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terça-feira, 17 de setembro de 2024

Maria, mãe do Verbo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Brás Lorenzetti


Existem inúmeros títulos marianos sobre os quais poderíamos discorrer ou muitos temas bíblicos à nossa disposição para refletir sobre eles, porém, fico pensando em como se poderia estabelecer uma aproximação ao tema do Mês Bíblico deste ano, que é o Livro de Ezequiel, e o lema ‘Porei em vós meu Espírito e vivereis’ (Ez 37,14). 

Algumas verdades e escritos de Ezequiel nos direcionam a Maria no sentido da profecia à realização. Se da parte de Ezequiel os oráculos proféticos anunciam uma realidade de salvação, em Maria a salvação se torna realidade; se os gestos proféticos querem mostrar a verdade e a presença de Deus no meio de povo, chamando-o à conversão, em Maria, na pessoa de um ser frágil e inocente, o Jesus Menino se torna presença viva de Deus, profeta verdadeiro e definitivo entre nós (cf. Jo 6,14); em relação às parábolas e alegorias proferidas por Ezequiel, como a do povo de Israel que se torna videira estéril, podemos dizer que Maria é videira que dá o fruto verdadeiro e definitivo, Jesus. Se a parábola da esposa infiel é uma forma de chamar o povo à fidelidade ao seu Senhor, em Maria vemos a fidelidade mais extremada e absoluta : ‘Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra’ (Lc 1,38); as visões e êxtases do profeta nos remetem ao realismo do Magnificat proclamado por Maria : ‘Desde agora me proclamarão bem-aventurada todas as gerações, porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso e cujo nome é santo’ (Lc 1,46-55). Assim, em Maria as profecias se tornam realidade e os anúncios proféticos se cumprem plenamente. 

No campo social, o profeta acusa de infidelidade as lideranças políticas, religiosas e o próprio povo, enquanto Maria proclama que a presença de Jesus, o Deus feito carne, vai promover a solidariedade, saciando de bens os indigentes (cf. Lc 1,53), que os abastados, os que só confiam em sua riqueza e em sua presunção, os que só confiam na riqueza e na sua prepotência, vão sentir sua mão pesada e serão dispersados (cf. Lc 1,53). Se o livro do profeta Ezequiel é marcado pela esperança da restauração, em Maria a profecia se torna realidade : a esperança se chama agora Jesus de Nazaré, o Deus encarnado entre nós.

Que o Senhor derrame seu Espírito sobre nós, a fim de que tenhamos verdadeira vida e discernimento; que possamos ver a presença profética de Maria na vida da Igreja e sua intercessão nos torne fiéis ao Espírito que plenifica e dá vida; que venha sobre nós o dom da profecia e da disponibilidade total, como em Maria.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/maria-mae-do-verbo.html


domingo, 17 de outubro de 2021

Mergulhando na encarnação continuada do Verbo

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo d0 Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ

 

‘As mais antigas tradições cristãs perceberam a riqueza inesgotável da oração de contemplação dos Mistérios da Vida de Cristo. Entre eles trazemos aqui Ludolfo de Saxônia, autor da Vita Christi que transformou o orgulhoso cavaleiro Íñigo de Loyola em um Peregrino que nada mais queria do que revestir-se das insígnias de Cristo pobre e humilhado, com a Cruz às costas.

González Buelta assim situa a importância da consideração orante dos Mistérios da Vida de Cristo, a serem contemplados ‘como se eu estivesse presente’, como ensina Ludolfo :

‘‘Jesus trouxe toda a novidade trazendo-se a si mesmo’ (Santo Irineu). Mas isso não quer dizer que nós o tenhamos já compreendido plenamente. Desde esta situação atual que abre a um leque de tradições culturais e religiosas como nunca antes na história, e desde nossas complexas situações pessoais, aproximamo-nos de Jesus, de cada uma das cenas da sua vida, de cada um de seus mistérios, porque ele os viveu para as pessoas de todos os tempos, não só para o pequeno grupo que o cercava no momento de sua vida. Nós acolhemos hoje sua novidade imprevisível, aproximando-nos de seu mistério através da contemplação de cada momento de sua vida’.

Aproximamo-nos de Jesus ‘desde nossas complexas situações’ e ‘em cada parcela (expressão) de sua vida terrena’, captamos lampejos da eternidade. E assim vamos crescendo no nosso amor por Ele e no desejo de segui-Lo mais e mais!

Quando nos aproximamos de um texto da Sagrada Escritura, quando tomamos uma cena da vida de Jesus para contemplar, é preciso inicialmente tomar consciência que nessa vida humana que o Verbo de Deus assumiu está também a minha existência, que Ele por amor também assume de agora em diante, colocando assim as bases para um diálogo continuado e eterno comigo.

A Encarnação não é um evento arqueológico que enxergamos num passado longínquo. González Buelta insiste que o Verbo encarnado assumiu também a minha vida, por amor, e por isso podemos verdadeiramente conversar com Ele pessoalmente. Santo Inácio, apropriando-se criativamente da tradição da Lectio Divina beneditina, sentia reverberar nas suas entranhas mais profundas cada um dos Mistérios da vida de Cristo, que o interpelavam a uma mudança de vida. Isso explica por que, ao escrever o famoso livrinho dos Exercícios, ele insiste trazendo algumas frases desconcertantes, entrelaçando as existências de Cristo Nosso Senhor e as nossas : 

Imaginando Cristo, nosso Senhor diante de mim, na cruz, fazer um colóquio : como, de Criador, se fez homem e como, da vida eterna, chegou à morte temporal e assim morreu por meus pecados’ (EE 53). Quando fiz meus primeiros Exercícios espirituais, como jovem inexperiente noviço jesuíta, confesso que tal frase me causou indignação : como poderia Cristo morrer por meus pecados, se morreu dois mil anos antes de eu nascer? Demorou muito tempo até que eu compreendesse que a Encarnação continua acontecendo!

A humildade de Deus que dialoga conosco : Na nossa vida de oração, somos chamados a acompanhar, desde dentro, o itinerário de Nosso Senhor, no seu incansável movimento amoroso encarnatório. O Verbo se fez carne, se fez homem, mas que tipo de homem? Quais suas opções, escolhas, renúncias? O que abraçou verdadeiramente e o que jamais consentiu na sua caminhada entre nós? Importa muito na oração realmente termos os olhos fixos em Jesus, como nos exorta o autor da Carta aos Hebreus : ‘Corramos com constância a corrida que nos espera, com os olhos fixos naquele que iniciou e realizou a fé, em Jesus, o qual, pela alegria que lhe foi proposta, sofreu a cruz, desprezou a humilhação e sentou-se à direita do trono de Deus. Refleti sobre aquele que suportou tal oposição dos pecadores, e não sucumbireis ao desânimo. Ainda não resististes até o sangue em vossa luta contra o pecado’ (Hb 12,1-4).

