premente e essencial, por mais dura que seja. Comenta González Buelta :

Jesus é a Verdade e o sentido último onde se podem integrar a alegria e os momentos dilacerantes da vida. Na contemplação nos aproximamos dele tratando de compreender sua pessoa, de entender sua lógica desconcertante, que nos permite ordenar-nos a nós mesmos e a toda a realidade em torno de outra melodia diferente da que escutamos normalmente em nosso mundo. É a sabedoria de Deus que nos ama a partir ‘de uma debilidade’ que provoca o escândalo dos judeus e a desqualificação dos pagãos ilustrados que consideram a cruz e a ressurreição como uma loucura (1 Cor 1, 18-25). Jesus se aproximou da ‘diferença’ dos doentes, pobres, pecadores, samaritanos e últimos. Também ele se sentiu atravessado pelo ‘não saber’ doloroso, não em coisas pequenas, mas no centro mesmo de sua missão. Não seria possível cumprir sua missão sem passar pela cruz? (Mc 14,35). Nem sequer sabe o dia nem a hora do final da história! (Mc 13,32)’.

Trata-se de um parágrafo para ler e reler, detendo-nos onde experimentarmos maior consolo espiritual. A mim me traz muita esperança, ao afirmar que é na nossa fraqueza que somos escolhidos. Pois não é verdade que a maior parte das vezes em que buscamos a oração não era exatamente por nos sentirmos desfalecidos e impotentes? A sabedoria da cruz, embora não sejamos nem judeus nem gregos, também não nos desconcerta ainda hoje?

Nos momentos mais árduos, áridos, onde parecemos carregar nos ombros um fardo insuportável, gosto de rezar dois Coríntios 12,10 : ‘Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando estou fraco, então, sou forte’. E Fl 4,13 : ‘Pois tudo posso naquele que me fortalece’.

Ter que caminhar ‘em meio ao não-saber’ pode ser vivido como um tormento cotidiano ou como uma aventura de fé. Mas temos que admitir que os grandes personagens da Sagrada Escritura não foram poupados de trilhar esse itinerário. Basta aqui evocar os ‘grandes’ Abraão, Moisés e ainda Nossa Senhora, ‘que tudo guardava no seu coração’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1544739/2021/10/mergulhando-na-encarnacao-continuada-do-verbo/

quarta-feira, 4 de março de 2020

Conectados na rede e desconectados do mundo


 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Viver cristão que se manifesta somente nas redes e não age no mundo não é autêntico
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


‘Estamos numa era tecnológica. Embora haja ainda algumas pessoas que não se habituaram a isso, que nasceram antes da era da informática e dos computadores, é inegável que as telas ocupam também grande parte de suas vidas. Para os nascidos após a década de 2000 no mundo ocidentalizado, já se torna impensável um mundo sem telas, conexão com a internet ou redes sociais. Para os mais novos, então, um mundo sem redes sociais poderia parecer extremamente sem graça e sem nada para fazer.

Curiosamente, é interessante perceber que, ao mesmo tempo em que se cresce a conectividade em redes sociais e espaços virtuais, acontece também um distanciamento das relações pessoais e presenciais. Não é difícil encontramos grupos que dialogam diariamente em ambiente virtual, mas que demoram anos para se encontrarem presencialmente, face a face. Da mesma forma, não raramente se descobre que a pessoa super descolada, inteligente e mente aberta na internet, quando conhecida pessoalmente, revela-se preconceituosa e rasa em suas argumentações.

O mundo online oferece essa opção. Pode-se ser nas redes e passar a imagem nos ambientes virtuais que se quiser, mesmo não tendo nada a ver com a realidade do dia a dia. Afinal, a rede, principalmente as mídias sociais, é o lugar de pessoas felizes, sem problemas, sem stress, viajadas, descoladas, amigas de todas, dentre tantos outros adjetivos que se queira colocar. O importante é não deixar lugar para tristezas, desafetos e intempéries cotidianos, pois isso não cabe no ambiente que todos veem. A alegria deve ser pública e o sofrimento privado. Mesmo se compartilhado, deve ser somente para um grupo selecionado dessas mesmas redes. Nelas não há espaço para vidas imperfeitas, devendo o mundo sempre ser colorido, ensolarado e com um sorriso no rosto.

