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quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Deus tem um nome e este é sagrado

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Luiz Antônio de Araújo Guimarães 

 

‘Na sequência dos mandamentos da lei de Deus, contempla-se o : ‘Não tomar o seu santo nome em vão’. Quando lê essa mensagem, o jovem pensa logo : ‘Deus tem um nome?’. 

Veja bem : o nome é o que há de mais sagrado em alguém, imprime uma identidade e diferencia esse ser humano dos demais. Por exemplo : o José é diferente do Antônio, que consequente é diferente do Cícero e assim por diante. O nome traz consigo um caráter indelével, desde o dia em que aquela pessoa foi batizada. É pelo nome que a pessoa é identificada; também por meio dele a pessoa se apresenta; de igual modo é reconhecida por tal apresentação; a pessoa zela por seu nome, preservando sua identidade em aspecto sociomoral; enfim, o nome está concomitantemente intrínseco a cada pessoa e nem a morte pode apagá-lo. O nome se perpetua na história.

Se cada ser humano tem um nome, aquele que os criou também não o teria? Claro que sim! Diz o Catecismo da Igreja Católica no parágrafo 2143 : ‘Entre todas as palavras da revelação, há uma, singular, que é a revelação do nome de Deus. Deus confia o seu nome aos que creem nele; revela-se-lhes no seu mistério pessoal. O dom do nome é da ordem da confidência e da intimidade’. Nesse sentido, Deus, por ver em Moisés um crente, isto é, um homem que crê verdadeiramente, revela-lhe seu nome : ‘Eu sou aquele que sou!’ (Ex 3,14). Ou seja, Ele é aquele que é, que sempre existiu; não tem início e nem fim. Pelo contrário, tudo tem início e fim no nome dele. Por sua vez, mais tarde, na história da salvação, já no Novo Testamento, Ele se revela em Jesus como sendo o Emanuel, Deus conosco, a saber, conforme a profecia : ‘Eis que a virgem ficará grávida e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa ‘Deus conosco’’ (Mt 1,23). É como se dissesse ‘O ‘Eu sou’ caminha todos os dias com tudo o que existe e que existirá e além do mais conhece a cada um por seu próprio nome ao dizer ‘Não tenhas medo, pois eu te resgatei, chamei-te pelo teu nome, tu és meu!’ (Is 43,1)’. 

Deus, ao se revelar pelo nome, faz isso para aproximar-se do ser humano a fim de fazer com que este o conheça, ame e siga. É uma revelação de amor para com aqueles que foram criados à sua imagem e semelhança. É bem verdade que ao revelar seu nome, que é santíssimo, quer dizer, o maximamente sagrado, o homem não pode dizer o nome dele em vão. Daí que o Catecismo da Igreja Católica, ainda no parágrafo 2143, orienta : ‘O nome do Senhor é santo; por isso, o homem não pode abusar dele. Deve guardá-lo na memória, num silêncio de adoração amorosa. E não o empregará nas suas próprias palavras senão para o bendizer, louvar e glorificar’. É fazer como pede a Sagrada Escritura : ‘Para que, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua confesse ‘Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai’ (Fl 2,10-11).

É bom salientar que, ao dar-se a conhecer e tornar-se próximo, Ele não perde a condição divina. O próprio nome já assegura, é uma revelação, sendo do Céu para a Terra e não da Terra para o Céu; é nome divino, altíssimo. Sagrado, santíssimo, que toca esta pobre humanidade, assumindo a natureza humana em Jesus, o Emanuel, sem perder a sua natureza divina. 