Nossa oração se resumirá, pois, em ver Jesus, ouvir o que diz, considerar o que faz. A Ele toda a honra e glória!

Sigamos ainda uma vez mais González Buelta :

Deus não se fez simplesmente homem, mas sim um homem pobre, que nasceu nos subúrbios de Belém e morreu expulso de Jerusalém. Essa imagem de Deus e a humildade com que se aproximou de nós, transformou a vida dos simples, mas provocou a rejeição dos que se viam ameaçados em seus privilégios, instalados na segurança religiosa de seus conceitos, na superioridade que lhes conferia sua justiça e no poder de sua riqueza. Em Jesus Deus se revela como um Deus pobre e humilde, socialmente débil, que desceu até o fundo da vida humana, e a partir dali assume permanentemente cada vida destroçada para levá-la à plenitude da vida em uma solidariedade sem fim’.

Estamos diante de um Deus que se abaixa, se inclina para poder ‘colocar-se à altura’(!) da nossa vida, não como um Todo Poderoso que nos esmaga com sua Onipotência, mas como um ‘companheiro’ que se interessa verdadeiramente por nós e tem interesse em conversar conosco sobre o que está se passando na nossa vida.

Jesus assume permanentemente cada vida destroçada para levá-la à sua plenitude’ : Nas palavras de González Buelta, ecoa a definição mais perfeita da vida de Jesus, registrada por Lucas nos Atos dos Apóstolos (10,38) : ‘Ele passou pelo mundo fazendo o bem!’. Somos convidados, no movimento da oração, ao configurar-nos a Cristo, a assumir, com a sua graça, essa missão de nos aproximarmos das vidas descartadas pela sociedade, insuflando nelas o Espírito de Vida e Consolação!

O ‘não saber’, ‘a diferença’ e ‘o sem sentido’ se integram contemplando a Jesus : Muitas vezes, quando nos inclinamos para orar, nossos corações estão cheios de angústia, a mente repleta de dúvidas atormentadoras, somos abraçados pela incerteza e incapacidade de ver bem o que fazer. Pois bem, é exatamente em momentos como esses, onde o peso da vida e os limites próprios, da Instituição, da sociedade pesam sobre nós, que a oração se faz mais premente e essencial, por mais dura que seja. Comenta González Buelta :

Jesus é a Verdade e o sentido último onde se podem integrar a alegria e os momentos dilacerantes da vida. Na contemplação nos aproximamos dele tratando de compreender sua pessoa, de entender sua lógica desconcertante, que nos permite ordenar-nos a nós mesmos e a toda a realidade em torno de outra melodia diferente da que escutamos normalmente em nosso mundo. É a sabedoria de Deus que nos ama a partir ‘de uma debilidade’ que provoca o escândalo dos judeus e a desqualificação dos pagãos ilustrados que consideram a cruz e a ressurreição como uma loucura (1 Cor 1, 18-25). Jesus se aproximou da ‘diferença’ dos doentes, pobres, pecadores, samaritanos e últimos. Também ele se sentiu atravessado pelo ‘não saber’ doloroso, não em coisas pequenas, mas no centro mesmo de sua missão. Não seria possível cumprir sua missão sem passar pela cruz? (Mc 14,35). Nem sequer sabe o dia nem a hora do final da história! (Mc 13,32)’.

Trata-se de um parágrafo para ler e reler, detendo-nos onde experimentarmos maior consolo espiritual. A mim me traz muita esperança, ao afirmar que é na nossa fraqueza que somos escolhidos. Pois não é verdade que a maior parte das vezes em que buscamos a oração não era exatamente por nos sentirmos desfalecidos e impotentes? A sabedoria da cruz, embora não sejamos nem judeus nem gregos, também não nos desconcerta ainda hoje?

Nos momentos mais árduos, áridos, onde parecemos carregar nos ombros um fardo insuportável, gosto de rezar dois Coríntios 12,10 : ‘Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando estou fraco, então, sou forte’. E Fl 4,13 : ‘Pois tudo posso naquele que me fortalece’.

Ter que caminhar ‘em meio ao não-saber’ pode ser vivido como um tormento cotidiano ou como uma aventura de fé. Mas temos que admitir que os grandes personagens da Sagrada Escritura não foram poupados de trilhar esse itinerário. Basta aqui evocar os ‘grandes’ Abraão, Moisés e ainda Nossa Senhora, ‘que tudo guardava no seu coração’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1544739/2021/10/mergulhando-na-encarnacao-continuada-do-verbo/

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Santa Maria Mãe de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de
Santa Maria Mãe de Deus :

Ofício das Leituras

Segunda leitura
Das Cartas de Santo Atanásio, bispo
(Epist. Ad Epictetum, 5-9; PG 26, 1058. 1062-1066)   (Sec. IV)

O Verbo assumiu nossa natureza no seio de Maria
O Verbo de Deus veio em auxílio da descendência de Abraão, como diz o Apóstolo. Por isso devia fazer-se em tudo semelhante aos irmãos (Hb 2,16-17) e assumir um corpo semelhante ao nosso. Eis por que Maria está verdadeiramente presente neste mistério; foi dela que o Verbo assumiu, como próprio, aquele corpo que havia de oferecer por nós. A Sagrada Escritura, recordando este nascimento, diz : Envolveu-o em panos (Lc 2,7); proclama felizes os seios que o amamentaram e fala também do sacrifício oferecido pelo nascimento deste Primogênito. O anjo Gabriel, com prudência e sabedoria, já o anunciaram a Maria; não lhe disse simplesmente : aquele que nascer em ti, para não se julgar que se tratava de um corpo extrínseco nela introduzido; mas : de ti (cf. Lc 1, 35 Vulg.), para se acreditar que o fruto desta concepção procedia realmente de Maria.

Assim foi que o Verbo, recebendo nossa natureza humana e oferecendo-a em sacrifício, assumiu-a em sua totalidade, para nos revestir depois de sua natureza divina, segundo as palavras do Apóstolo : É preciso que este ser corruptível se vista de incorruptibilidade; é preciso que este ser mortal se vista de imortalidade (1Cor 15,53).

Estas coisas não se realizaram de maneira fictícia, como julgam alguns, o que é inadmissível! Nosso Salvador fez-se verdadeiro homem, alcançando assim a salvação do homem na sua totalidade. Nossa salvação não é absolutamente algo de fictício, nem limitado só ao corpo; mas realmente a salvação do homem todo, corpo e alma, foi realizada pelo Verbo de Deus.