Embora seja tentador esse mundo online, sair dele é importante. Afinal, o mundo real acontece longe das telas. Nele se dá o encontro verdadeiro com o ser do outro, com a dor da vida, com as intempéries e alegrias advindas da experiência cotidiana e dos relacionamentos diários. Abrigar-se somente num mundo online, esquecendo-se do mundo real, não dificilmente se mostra como fuga que muitos buscam para não ter que lidar com o absurdo que, muitas vezes, a vida revela ser.

Do ponto de vista teológico, diante de um mundo virtual, com o qual cada vez mais pessoas se veem encantadas e onde desejam habitar 24 horas por dia, acredito ser de suma importância resgatar o princípio da encarnação e seu conceito de ‘assumir a carne do mundo’. Faz-se mister resgatar o valor do encontro com a pessoa e não seu avatar, de maneira que haja espaço para as alegrias e tristezas que somente uma corporeidade que se relaciona com outra pode trazer.

Isso não quer dizer que se deva abandonar as redes sociais ou usufruir dos benefícios da conectividade, o que não faria sentido. O que aqui se diz consiste na atenção ao grande perigo que há em imaginar a possibilidade de viver o cristianismo somente online, aparte da corporeidade. Somente ações efetivas, que tocam a realidade das pessoas – principalmente dos marginalizados da sociedade, que em sua maioria não estão nas redes –, tornam possível a real compreensão do princípio da encarnação.

Assim, um suposto viver cristão que se manifesta somente nas redes e não age efetivamente no mundo não é autêntico, mas somente culto à própria vaidade.’


Fonte :

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Natal : a humanidade divinizada

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Filho de Deus revelou a beleza escondida em cada ser humano.
*Artigo de Jaldemir Vitório, SJ, 
mestre em Sagrada Escritura, pelo Pontifício Instituto Bíblico 
e doutor em Teologia pela PUC do Rio de Janeiro

  
‘A comercialização do Natal lançou densa nuvem sobre o sentido litúrgico e espiritual de um tema fundamental da fé cristã : o Mistério da Encarnação. A sociedade de consumo, alavancada pela publicidade, transformou o período natalino em fonte de lucro. E o avalia como bom ou ruim pelo parâmetro econômico. Por conseguinte, o Natal se identifica com comida e bebida, trocas de presentes, enfeites das casas, comemorações carregadas de sentimentalismo vazio e muitas outras exterioridades, descomprometidas com o Evento que está na origem de tudo aquilo, o nascimento de Jesus de Nazaré.

Subjacente ao clima contagiante de fraternidade, a comover até corações duros, está o paradoxo de se deixar fora da festa aquele a quem se festeja. Estando Jesus excluído, seu lugar é ocupado pelo Papai Noel, cuja imagem onipresente de velhinho bonachão coloca o homenageado de escanteio, relegando-o ao esquecimento. O caridoso São Nicolau (séc. III-IV), que está na origem da tradição de distribuir presentes às crianças, foi recriado pela publicidade da Coca-Cola e introjetado no imaginário infantil. O Menino Jesus e o presépio estão fora de cogitação, quando o tema é o Natal dos publicitários, dos comerciantes e dos consumidores.

Outra vertente do paradoxo natalino diz respeito à contaminação das consciências de pessoas autodenominadas cristãs e, até mesmo, engajadas em instituições eclesiais. O poder de convencimento da mídia anestesia-lhes as consciências, nivelando-as com quem está longe de se declarar cristão e abraçar o ethos evangélico como projeto de vida. As celebrações natalinas da sociedade de consumo colocam no mesmo patamar, sem qualquer distinção, muitos que, da boca para fora, professam ser discípulos e discípulas de Jesus e quem está, simplesmente, interessado em comer, beber e festejar. Triste destino do projeto de Jesus de Nazaré!

A beleza do Natal cristão alicerça-se na correta compreensão de um versículo lapidar do evangelho de João : ‘O Verbo fez-se carne e armou sua tenda entre nós!’ (Jo 1,14). A primeira parte da afirmação aponta para algo de extrema relevância, qual seja o encontro da transcendência e da imanência, do divino e do humano, da eternidade e da história, do absoluto e do relativo no advento de Jesus de Nazaré, em quem ‘o Verbo se fez carne’. Paralelamente ao processo de humanização da divindade, acontece a divinização da humanidade. Tal convergência do humano e do divino abre perspectivas insuspeitadas de interpretação de Gn 1,27 : ‘Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou’, onde ambas as dimensões se fazem presentes na intenção do Criador.