Outra coisa não faça cada ser humano que tem um nome e que quer que este seja preservado, que reconheça o nome de Deus e lhe dê toda honra, glória e poder, pois é o ‘Nome que está acima de todo nome’ (Fl 2,9).’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/deus-tem-um-nome-e-este-e-sagrado.html


segunda-feira, 11 de novembro de 2019

O que é a espiritualidade


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor


‘Há pouco tempo escrevi um artigo sobre a importância da espiritualidade na prática médica. Tanto no surgimento, como na cura das enfermidades. Contudo, muitas pessoas não distinguem a espiritualidade, de uma filiação religiosa, acreditando serem a mesma coisa. Por isso, creio que devo explicar, ainda que resumidamente, qual o significado de cada uma. Elas são coisas distintas, apesar de estarem estreitamente relacionadas, pois a religiosidade é um dos aspectos significativos e, de certa forma, uma consequência daquela.

Espiritualidade é um termo surgido na Renascença, no século XV, tendo como um dos seus fundamentos, algumas ideias de Platão, filósofo do século IV a.C. Falando sobre o dualismo corpo-alma do humano, ele afirmava haver uma prevalência da alma sobre o corpo, que seria como uma prisão para aquela. Esse pensamento teve forte influência na humanidade, evoluindo no cristianismo primitivo para a ideia do humano trinitário, formado à imagem e semelhança da Trindade Divina. 

O conceito de divindade trinitária é encontrado em diversas correntes religiosas, mostrando-se um mistério muito além da nossa capacidade racional para compreendê-lo. Conta-se que Santo Agostinho, caminhando numa praia deserta, viu uma criança com uma pequena concha, buscando água no mar, e despejando-a num pequeno buraco na areia. Questionada por Agostinho sobre o que fazia, a criança respondeu que queria colocar toda a água do mar naquele buraco. O santo deu uma gargalhada e lhe disse : ‘Você acha mesmo, que toda a água do mar cabe nesse buraco?’ A criança olhou bem para ele e disse : ‘Da mesma forma como o mistério da Santíssima Trindade, que você questiona tanto, não cabe em sua cabeça’. E desapareceu.

Nós somos uma imagem da Santíssima Trindade. Temos três partes distintas, numa só unidade : corpo, mente e espírito, inseparáveis. Quando morremos, quem morre é o nosso corpo físico, e não a nossa individualidade. Adultos, já não temos o corpo que tínhamos quando criança. Suas células foram morrendo e sendo substituídas por outras, contudo nossa essência permanece a mesma, num contínuo amadurecimento. Quando nossas células perdem a capacidade dessa substituição, diz-se que morremos. Mas, na verdade, o que ocorre é a transformação do nosso corpo, mente e espírito, em um ser puramente espiritual, o qual conserva toda a nossa individualidade. E espirituais, já não teremos nenhum contato com a vida física como a conhecemos, toda ela estruturada para o espaço tempo. Passaremos para outra realidade, a que chamamos de eternidade, totalmente inalcançável pelo nosso intelecto.   

São Tomás de Aquino (1225-1274) ensinava : ‘Não existe corpo sem espírito, nem espírito sem corpo’. Nessa vida, temos um espírito ‘corporificado’. Ao morrermos, passaremos a ter um corpo ‘espiritualizado’. E todas as moléculas que compõem o nosso corpo material, permanecerão nessa realidade tempo-espacial, pois a ela, e somente a ela, pertencem.

Podemos então dizer que a espiritualidade é a necessidade intrínseca que temos de continuarmos ligados ao plano divino.  Nossa dimensão espiritual anseia por essa ligação, pois para ela foi criada. Mesmo as pessoas que não creem nisso, ainda assim têm uma espécie de vida espiritual que motiva seus pensamentos e ações. Renegando-a, ela se fecha ao crescimento interior, que é muito maior do que aquele proporcionado somente pela inteligência lógica. Segue então a sua vida como caminhante em terra árida, onde sua sede interior nunca é saciada.

Quem se abre à espiritualidade intrínseca, liberta-se da desesperança, que é um dos maiores males da humanidade. A desesperança nos adoece fisicamente, bloqueando os sistemas de defesa que temos em nosso organismo. Quando se abre à espiritualidade intrínseca, encontra-se um Deus que acolhe, que consola, mas que também exige humildade, coragem e decisão para ser assumido. Que exige constante aprofundamento, pois é semelhante ao gostar de música. Apreciá-la, não é o mesmo que a conhecer. Quem conhece, usufrui muito mais do que quem dela apenas gosta. E como consequência dessa espiritualidade, vem a necessidade da pertença a uma religião onde se possa desenvolver, e melhor expressar a sua espiritualidade.