A natureza que ele recebeu de Maria era uma natureza humana, segundo as divinas Escrituras, e o corpo do Senhor era um corpo verdadeiro. Digo verdadeiro, porque era um corpo idêntico ao nosso. Maria é portanto nossa irmã, pois todos somos descendentes de Adão.

As palavras de João : O Verbo se fez carne (Jo 1,14) têm o mesmo sentido que se pode atribuir a uma expressão semelhante de Paulo : O Cristo fez-se maldição por nós (cf. Gl 3,13). Pois da íntima e estreita união com o Verbo, resultou para o corpo humano em engrandecimento sem par : de mortal tornou-se imortal; sendo animal, tornou-se espiritual; terreno, transpôs as portas do céu.

Contudo, mesmo tendo o Verbo tomado um corpo no seio da Maria, a Trindade continua sendo a mesma Trindade, sem aumento nem diminuição. É sempre perfeita, e na Trindade reconhecemos uma só Divindade; assim, a Igreja proclama um único Deus no Pai e no Verbo.


Fonte :
  

domingo, 25 de maio de 2014

Santa Maria Madalena de Pazzi, Virgem

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Nasceu em Florença (Itália), no ano de 1566. Teve uma piedosa educação e entrou na Ordem das Carmelitas; levou uma vida de oração e abnegação, rezando assiduamente pela reforma da Igreja e dirigindo suas irmãs religiosas no caminho da perfeição. Recebeu de Deus muitos dons extraordinários. Morreu em 1607.


A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de 
Santa Maria Madalena de Pazzi, Virgem :

Ofício das Leituras

Segunda leitura
Dos Escritos sobre a Revelação e a Provação,
de Santa Maria Madalena de Pazzi, virgem
(Mss. III, 186.264; IV, 716: Opere di S. M. Madalena de Pazzi,
Firenze, 1965, 4, pp. 200.269; 6.p. 194)      (Séc. XVI)

Vem, Espírito Santo
Verdadeiramente és admirável, ó Verbo de Deus, no Espírito Santo, fazendo com que ele se infunda de tal modo na alma, que ela se uma a Deus, conheça a Deus, e em nada se alegre fora de Deus.

O Espírito Santo vem à alma, marcando-a com o precioso selo do sangue do Vergo, ou seja, do Cordeiro imolado. Mais ainda, é esse mesmo sangue que o incita a vir, embora o próprio Espírito já por si tenha esse desejo.

O Espírito que assim deseja é em si a substância do Pai e do Verbo; procede da essência do Pai e da vontade do Verbo; vem como fonte que se difunde na alma, e a alma nele mergulha toda. Assim como dois rios, confluindo, de tal modo se misturam que o menor perde o nome e recebe o do maior, do mesmo modo age este Espírito divino, quando vem à alma, para com ela se unir. É preciso, pois, que a alma por ser menor, perca seu nome e o ceda ao Espírito Santo; e deve fazer isto transformando-se de tal maneira no Espírito que se torne com ele uma só coisa.

Este Espírito, porém, distribuidor dos tesouros que estão no coração do Pai e guarda dos segredos entre o Pai e o Filho, derrama-se com tanta suavidade na alma, que não se percebe sua chegada e, pela sua grandeza, poucos o apreciam.

Por sua densidade e sua leveza, entra em todos os lugares que estão aptos e preparados para recebe-lo. Na sua palavra frequente, como também no seu profundo silencio, é ouvido por todos; com o ímpeto do amor, ele, imóvel e mobilíssimo, penetra em todos os corações.

Não ficas, Espírito Santo, no Pai, imóvel, nem no Verbo; contudo, sempre estás no Pai e no Verbo e em ti mesmo, e também em todos os espíritos e criaturas bem-aventuradas. Estás ligado à criatura por estreitos laços de parentesco, por causa do sangue derramado pelo Verbo unigênito que, pela veemência do amor, se fez irmão de sua criatura. Repousas nas criaturas que se predispõem com pureza a receber em si, pela comunicação de teus dons, a tua própria presença. Repousas nas almas que acolhem em si os efeitos do sangue do Verbo e se tornam habitação digna de ti.

Vem, Espírito Santo. Venha a unidade do Pai e do bem-querer do Verbo. Tu, Espírito da Verdade, és o prêmio dos santos, o refrigério dos corações, a luz das trevas, a riqueza dos pobres, o tesouro dos que amam, a saciedade dos famintos, o alívio dos peregrinos; tu és, enfim, aquele que contém em si todos os tesouros.

Vem, tu que, descendo em Maria, realizaste a encarnação do Verbo, e realiza em nós, pela graça, o que nela realizaste pela graça e pela natureza.

Vem, tu que és o alimento de todo pensamento casto, a fonte de toda clemência, a plenitude de toda pureza.

Vem e transforma tudo o que em nós é obstáculo para sermos plenamente transformados em ti.


Fonte :
‘In Liturgia das Horas II’, 1591, 1593


quinta-feira, 1 de maio de 2014

Santo Atanásio, Bispo e Doutor da Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
* Artigo de Bento XVI, Papa Emérito

‘Continuando a nossa retrospectiva dos grandes Mestres da Igreja antiga, queremos dirigir hoje a nossa atenção a Santo Atanásio de Alexandria. Este autêntico protagonista da tradição cristã, poucos anos depois da sua morte, foi celebrado como ‘a coluna da Igreja’ pelo grande teólogo e Bispo de Constantinopla Gregório Nazianzeno (Discursos 21, 26), e foi sempre considerado como um modelo de ortodoxia, tanto no Oriente como no Ocidente. Portanto, não foi por acaso que Gian Lorenzo Bernini colocou uma sua estátua entre a dos quatro santos Doutores da Igreja oriental e ocidental juntamente com Ambrósio, João Crisóstomo e Agostinho que na maravilhosa abside da Basílica vaticana circundam a Cátedra de São Pedro.

Atanásio foi sem dúvida um dos Padres da Igreja antiga mais importantes e venerados. Mas sobretudo este grande santo é o apaixonado teólogo da encarnação do Logos, o Verbo de Deus, que como diz o prólogo do quarto Evangelho ‘se fez carne e veio habitar entre nós’ (Jo 1, 14).