A metáfora da segunda parte do versículo joanino sublinha a dinâmica do Mistério da Encarnação, feita de simplicidade, de escondimento e de pobreza. ‘Armar a tenda’ evoca provisoriedade, fragilidade e, sobretudo, solidariedade. O Verbo que se faz carne, jamais, será refém de estruturas imponentes e sólidas, sem dinamismo histórico, descoladas da caminhada do Povo de Deus. A tenda, pelo contrário, favorece a mobilidade, de modo a se poder estar onde está a humanidade carente de salvação, em sua eterna peregrinação. Ela permite ao Verbo ser, de fato, ‘Emanuel’, na vida das comunidades de fé, em marcha, rumo à comunhão definitiva com o Pai. O Verbo peregrino recusa-se a se tornar refém e se deixar enquadrar em dogmas e esquemas caducos. Ele é livre para armar e desarmar sua tenda para estar onde a humanidade clama pela misericórdia do Pai.

O texto joanino exige pensar a antropologia cristã em perfeita sintonia com a cristologia. Em outras palavras, o evento Jesus de Nazaré torna-se referência para se falar da humanidade. Assim, quanto se afirma dele, se desdobrará nas afirmações a respeito de qualquer ser humano. Um imenso desafio a ser enfrentado diz respeito ao descompasso instaurado entre antropologia e cristologia. Uma cristologia em tom maior, exaltando a divindade de Jesus e seu total enraizamento em Deus, contrapõe-se a uma antropologia em tom menor, que acusa o ser humano de pecador e considera a humanidade massa damnata, ‘gemendo e chorando neste vale de lágrimas’. A superação do descompasso acontece na perfeita convergência entre antropologia e cristologia, ambas feitas em tom maior, recusando-se a ver o ser humano pelo avesso. A humanidade e a divindade de Jesus de Nazaré encontram-se em cada ser humano, ‘imagem e semelhança de Deus’.

O tempo litúrgico do Natal convida-nos a recuperar a dignidade de cada ser humano, ao detectar a divindade que carrega dentro de si. A antropologia cristã de viés positivo poderia ser uma porta aberta para a superação do pessimismo que distorce a visão de muita gente, levando-as a rotular o semelhante de maneira incompatível com os anseios do Criador. Se fôssemos capazes de vislumbrar o divino que existe no mais íntimo de nós e no mais íntimo do nosso próximo, com certeza, estaríamos aptos para construir o mundo mais justo, humano e fraterno, ansiado por todos.

Por outro lado, o Natal confronta-nos com a enorme responsabilidade de reverter o processo de desconstrução da civilização, que caminha a passos de gigante e se torna visível, mormente, na banalização da vida e no desrespeito aos direitos humanos elementares. A recordação do nascimento de Jesus de Nazaré estimula as pessoas de boa-vontade a se empenharem, de corpo e alma, no restabelecimento da dignidade humana aviltada, para que, nelas, brilhe luminoso o clarão da divindade que carregam dentro de si. Ao se fazer humanidade e habitar entre nós, o Filho de Deus revelou a beleza escondida em cada ser humano.

Um pensamento lúcido de Santo Atanásio (séc. III-IV) – ‘Deus se fez homem, a fim de que o homem se tornasse Deus’ – ilumina o sentido do Natal. A isso, a teologia oriental chama de théosis, divinização ou deificação do humano. Cada Natal é um convite aos discípulos e às discípulas de Jesus para deixarem transparecer a riqueza da divindade, escondida no mais íntimo de si.’


Fonte :


quarta-feira, 6 de junho de 2012

O corpo de Cristo tem também um coração


Este artigo foi gentilmente cedido por Dom João Evangelista Kovas, OSB,
monge beneditino do Mosteiro de São Bento de São Paulo.


No início desse mês de junho celebramos duas solenidades importantes da Igreja: Corpus Christi e Sagrado Coração de Jesus. Apesar de celebrarem aspectos diferentes do mistério de nossa salvação a partir de Jesus, elas se aproximam muito quanto ao seu significado, sobretudo no que diz respeito até onde vai o amor de Deus por nós.