Onde se possa encontrar outras pessoas semelhantes para compartilhar vivências, e ao mesmo tempo reforçar a mais pura expressão de espiritualidade. Mas há que ter muito cuidado, pois quando se cai numa falsa religiosidade, sem espiritualidade genuína, costuma-se criar um Deus ‘quebra-galhos’, um Deus terrível, policialesco, castigador, único responsável por tudo o que acontece. Situação bem confortável, pois passa-se a exigir tudo dele, atribuindo sempre e somente a ele, a razão de todos os problemas; dos que acontecem a si próprio, em redor de si, tanto como aos amigos e familiares. Eximindo-nos de nossas responsabilidades, renegamos o nosso livre arbítrio, deixando tudo para que Deus resolva e faça em nosso lugar. E nos zangamos se não o fizer.

Bem diferente da espiritualidade intrínseca, onde se mergulha no infinito transcendental, tomando-se total consciência de que existe um Ser superior que criou e cuida de todo o Universo, sem que Ele seja propriedade exclusiva de alguém. Descobrimos o único e verdadeiro Deus, que todas as religiões, em todos os tempos e lugares descobriram, dando-Lhe os nomes mais diversos. Mas sempre buscando religar (religião) o humano com o mesmo Deus, único e eterno.

A espiritualidade intrínseca é libertadora. Ela nos afasta da desesperança, enquanto a religiosidade sem espiritualidade só causa sofrimento, medo, terror, gerando mais desesperança.’


Fonte :

sexta-feira, 4 de maio de 2018

A Igreja é divina e humana

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 RODZAJE MODLITWY
*Artigo de Vanderlei de Lima, 
eremita na Diocese de Amparo


‘Há homens e mulheres, irmãos na fé católica, que ficam perplexos quando um (a) filho(a) da Igreja (leigo(a), religioso(a), sacerdote ou bispo) comete algum erro.

É, pois, a esses cristãos atônitos que dedicamos, com apreço, o presente artigo a fim de deixar claro o seguinte : a Igreja, como Corpo místico de Cristo prolongado na história (cf. Cl 1,24; 1Cor 12,12-21), é divina, mas formada por filhos pecadores é também humana, segundo a parábola do joio e do trigo (cf. Mt 13,24-30) ao relatar que no campo do Senhor, junto ao trigo (os bons) cresce o joio (os maus).

Aqui já se coloca um impasse : por que Deus permite que os pecadores permaneçam na sua Igreja? – Responde São Tomás de Aquino († 1274) que é pelas seguintes razões : a) o pecado de uns, longe de desanimar, deve incentivar os fiéis a serem mais santos em resposta supridora ao pecado; b) o Senhor quer dar a cada um desses pecadores a oportunidade de se converterem, especialmente por meio do Sacramento da Confissão; c) mesmo com o mau exemplo dos errantes, a Igreja não deixa de exercer a missão que Nosso Senhor lhe confiou : o ouro da graça divina pode passar por mão sujas, mas não perde o seu pleno valor.

Sim, desde o início do Cristianismo, de um modo particular a partir de Santo Agostinho († 430), a Igreja, lembrando as parábolas do joio e do trigo, já citada, e da rede que recolhe bons e maus peixes (cf. Mt 13,47-50), demonstra que sempre houve problemas nas comunidades : incesto (cf. 1Cor 5,1); injúrias ao apóstolo Paulo (cf. 2Cor 2,5-11), renegação da doutrina (cf. Hb 6,4-8; 10,26-31), falhas morais diversas (cf. Gl 1,6; 3,1;5,4), esfriamento da fé (cf. Ap 2-3) etc.