Precisamente por este motivo Atanásio foi também o mais importante e tenaz adversário da heresia ariana, que então ameaçava a fé em Cristo, reduzido a uma criatura ‘intermediária’ entre Deus e o homem, segundo uma tendência recorrente na história e que vemos concretizada de diversas formas também hoje. Nascido provavelmente em Alexandria, no Egipto, por volta do ano 300, Atanásio recebeu uma boa educação antes de se tornar diácono e secretário do Bispo da metrópole egípcia, Alexandre. Estreito colaborador do seu Bispo, o jovem eclesiástico participou com ele no Concílio de Niceia, o primeiro de carácter ecuménico, convocado pelo imperador Constantino em Maio de 325 para garantir a unidade da Igreja. Os Padres nicenos puderam assim enfrentar várias questões, e principalmente o grave problema causado alguns anos antes pela pregação do presbítero alexandrino Ário.

Ele, com a sua teoria, ameaçava a fé autêntica em Cristo, declarando que o Logos não era verdadeiro Deus, mas um Deus criado, um ser ‘intermediário’ entre Deus e o homem e assim o verdadeiro Deus permanecia sempre inacessível para nós. Os Bispos reunidos em Niceia responderam preparando e fixando o ‘Símbolo de fé’ que, completado mais tarde pelo primeiro Concílio de Constantinopla, permaneceu na tradição das diversas confissões cristãs e na liturgia como o Credo niceno-constantinopolitano. Neste texto fundamental que expressa a fé da Igreja indivisa, e que recitamos também hoje, todos os domingos, na Celebração eucarística encontra-se a palavra grega homooúsios, em latim consubstantialis : ele pretende indicar que o Filho, o logos, é ‘da mesma substância do Pai, é Deus de Deus’, é a sua substância, e assim é posta em realce a plena divindade do Filho, que tinha sido negada pelos arianos.

Tendo falecido o Bispo Alexandre, Atanásio tornou-se, em 328, seu sucessor como Bispo de Alexandria, e logo depois demonstrou-se decidido a recusar qualquer compromisso em relação às teorias arianas condenadas pelo Concílio niceno. A sua intransigência, tenaz e por vezes muito dura, mesmo se necessária, contra quantos se tinham oposto à sua eleição episcopal e sobretudo contra os adversários do Símbolo niceno, atraiu a implacável hostilidade dos arianos e dos filo-arianos. Apesar do inequívoco êxito do Concílio, que tinha afirmado com clareza que o Filho é da mesma substância do Pai, pouco depois destas ideias erradas voltaram a prevalecer nesta situação até Ário foi reabilitado e foram defendidas por motivos políticos pelo próprio imperador Constantino e depois pelo seu filho Constâncio II. Ele, aliás, que não se interessava tanto pela verdade teológica como pela unidade do Império e dos seus problemas políticos, pretendia politizar a fé, tornando-a mais acessível segundo a sua opinião a todos os seus súbditos no Império.

A crise ariana, que se pensava estar resolvida em Nicéia, continuou por decénios, com vicissitudes difíceis e divisões dolorosas na Igreja. E por cinco vezes durante um trinténio, entre 336 e 366 Atanásio foi obrigado a abandonar a sua cidade, transcorrendo 17 anos no exílio e sofrendo pela fé. Mas durante as suas forçadas ausências de Alexandria, o Bispo teve a oportunidade de defender e difundir no Ocidente, primeiro em Trier e depois em Roma, a fé nicena e também os ideais do monaquismo, abraçados no Egipto pelo grande eremita Antão com uma opção de vida à qual Atanásio sempre esteve próximo. Santo Antão, com a sua força espiritual, era a pessoa mais importante na defesa da fé de Santo Atanásio. Insediado de novo e definitivamente na sua sede, o Bispo de Alexandria pôde dedicar-se à pacificação religiosa e à reorganização das comunidades cristãs. Faleceu a 2 de Maio de 373, dia em que celebramos a sua memória litúrgica.

A obra doutrinal mais famosa do santo Bispo alexandrino é o tratado Sobre a encarnação do Verbo, o Logos divino que se fez carne tornando-se como nós para a nossa salvação. Atanásio diz nesta obra, com uma afirmação que se tornou justamente célebre, que o Verbo de Deus ‘se fez homem para que nos tornássemos Deus; ele fez-se visível no corpo para que tivéssemos uma ideia do Pai invisível, e ele próprio suportou a violência dos homens para que nós herdássemos a incorruptibilidade’ (54, 3). De facto, com a sua ressurreição o Senhor fez desaparecer a morte como se fosse ‘palha no fogo’ (8, 4). A ideia fundamental de toda a luta teológica de Santo Atanásio era precisamente a de que Deus é acessível. Não é um Deus secundário, é o Deus verdadeiro, e através da nossa comunhão com Cristo podemos unir-nos realmente a Deus. Ele tornou-se realmente ‘Deus conosco’.

Entre as obras deste grande Padre da Igreja que em boa parte permanecem ligadas às vicissitudes da crise ariana recordamos depois as quatro cartas que ele enviou ao amigo Serapião, Bispo de Thmuis, sobre a divindade do Espírito Santo, que foi afirmada com determinação, e cerca de trinta cartas ‘festivas’, dirigidas no início de cada ano às Igrejas e aos mosteiros do Egipto para indicar a data da festa de Páscoa, mas sobretudo para garantir os vínculos entre os fiéis, fortalecendo a sua fé e preparando-os para essa grande solenidade.

Por fim Atanásio é também autor de textos meditativos sobre os Salmos, depois muito difundidos e sobretudo de uma obra que constitui o best seller da antiga literatura cristã : a Vida de Antão, isto é, a biografia do abade Santo Antão, escrita pouco depois da morte deste santo, precisamente enquanto o Bispo de Alexandria, exilado, vivia com os monges do deserto egípcio. Atanásio foi amigo do grande eremita, a ponto que recebeu uma das duas peles de ovelha deixadas por Antão como sua herança, juntamente com a capa que o próprio Bispo de Alexandria lhe tinha oferecido. Tendo-se tornado depressa muito popular, traduzida quase imediatamente em latim por duas vezes e depois em diversas línguas orientais, a biografia exemplar desta figura querida à tradição contribuiu muito para a difusão do monaquismo, no Oriente e no Ocidente.