A primeira solenidade celebra a memória da Eucaristia, do pão e do vinho transformados em carne e sangue de Cristo, os quais nos são dados como “verdadeira comida e verdadeira bebida”. (Jo 6,55). Corpus Christi significa em latim o corpo de Cristo, ou seja, a sua humanidade. Deus vem ao mundo e assume a natureza humana, a fim de manifestar para nós o mistério do amor de Deus por nós. Doravante, com a encarnação do Filho de Deus, tudo o que é divino se expressa em Jesus, ou seja, se expressa em termos humanos e a partir de uma vida humana. Assim, nada do que é divino está escondido para o ser humano. Podemos ainda não entender tudo o que isso significa, mas Deus já nos visitou e nos deu provas concretas de que deseja travar conosco um diálogo, fazer de nós seus interlocutores. Quando Jesus dá a sua carne como comida e o seu sangue como bebida, ele partilha conosco sua humanidade santificada e com ela a sua vida divina. É como se nos dissesse que não há nada, absolutamente nada, nem mesmo sua carne e seu sangue, que não tenha partilhado conosco. Ele se entrega inteiramente por amor a cada uma de nós. Com isso, somos depositários também de sua vida divina.

Vejam que grande mistério. Deus se aproxima da humildade de nossa condição para nos conceder algo infinitamente maior do que somos. Não há mérito algum da nossa parte que nos mereça tão grande dádiva. Pelo contrário, nossos pecados são prova de que somos ingratos a Deus, apesar de tudo o que Ele já nos concede. Mesmo assim ele está disposto a perdoar todos os nossos pecados e toda nossa indiferença em relação a Ele, se aceitamos de coração sincero receber tão excelsa dádiva.

O mistério da encarnação de Deus é sem dúvida o mistério mais enigmático do cristianismo, depois do mistério da Santíssima Trindade. É oportuno lembrar que nele o que está em questão não é tanto uma discussão a respeito da comunhão da natureza humana e da natureza divina na pessoa de Jesus, ainda que sem dúvida sejam questões importantes para nós. O ponto central do mistério é o amor de Deus irrestrito.

  
Na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, a segunda solenidade celebrada no início do mês, também apresenta o amor de Deus como seu ponto central. Aqui é enfocado o amor de Deus que é expresso na humanidade de Jesus. Deus se encarnou, com isso ele adquiriu um coração. Portanto, o amor divino é agora expresso humanamente. O Sagrado Coração de Jesus é o coração de Jesus que arde de um amor ao mesmo tempo humano (coração) e divino (sagrado). “Deus é amor” (cf. IJo 4,8); quando ele se encarna, ama até o fim humanamente. O amor humano de Jesus é um amor capaz de salvar toda humanidade, porque tudo o que era divino em Jesus é também humano.

No Antigo Testamento, encontramos muitas passagens que fala do coração de Deus, fala até de um amor ciumento por Israel a quem Deus escolheu dentre todas as nações. Em Jesus, o que poderia ser apenas uma metáfora – pois Deus que está acima dos céus e é o criador de todas as coisas, ele mesmo não tem um coração –, em Jesus, Deus adquiriu um coração e com ele amou a todos até o fim. A encarnação de Jesus fez da metáfora do Antigo Testamento sua realização mais crua e concreta.

Esse profundo mistério a Igreja pode entender ao longo de sua história. Isso confirma para nós homens e mulheres de Igreja a promessa que enviaria o Espírito Santo, a fim de nos ensinar todas as coisas. Mas, há também um fato histórico que nos confirma tudo isso de modo bastante ilustrativo: o milagre de Lanciano. Nessa pequena aldeia italiana, no século VIII, a insistente descrença de um sacerdote na Eucaristia foi ocasião de um milagre até hoje constatável a olhos vistos para nós. Durante uma celebração da missa a Eucaristia adquiriu as notas sensíveis de carne e sangue humanos, o que de fato são a Eucaristia. Recentemente, em 1970, o material foi submetido à pesquisa com autorização do Vaticano. Constatou-se que se tratava de um tecido cardíaco vivo do miocárdio. Jesus quando dá de seu corpo como comunhão para os homens, dá de seu coração.