Todavia, não obstante às falhas de seus filhos, em Mt 28,20, o Senhor Jesus promete estar com a Igreja até o fim dos tempos. Daí comentar Dom Estêvão Bettencourt, OSB, o seguinte : ‘Jesus promete à sua Igreja uma assistência vigilante… Igreja caracterizada pela sucessão apostólica; Jesus não promete estar com os mais santos ou os mais cultos, mas, sim, com os Apóstolos e seus legítimos sucessores [os Bispos] até o fim dos tempos. Muitas pessoas procuram o Cristo na comunidade mais simpática ou mais emocionante (critérios subjetivos). O que importa é não perder a comunhão com essa linhagem [dos Apóstolos em seus sucessores], mesmo que nela se encontre figuras humanas pouco dignas (o joio não impede o trigo de frutificar)’ (A Igreja divina e humana. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2004, p. 6 – base deste artigo).

Isso posto, vê-se que só se afasta do colo da Mãe Igreja aquele(a) que desconhece em profundidade a fé que diz professar ou que se deixa levar por sentimentalismos capazes de colocar o bispo X ou o padre Y no lugar de Deus. Algo que, se feito conscientemente, é pecado. E pecado grave.

Em sentido contrário, quem entende que a Igreja é divina e humana concorda, neste ponto, com o filósofo Jacques Maritain ao escrever que ‘Os católicos não são o Catolicismo. As faltas, as lerdezas, as carências e as sonolências do católico não comprometem o Catolicismo… A melhor apologética [defesa] não consiste em justificar os católicos quando erram, mas, ao contrário, em assinalar esses erros e dizer que não afetam a substância do Catolicismo e só contribuem para melhor trazer à tona a força de uma religião sempre viva apesar deles… Não nos considereis a nós pecadores. Vede, antes, como a Igreja sana as nossas chagas e nos leva trôpegos para a vida eterna… A grande glória da Igreja é ser santa com membros pecadores’ (Religion et culture. Paris, 1930, p. 60).

Possam essas reflexões levar-nos a confiar na mensagem transmitida pela Mãe Igreja por meio de seus ministros (às vezes pouco dignos) e rezar sempre pela nossa conversão e pela dos nossos irmãos. Afinal, somos chamados a ser santos como o Pai celeste é santo (cf. Lv 17,1; Mt 5,48; 1Pd 1,5-6).’


Fonte :

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

No princípio não era assim : Introdução à Teologia do Corpo – Parte 2

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Rômulo Cyríaco 


A criação do homem

No Evangelho de São Mateus, lemos que, nos confins da Judeia, para além do Jordão, alguns fariseus se aproximaram de Jesus com o intuito de o testarem no conhecimento da lei, perguntando a Ele se era permitido a um homem repudiar a sua mulher, por qualquer motivo. Assim Jesus respondeu : ‘Não lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher, e disse : ‘Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne’? Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Pois bem, o que Deus uniu, não o separe o homem’. Os fariseus, em seguida, questionaram Jesus : ‘Por que foi então, perguntarem eles, que Moisés preceituou dar-lhe carta de divórcio ao repudiá-la?’. Ao que Jesus replica, concluindo : ‘Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas no princípio não foi assim’ (Mt 19,4).