Não por acaso a literatura deste texto, em Trier, está no centro de uma emocionante narração da conversão de dois funcionários imperiais, que Agostinho coloca nas Confissões (VIII, 6, 15) como premissa da sua própria conversão. De resto, o próprio Atanásio mostra ter uma consciência clara da influência que a figura exemplar de Antão podia ter sobre o povo cristão. De facto escreve na conclusão desta obra : ‘Que fosse conhecido em toda a parte, por todos admirado e desejado, até por quantos não o tinham visto, é um sinal da sua virtude e da sua alma amiga de Deus. De facto, Antão não é conhecido pelos escritos nem por uma sabedoria profana nem por qualquer capacidade, mas só pela sua piedade em relação a Deus. E ninguém poderia negar que isto é um dom de Deus. De facto, como se teria ouvido falar na Espanha e na Gália, em Roma e em África deste homem, que vivia retirado entre os montes, se o não tivesse dado a conhecer em toda a parte o próprio Deus, como ele faz com quantos lhe pertencem, e como tinha anunciado a Antão desde o princípio? E também se estes agem no segredo e desejam permanecer escondidos, o Senhor mostra-os a todos como um lampadário, para que quantos ouvem falar deles saibam que é possível seguir os mandamentos e se sintam encorajados a percorrer o caminho da virtude’ (Vida de Antão 93, 5-6).

Sim, irmãos e irmãs! Temos tantos motivos de gratidão para com Santo Atanásio. A sua vida, como a de Antão e de muitos outros santos, mostra-nos que ‘quem caminha para Deus não se afasta dos homens, antes, pelo contrário, torna-se-lhes verdadeiramente vizinhos’ (Deus caritas est, 42).’

 (junho de 2007)

Fonte  :

Bento XVISantos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.  


sexta-feira, 4 de abril de 2014

São Leão Magno e a fé em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano),
reflete sobre a quarta pregação da quaresma de 2014


1. Oriente e ocidente unânimes sobre Cristo

Existem vários caminhos, ou métodos, para aproximar-se à pessoa de Jesus. Pode-se, por exemplo, partir diretamente da Bíblia e, também neste caso, é possível seguir várias vias : a via tipológica, seguida na mais antiga catequese da Igreja, que explica Jesus à luz das profecias e das figuras do Antigo Testamento; a via histórica, que reconstrói o desenvolvimento da fé em Cristo a partir das várias tradições, autores e títulos cristológicos, ou dos diversos ambientes culturais do Novo Testamento. Pode-se, pelo contrário, partir das perguntas e dos problemas do homem de hoje, ou até mesmo da própria experiência de Cristo, e, de tudo isso, chegar à Bíblia. Todos esses são caminhos amplamente explorados.

A Tradição da Igreja elaborou, bem rápido, uma via de acesso ao mistério de Cristo, um modo seu de recolher e organizar os dados bíblicos relativos a ele, e esta via se chama o dogma cristológico, a via dogmática. Por dogma cristológico compreendo as verdades fundamentais sobre Cristo, definidos nos primeiros concílios ecumênicos, especialmente o de Calcedônia, que, em substância, se resumem nesses três pilares : Jesus Cristo é verdadeiro homem, é verdadeiro Deus, é uma só pessoa.

São Leão Magno é o Padre que eu escolhi para introduzir-nos nas profundidades deste mistério. Por um motivo bem específico. Na teologia latina estava pronta por dois séculos e meio a fórmula da fé em Cristo que se tornara o dogma de Calcedônia. Tertuliano tinha escrito : ‘Vemos duas naturezas, não confusas, mas unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e homem (1)’. Depois de muita pesquisa, os autores gregos chegam, por conta própria, a uma formulação idêntica em substância; mas não porque eles tenham se atrasado ou perdido tempo, e sim porque só agora era possível dar àquela fórmula o seu verdadeiro significado, tendo eles evidenciado, enquanto isso, todas as implicações e resolvido as dificuldades.

O Papa São Leão Magno é aquele que gerenciou o momento em que as duas correntes do rio – aquela latina e aquela grega – se uniram e com a sua autoridade de bispo de Roma favoreceu o acolhimento universal. Ele não se contenta em simplesmente transmitir a fórmula herdada por Tertuliano e retomada por Agostinho, mas a adapta aos problemas que apareceram nesse ínterim, entre o concílio de Éfeso do 431 e aquele de Calcedônia do 451. Eis, em grandes linhas, o seu pensamento cristológico, como foi exposto no famoso Tomus ad Flavianum (2).

Primeiro ponto : a pessoa do Deus-homem é idêntica à do Verbo eterno : ‘Aquele que se fez homem, sob a forma de servo, é o mesmo que na forma de Deus criou o homem’. Segundo ponto : a natureza divina e a humana coexistem nesta única pessoa que é Cristo, sem mistura ou confusão, mas cada uma mantendo suas propriedades naturais (salva proprietate utriusque naturae). Ele começa a ser o que não era, sem cessar de ser o que era (3). A obra da redenção exigia que ‘o único e mesmo mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, tivesse que ser capaz de morrer em relação à natureza humana e não morrer com respeito à natureza divina’. Terceiro ponto : A unidade da pessoa justifica o uso da comunicação dos idiomas, pela qual podemos afirmar que o Filho de Deus foi crucificado e enterrado, e também que o Filho do homem veio do céu.

Foi uma tentativa, em grande parte bem sucedida, de finalmente encontrar um acordo entre as duas grandes ‘escolas’ de teologia grega, a de Alexandria e a de Antioquia, evitando os respectivos erros que eram o monofisismo e o nestorianismo. Os antioquenos tinham o reconhecimento, para eles vitais, das duas naturezas de Cristo, e portanto, da plena humanidade de Cristo; os alexandrinos, apesar de algumas reservas e resistências, podiam encontrar na formulação de Leão o reconhecimento da identidade da pessoa do Verbo encarnado e aquela do Verbo eterno, que estava nos seus corações por acima de tudo.

Basta recordar o cerne da definição de Calcedônia para dar-se conta do quanto esteja presente nela o pensamento do Papa Leão :

Ensinamos por unanimidade que deve-se reconhecer o único e mesmo Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na divindade e sempre o mesmo perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (...), gerado antes dos séculos pelo Pai segundo a divindade e nos últimos tempos, por nós homens e para a nossa salvação, gerado por Maria Virgem segundo a humanidade; subsistente nas duas naturezas de modo inconfuso, imutável, indivisível, inseparável, não sendo de forma alguma suprimida a diferença das naturezas por causa da união, pelo contrário, permanecendo preservada a propriedade tanto de uma quanto da outra natureza, elas combinam para formar uma só pessoa e hipóstase (4)’.

Poderia parecer uma fórmula tecnicamente perfeita, mas árida e abstrata, porém, nela se baseia toda a doutrina cristã da salvação. Só se Cristo é homem como nós, o que ele faz, nos representa e nos pertence, e somente se ele também é Deus, aquilo que faz tem um valor infinito e universal, a tal ponto que, como se canta no Adoro te devote, ‘uma única gota de sangue derramado salva o mundo todo do pecado’ (‘Cuius una stilla salvum facere totum mundum qui ab omni scelere’)

Sobre este ponto, oriente e ocidente, são unânimes. Esta era a situação da humanidade antes de Cristo, escrevem, com poucas diferenças entre eles, santo Anselmo entre os latinos e o Cabasilas entre os ortodoxos. De um lado estava o homem que tinha contraído a dívida pecando e que tinha que lutar contra satanás para livrar-se, mas não podia fazê-lo, sendo a dívida infinita e sendo ele escravo daquele que deveria ter vencido; por outro lado está Deus que podia expiar o pecado e vencer o demônio, mas não deveria fazê-lo, não sendo ele o devedor. Era preciso que se encontrassem unidos na mesma pessoa aquele que devia lutar e aquele que podia vencer, e é aquilo que aconteceu com Jesus, ‘verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa (5)’.


2. Jesus da história e o Cristo do dogma novamente unidos

Estas tranquilas certezas sobre Cristo, nos últimos dois séculos, foram atingidas por um ciclone crítico que tendia a tirar-lhes toda a consistência e a qualificá-las como puras invenções dos teólogos. A partir de Strauss, tornou-se uma espécie de grito de guerra entre os estudiosos do Novo Testamento : libertar a figura de Cristo dos grilhões do dogma, para reencontrar o Jesus histórico, o único real. ‘A ilusão de que Jesus possa ter sido homem no sentido pleno e que como única pessoa seja superior à toda a humanidade é a cadeia que ainda fecha a porta da teologia cristã ao mar aberto da ciência racional (6)’. E eis a conclusão à qual o estudioso chega : ‘A ideia do Cristo do dogma por um lado e o Jesus de Nazaré da história por outro estão separados para sempre’.

Declara-se sem hesitação o pressuposto racionalista desta tese. O Cristo do dogma não satisfaz as exigências da ciência racional. O ataque continuou, com soluções alternativas, quase até os nossos dias. Tornou-se ele mesmo, a seu modo, um dogma : para conhecer o verdadeiro Jesus da história é preciso prescindir da fé nele posterior à Páscoa. Neste clima proliferaram reconstruções fantasiosas da figura de Jesus a benefício do espetáculo, algumas com pretensões de historicidade, mas que na verdade se baseavam em hipóteses de hipóteses, todas respondendo a gostos ou reivindicações do momento.

Mas agora, eu acho, chegamos ao fim da parábola. É hora de tomar nota da mudança que aconteceu neste setor, a fim de sair de uma certa atitude defensiva e de vergonha que tem caracterizado os estudiosos crentes nos últimos anos, e ainda mais para fazer chegar uma mensagem a todos aqueles que nestes anos divulgaram profusamente imagens de Jesus ditadas por aquele anti-dogma. E a mensagem é que não é possível mais escrever na boa-fé ‘Investigações sobre Jesus’ que fingem ser ‘históricas’, mas prescindem, ou melhor, excluem desde o início, a fé nele.

Quem personaliza de modo mais claro a mudança em ato é um dos maiores estudiosos vivos do NT, o inglês James D.G. Dunn. Ele resumiu em um pequeno livro, intitulado ‘Mudar perspectivas sobre Jesus’, os resultados da sua monumental pesquisa sobre as origens do cristianismo (7). O autor pôs a descoberto as raízes dos dois pressupostos em que se baseiam a contraposição entre Jesus histórico e o Cristo da fé : primeiro, que para conhecer o Jesus da história é necessário prescindir da fé pós-pascal; segundo, que para conhecer o que realmente disse e fez o Jesus histórico, é preciso libertar a tradição das camadas e das adições posteriores e voltar para a camada original, ou à primeira ‘redação’, de uma determinada perícope evangélica.

Contra o primeiro pressuposto, Dunn demonstra que a fé começou antes da Páscoa; se alguns o seguiram e se tornaram seus discípulos é porque tinham acreditado nele. Trata-se de uma fé ainda imperfeita, mas de fé. Nesta fé, o evento pascal marcará certamente um salto de qualidade, mas saltos de qualidade, embora menos importantes, já tinham acontecido antes da Páscoa, em momentos particulares, como a transfiguração, certos milagres sensacionais, o diálogo de Cesaréia de Filipe. A Páscoa não é um início absoluto.

Contra o outro assunto, Dunn demonstra como, embora admitindo que as tradições evangélicas circularam por um certo tempo de forma oral, os estudiosos aplicavam sempre a tal tradição o modelo literário, como se faz hoje quando se quer voltar, de edição em edição, ao texto original de uma obra. Se levarmos em conta as leis que regularizam - até no presente, em certas culturas -, a transmissão oral das tradições de uma comunidade, veremos que não há necessidade de enxugar um dito evangélico, em busca de um hipotético núcleo originário, uma operação que abriu as portas a todo tipo de manipulação dos textos evangélicos, acabando por repetir aquilo que acontece quando se descasca uma cebola em busca do seu núcleo sólido que não existe. Algumas destas conclusões são aquelas que os estudiosos católicos desde sempre sustentaram (8), mas Dunn tem o mérito de tê-las defendido com argumentos dificilmente refutáveis a partir da mesma pesquisa histórico-crítica e com as suas próprias armas.

O rabino americano J. Neusner, com o qual Bento XVI estabelece um diálogo em seu primeiro livro sobre Jesus de Nazaré, dá por suposto este resultado. Partindo de um ponto de vista autônomo e por assim dizer neutro, ele faz notar como é vã a tentativa de separar o Jesus histórico do Cristo da fé pós-pascal. O Jesus histórico, o dos Evangelhos, por exemplo do discurso da montanha, é já um Jesus que exige a fé na sua pessoa como alguém que pode corrigir Moisés, que é senhor do sábado, pelo qual também pode-se fazer uma exceção ao quarto mandamento; em suma como alguém que se coloca em pé de igualdade com Deus. É próprio por isso, diz o rabino, que embora fascinado pela figura de Jesus, ele não poderá mais ser um dos seus discípulos.

O estudo sobre o NT termina aqui; chega a provar a continuidade entre o Jesus da história e o Cristo do querigma, não vai mais longe. Resta provar a continuidade entre o Cristo do querigma e o do dogma da Igreja. A fórmula de Leão Magno e de Calcedônia marca um desenvolvimento coerente da fé do Novo Testamento, ou representa, pelo contrário, uma ruptura com relação a ela? Este foi o meu principal interesse nos anos em que eu me ocupava de História das origens do cristianismo e a conclusão a que cheguei não difere daquela do Cardeal Newman, em seu famoso ensaio ‘Sobre o desenvolvimento da doutrina cristã (9)’. Houve certamente a mudança de uma cristologia funcional (o que Cristo ‘faz’) a uma cristologia ontológica (o que Cristo ‘é’), mas não se trata de uma ruptura porque o mesmo processo se dá já no interior do querigma, por exemplo, na passagem da cristologia de Paulo àquela de João, e em Paulo mesmo, na passagem das suas primeiras cartas àquelas da prisão, Filipenses e Colossenses.