Trata-se, esta, de uma passagem evangélica que permeia quase a integridade do projeto teológico de São João Paulo II, na Teologia do Corpo. Cristo, quando remete seus interlocutores ao princípio, refere-se à indissolubilidade do matrimônio como fundamentada por Deus Criador no ato mesmo da criação. Pode ser que, numa determinada cultura, o matrimônio seja dissolvido, na prática, mas no princípio não era assim, afirmação esta que tem dois sentidos imediatos : não era assim no princípio da vida, logo após a criação e antes do pecado original; e não é assim, ainda e sempre, na alma do ser humano, que traz sempre consigo o princípio, e suas finalidades. Tudo o que Deus estabeleceu para nós no princípio, a alma humana sente em si mesma não apenas como profunda necessidade, mas como realidade inalterável, ainda que – por causa do pecado original – possa tornar-se cega e surda para os chamados interiores, que, de uma maneira ou de outra, repercutem na consciência, por exemplo : 1) toda alma humana sabe e sente que está se tornando ‘uma só carne’ com outra, mesmo numa relação sexual extraconjugal casual, e todas as sensações estranhas, psíquicas e emocionais, que possam advir depois da mesma – como a culpa e a repulsa – vêm daí, da percepção profunda de uma fratura entre a alma e o corpo; muitas psicanálises e terapias, por exemplo, tentarão extirpar essas sensações da pessoa como sendo efeitos estranhos e ‘neuróticos’, adquiridos de um suposto ‘moralismo’ da cultura, não percebendo que é a verdade se manifestando ou reclamando; e, assim, colabora-se com a mentira; 2) toda alma humana sente que seu matrimônio é indissolúvel, ainda que faça esforço para se adaptar (até discursivamente) a uma cultura em que a fragmentação das famílias se tornou praticamente a regra, e nisso se pode incluir não apenas homens e mulheres que são cônjuges, mas também os filhos por esses gerados, que necessariamente sofrem com o divórcio, pois o que parece uma ‘simples’ separação externa, é a grave separação interior de uma unidade que, na alma, no princípio, é indissolúvel e permanecerá sendo, ainda que a aparente ‘dissolubilidade’ de tal vínculo no plano visível da cultura se torne mais e mais popular. A dessincronização entre a cultura e as necessidades da alma é uma das tragédias humanas que parecem acentuar-se ao nível do paroxismo conforme nos aproximamos do fim dos tempos.

Há quase dois mil anos, naquele diálogo, tratando-se de um grupo de fariseus, Jesus sabia que estava falando com pessoas que conheciam muito bem o texto das Escrituras. Refere-se, especificamente, ao Livro do Gênesis, e ao relato da criação do homem e da mulher, no primeiro e segundo capítulos do mesmo. De forma complementar, também esses são textos que devemos ter sempre em mente para que compreendamos com precisão as conclusões do Santo Padre. O Gênesis nos revela que ‘O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo. Deu-lhe este preceito : ‘Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente'. E continua :

O Senhor Deus disse : ‘Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada.’ Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais dos campos, e todas as aves dos céus, levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar; e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome. O homem pôs nomes a todos os animais, a todas as aves dos céus e a todos os animais dos campos; mas não se achava para ele uma ajuda que lhe fosse adequada. Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem. ‘Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem.’ Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só carne. O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam (Gn 2,15-25).

Quando as Escrituras inspiradas revelam que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, conforme nos aponta São João Paulo II, é evidenciada a ‘impossibilidade absoluta de reduzir o homem ao ‘mundo’, isto é : o homem não pode e nem deve ser compreendido, nem explicado, com as categorias deduzidas do mundo, isto é, do ‘conjunto visível dos corpos’ (Teologia do Corpo, 2). Esta conclusão é grandiosa, pois trata-se mesmo de um elemento que aparece, de formas contrárias, nas escolas de pensamento que conflituam no mundo moderno : a maioria delas, de um lado, parece querer reduzir o homem ao mundo, repudiando qualquer explicação da vida humana que recorra a um plano transcendente – assim mundanizando-nos, animalizando-nos; outras, enraizadas em tradições antigas como o cristianismo ou a filosofia grega aristotélica, reafirmam e defendem que é precisamente isto que caracteriza o ser humano em sua especificidade, a saber, que o mesmo possui semelhanças físicas ou biológicas com os outros animais, mas possui uma alma racional que, como diz Aristóteles, eleva-o acima das outras espécies, que só possuem alma vegetativa e alma sensitiva. A parte racional da alma humana, para o Estagirita, estava claramente enraizada no eterno, num plano transcendente, isto é, no divino, ainda que nosso corpo visível esteja presente na natureza, juntamente dos outros seres e coisas. A perfeição da revelação bíblica, no entanto, explica-nos também o por quê do surgimento de tantas escolas de pensamento que tentam negar a transcendência, e desumanizar o homem, no período moderno, e também por que essa negação se faz presente na prática de tantos seres humanos : trata-se de uma consequência do pecado original; Adão, com medo, esconde-se de Deus nos arbustos do jardim. A isto veremos melhor em outro artigo; por ora sigamos com os fatos do princípio.