3. Além da fórmula

Desta vez o próprio argumento exigia fixar-se um pouco mais na parte doutrinal do tema. A pessoa de Cristo é o fundamento de todo o cristianismo. ‘Se a trombeta emite um som incerto, quem se preparará para a batalha?’, dizia São Paulo (1 Cor 14, 8) : se não tem ideia clara sobre quem é Jesus Cristo, que força terá a nossa evangelização? Nos resta, no entanto, fazer agora uma aplicação prática para a vida pessoal e a fé atual da Igreja, que é o objetivo constante da nossa revisão dos Padres.

Quatro séculos e meio de formidável trabalho teológico deram à Igreja a fórmula : ‘Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem; Jesus Cristo é uma só pessoa’. Mais sinteticamente ainda : ele é ‘uma pessoa em duas naturezas’. A esta fórmula se aplica perfeitamente o dito de Kiekegaard : ‘A terminologia dogmática da Igreja primitiva é como um castelo encantado, onde descansam em um sono profundo os mais graciosos príncipes e princesas. Basta somente acordá-los, para que se coloquem de pé em toda a sua glória (10)’. A nossa tarefa é, portanto, a de despertar e de dar sempre nova vida aos dogmas.

A investigação sobre os Evangelhos – mesmo aquela que lembramos agora de Dunn – nos mostra que a história não nos pode levar ao ‘Jesus em si’, ao Cristo como é na realidade. O que alcançamos nos evangelhos é sempre, em todas as fases, um Jesus ‘lembrado’, mediado pela memória que dele conservaram os discípulos, embora se uma memória crente. É como a ressurreição. ‘Alguns dos nossos - dizem os dois discípulos de Emaús - foram ao túmulo e encontraram as coisas tais como as mulheres haviam dito; mas não o viram’ (Lc 24, 24). A história pode constatar que as coisas, com relação a Jesus de Nazaré, estão como disseram os discípulos nos evangelhos, mas ele não o vê.

O mesmo acontece com o dogma. Ele pode levar-nos a um Jesus ‘definitivo’, ‘formulado’, mas Tomás de Aquino nos ensina que ‘a fé não termina com os enunciados (enuntiabile), mas na realidade (res)’. Entre a fórmula de Calcedônia e o Jesus real existe a mesma diferença que há entre a fórmula química H2O e a água que bebemos ou na qual nadamos. Ninguém pode dizer que a fórmula H2O é inútil ou que não descreve perfeitamente a realidade; somente não é a realidade! Quem nos poderá levar ao Jesus ‘real’ que está além da história e por trás da definição?

E eis que nos deparamos com a grande notícia reconfortante. Existe a possibilidade de um conhecimento ‘imediato’ de Cristo : é aquele que nos dá o Espírito Santo enviado por ele mesmo. Ele é a única ‘mediação não-mediata’ entre nós e Jesus, no sentido que não age como um véu, não constitui um diafragma ou um trâmite, sendo ele o Espírito de Jesus, o seu ‘alter ego’, da sua mesma natureza. Santo Irineu chega a dizer que ‘o Espírito Santo é a nossa mesma comunhão com Cristo (11)’. E nisso, aquela do Espírito é diferente de qualquer outra mediação entre nós e o Ressuscitado, seja eclesial que sacramental.

Mas é a Escritura mesma que nos fala deste papel do Espírito Santo com o propósito do conhecimento do verdadeiro Jesus. A vinda do Espírito Santo em Pentecostes se traduz em uma repentina iluminação de todo o trabalho e a pessoa de Cristo. Pedro conclui o seu discurso com aquela espécie de definição ‘urbi et orbi’ do senhorio de Cristo : ‘Saiba, portanto, com certeza toda a casa de Israel que Deus constituiu Senhor e Cristo aquele Jesus que vós crucificastes’ (At 2, 36).

São Paulo afirma que Jesus Cristo é revelado ‘Filho de Deus com poder pelo Espírito de santidade’ (Rm 1, 4), isto é, por obra do Espírito Santo. Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser por uma iluminação interior do Espírito Santo (cf. 1 Cor 12, 3). O Apóstolo atribui ao Espírito Santo ‘a compreensão do mistério de Cristo’, que foi dada a ele, como a todos os santos apóstolos e profetas (cf. Ef 3, 4-5). Só se forem ‘fortalecidos pelo Espírito’, - continua o Apóstolo – os crentes poderão ‘compreender a largura e o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento’ (Ef 3, 16-19).

No Evangelho de João, o próprio Jesus anuncia esta obra do Paráclito com relação a ele. Ele tomará do que é seu e o anunciará aos discípulos; recordar-lhes-á tudo o que ele disse; os conduzirá à toda verdade sobre a sua relação com o Pai; lhes dará testemunho. Exatamente isso será, de agora em diante, o critério para reconhecer se se trata do verdadeiro Espírito de Deus e não de um outro espírito : se leva a reconhecer Jesus vindo na carne (cf. 1 Jo 4, 2-3).


4. Jesus de Nazaré, uma ‘pessoa

Com a ajuda do Espírito Santo, façamos então uma pequena tentativa de ‘acordar’ o dogma. Do triângulo dogmático de Leão Magno e de Calcedônia – ‘verdadeiro Deus’, ‘verdadeiro homem’, ‘uma pessoa’ – nos limitamos a tomar em consideração somente o último elemento : Cristo ‘uma pessoa’. As definições dogmáticas são ‘estruturas abertas’, capazes de acomodar novos significados, o que é possível graças ao progresso do pensamento humano. Na sua etapa mais antiga, pessoa (do latim personare, ressoar) indicava a máscara que o ator precisava para fazer ressoar a sua voz no teatro; disso passou a indicar rosto, portanto, indivíduo, até chegar ao seu significado mais elevado de ‘ser individual de natureza racional’ (Boécio).

No uso moderno, o conceito se enriqueceu de um significado mais subjetivo e relacional, favorecido sem dúvida pelo uso trinitário de pessoa como ‘relação subsistente’. Indica, portanto, o ser humano em quanto capaz de relação, de estar como um eu diante de um tu. Nisso a fórmula latina ‘uma pessoa’ revelou-se mais fecunda do que aquela respectiva grega de ‘uma hispóstase’. Hipóstase se pode dizer de cada objeto particular existente; pessoa, somente do ser humano e, por analogia, do ser divino. Nós falamos hoje (e também os gregos falam) de ‘dignidade da pessoa’, não de dignidade da hipóstase.

Aplicamos tudo isso ao nosso relacionamento com Cristo. Dizer que Jesus é ‘uma pessoa’ significa também dizer que ressuscitou, que vive, que está diante de mim, que posso tratar-lhe por tu como ele me trata por tu. É necessário passar constantemente, no nosso coração e na nossa mente, do Jesus personagem ao Jesus pessoa. A personagem é alguém de quem se pode falar e escrever o que quiser, mas a quem e com quem, no geral, não se pode falar. Jesus, infelizmente, para a maioria dos crentes é ainda um personagem, alguém de quem se discute, se escreve muito, uma memória do passado, um conjunto de doutrinas, de dogmas ou de heresias. É um ente, mais do que um existente.

O filósofo Sartre, em uma página famosa, descreveu a emoção metafísica que produz a súbita descoberta da existência das coisas e pelo menos nisto podemos dar-lhe crédito :

Eu estava no Jardim Público. A raiz da castanheira entrava na terra, exatamente sob o meu banco. Eu não me lembrava que era uma raiz. As palavras se desvaneceram e, com elas, a significação das coisas, a maneira de empregá-las, as frágeis referências que os homens tinham traçado na sua superfície. ( ...)E depois tive aquela iluminação. Fiquei sem respiração. (...)geralmente a existência esconde-se. Está presente à nossa volta; não se podem dizer duas palavras sem falar dela, e afinal não lhe tocamos (...)E depois sucedeu aquilo : de repente, ali estava, ali estava, era claro como a água : a existência dera-se subitamente a conhecer ( 12)’.

Para ir além das ideias e palavras de Jesus e entrar em contato com ele, pessoa que vive, é necessário passar por uma experiência desse tipo. Alguns exegetas interpretam o nome divino ‘Aquele que é’, no sentido de ‘aquele que está’, que é presente, disponível, agora, aqui (13). Esta definição aplica-se perfeitamente também ao Jesus ressuscitado.

É possível ter Jesus como amigo, porque, depois de ter ressuscitado, ele está vivo, está ao meu lado, posso tratá-lo como um ser vivo a um ser vivo, um presente a um presente. Não com o corpo e nem sequer somente com a fantasia, mas ‘no Espírito’ que é infinitamente mais íntimo e real de ambos. São Paulo nos assegura que é possível fazer tudo ‘com Jesus’ : quer comamos, quer bebamos, quer façamos qualquer outra coisa (cf. 1 Cor 10, 31; Col 3,17).

Infelizmente, raramente pensamos em Jesus como um amigo e um confidente. No subconsciente domina a imagem dele ressuscitado, ascendido ao céu, distante em sua transcendência divina, que retornará um dia, no fim dos tempos. Esquecemos que sendo, como diz o dogma, ‘verdadeiro homem’, melhor, a mesma perfeição humana, ele possui no mais alto grau o sentimento da amizade que é uma das qualidades mais nobres do ser humano. É Jesus que deseja um tal relacionamento conosco. No seu discurso de despedida, dando plena vazão a seus sentimentos , ele diz : ‘Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz; mas vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer todas as coisas que ouvi do meu Pai’ (Jo 15 ,15).

Já vi esse tipo de relacionamento com Jesus, não tanto nos santos, onde prevalece o relacionamento com o Mestre, com o Pastor, com o Salvador, o Esposo..., mas com os hebreus que, de modo semelhante a Saulo, chegam hoje a aceitar o Messias. O nome de Jesus, de repente, muda de uma obscura ameaça, ao mais doce e amado dos nomes. Um amigo. É como se a ausência de dois mil anos de discussões sobre Cristo jogasse a favor deles. O deles não é nunca um Jesus ‘ideológico’, mas uma pessoa de carne e sangue. Do sangue deles! Emociona ler os testemunhos de alguns deles. Todas as contradições se resolvem em um instante, todas as escuridões se iluminam. É como ver a leitura espiritual do Antigo Testamento se realizar totalmente e rapidamente sob os próprios olhos. São Paulo o compara à queda de um véu dos olhos (cf. 2 Cor 3,16).

Durante sua vida terrena, embora amando a todos sem distinção, somente com alguns – com Lázaro e as irmãs e mais ainda com João, o ‘discípulo que ele amava’ – Jesus tem um relacionamento de verdadeira amizade. Agora, porém, que ressuscitou e não está mais sujeito aos limites da carne, ele oferece a todo homem e a toda mulher a possibilidade de tê-lo como amigo, no sentido mais pleno da palavra. Que o Espírito Santo, o amigo do esposo, nos ajude a aceitar com alegria e maravilha esta possibilidade que preenche a vida.’


Fonte   :

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(1) Tertuliano, Adversus Praxean, 27, 11 (CC 2, p.1199)

(2) Leão Magno, Carta 28 (PL 54, 755 s.).

(3) Leão Magno, Sermo 27 (26),1 (PL 54, 749).

(4) Denzinger, Enchiridion Symbolorum, 301-302.

(5) N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 5 (PG 150, 313); Cf Anselmo, Cur Deus homo?, II, 18.20; Tomas de Aquino, Summa theologiae, III, q. 46, art. 1, ad 3.

(6) D.F. Strauss, Der Christus des Glaubens und der Jesus der Geschichte, 1865.

(7) J.D.G. Dunn,  A New Perspective on Jesus. What the Quest for the Historical Jesus Missed, Grands Rapids, Michigan 2005 (Trad. ital. Cambiare prospettiva su Gesù, Paideia, Brescia  2011).

(8) Dunn considera muito o estudo do exegeta católico alemão H. Schürmann sobre a origem pré-pascal de certos ditos de Jesus. ob.cit. p.28

(9) Cf.  o meu estudo, Dal kerygma al dogma. Studi sulla cristologia dei Padri, Vita e Pensiero, Milano 2006, pp. 11-51.

(10) S. Kierkegaard, Diario, II,A 110 (ed. a cura di C. Fabro, Brescia 1962, nr. 196).

(11) S. Ireneo, Contra as heresias, III, 24, 1

(12) J.-P. Sartre, La Nausea, Milano 1984, p. 193 s.

(13) Cf.  G. Von Rad, Teologia dell’Antico Testamento, I, Paideia, Brescia 1972, p. 212.