As narrativas do Gênesis supracitadas descrevem o estado do ser humano logo após a criação, em comunhão com seu Criador : a felicidade dos primeiros homens, e sua inocência original, antes da primeira queda. O ser humano foi criado como sujeito de uma aliança, constituído como pessoa – superior aos animais, os quais, na verdade, nomeia – e à altura de ‘companheiro do Absoluto’ (Teologia do Corpo, 6). Dotado de alma – onde está impressa a imagem e a semelhança de Deus, seu Criador – e de liberdade, é dado ao homem ‘discernir e escolher conscientemente entre o bem e o mal’, quando Deus estabelece o limite que o ser humano deveria respeitar para permanecer em plena aliança. Tratava-se de uma escolha entre a vida e a morte : comer da árvore da ciência do bem e do mal, barraria-lhe o acesso à árvore da vida. É da vontade de Deus que o homem viva plenamente, e esteja absorvido inteiramente pela aliança – mas a permanência na relação com Deus deve ser uma escolha livre do ser humano. Como Adão sentiu-se sozinho, desejando uma semelhante que pudesse estar com ele em relação, Deus é pleno e não precisa de nada além de Si mesmo, mas quis, por amor, criar-nos livres, para viver uma relação pessoal com cada alma por Ele criada. Não há verdadeira relação quando uma das partes é privada de liberdade, e mesmo os vínculos humanos mais definitivos, como o casamento, expressam isso : nesses, não há perda de liberdade, mas o ganho de uma realidade relacional rica, com o livre consentimento da pessoa. Como a pessoa permanece livre para rejeitar a aliança, é preciso que a sua afirmação seja livremente mantida e reafirmada, diariamente, e ao longo do tempo. E como a intimidade mútua de um casal aumenta e se enriquece com o tempo e a convivência, também assim acontece entre a alma de uma pessoa e Jesus Cristo.

Os animais, por sua vez, não são livres, pois, não tendo alma racional, apenas obedecem a seus instintos; nós, humanos, temos instintos – alma vegetativa, alma sensitiva – mas também respondemos a Deus, com nossa alma propriamente humana. Nisso tudo encontra-se a irracionalidade da concepção pós-moderna de ‘liberdade’, que seria algo como não estar limitado por nenhuma restrição (seja interna, ou externa) e, logo, não precisar responder por nada. Enquanto isso, a realidade de nossa verdadeira e inescapável liberdade – enraizada em nossa alma, e em sua semelhança, e relação, com o Criador – apenas estabelece que somos livres para escolher o mal, mas jamais isentos das consequências dessa escolha; e, portanto, a escolha do bem também deve necessariamente ser livre, intencional, consciente e proposital. Todos os esforços políticos de escolas modernas como o socialismo marxista, entre outras utopias, nada mais é do que a imaginação de um estado de coisas em que a vida humana seria essencialmente boa, e socialmente perfeita, sem que fosse necessário um esforço consciente para o bem : o último esforço seria o da implementação de tal sistema de poder que tornará a vida ‘perfeita’ e sem tensões, dificuldades ou desigualdades, e para isso também basta permitir que os seus representantes tomem o domínio de tudo. Trata-se, precisamente, do falso paraíso na terra, o verdadeiro ópio do povo, que na prática só resulta no seu contrário, e a tantos infernos concretiza em nossa realidade. Para não cair nestas perigosas iscas, deve-se reconhecer duas coisas sobre a alma humana : ela traz em si a semelhança com Deus, e a relação com Ele, a memória e o desejo do paraíso; mas também, intrinsecamente, traz as más inclinações, inextirpáveis nesta vida, herdadas do pecado original. Portanto, qualquer regulação legítima da vida humana, individual e social, deve partir dessa percepção, e da necessidade de uma educação para a liberdade, para a responsabilidade, e para o amor.

Mas, como vimos, o homem é também corpo, e o corpo do homem – muito diferentemente do que queriam os heréticos gnósticos – é realidade do vínculo do homem com o seu Criador, em vez de ser algo de que o homem devesse se desvencilhar, para restar somente a alma, esta sim boa e divina. O corpo do homem possui uma dimensão de sacramento, isto é, de realidade e sinal visível daquilo que ocorre em sua alma – pense, especialmente, no rosto humano, e suas finas expressões emocionais, assim como seus sorrisos, reveladores, na dimensão visível, de algo que somente o ser humano vive na dimensão invisível. Com o ser humano, no princípio – e, em especial, antes do pecado original – entrou a santidade no mundo visível, que, por sua vez, foi criado por Deus para o homem. Aí também se expressa o amor especial que Deus tem para conosco, diante de toda a criação. ‘Na criação, antes do pecado original, o homem se constitui como que um primordial sacramento, entendido como sinal que transmite eficazmente ao mundo visível o mistério invisível, oculto em Deus desde a eternidade. (…) O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível : o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim d’Ele ser sinal’ (Teologia do Corpo, 19). A inocência original do ser humano no princípio, ligada à experiência do significado esponsal do corpo – isto é, feito para desposado, para ser doado, do homem para a mulher, da mulher para o homem, em sua complementaridade biológica e subjetiva – ‘é a santidade que permite ao homem exprimir-se de modo profundo com o próprio corpo, e isso precisamente mediante o ‘dom sincero de si mesmo’. O corpo humano é lugar de santidade, lugar onde Deus se torna visível à totalidade da criação. ‘A consciência do dom [de si mesmo, corpo e alma] condiciona, nesse caso, ‘o sacramento do corpo’ : o ser humano se sente, no seu corpo de varão e de mulher, sujeito de santidade’ (Teologia do Corpo, 19).

O valor inestimável da Teologia do Corpo, de São João Paulo II, no momento histórico preciso em que a realizou, oferecendo ao homem do Século XX, através das palavras de Jesus Cristo (que é, Ele mesmo, a Palavra de Deus viva e encarnada) a rememoração do que nós somos, como humanos, em princípio, deve-se ao fato de que ‘a situação interior e, ao mesmo tempo, cultural do homem de hoje parece afastar-se daquele ‘princípio’ e assumir formas e dimensões que divergem da imagem bíblica do ‘princípio’ em pontos evidentemente cada vez mais distantes’ (Teologia do Corpo, 23).

No meio da rebelião social e sexual da sociedade moderna e contemporânea, a teologia católica do corpo e da sexualidade, e sua aplicação direta na vida humana como um firme critério educacional (para nós mesmos e nossos filhos) no sentido do reencontro da plenitude e da verdadeira realização, é, de fato, ‘uma ilha de valor em uma mar de preços’ – uma possível recuperação de dimensões humanas cada vez mais negligenciadas e repudiadas pelo homo economicus, e pelo exército multiculturalista e politicamente correto do poder global, que visa ao controle massivo das respostas humanas. Serve também como fonte de conhecimento da reta doutrina cristã para todos aqueles que vivem nesta civilização em crise e ignoram a realidade de seus antigos fundamentos, conhecendo-a somente através dos estereótipos equivocados do senso comum anti-cristão e, mais especificamente, anti-católico. A religião católica é comumente referida pelo homem moderno tomado pelo ethos da rebelião como sendo uma instituição ‘repressora da sexualidade’, ou que considera tudo o que é ‘sexual’ como ‘pecado’, e nada está mais distante da verdade do que essa visão. Como veremos, através da obra de São João Paulo II, e em seguida através de outros documentos da Igreja, o que Jesus Cristo realmente nos trouxe, na Nova Aliança, é a possibilidade de recuperarmos o verdadeiro valor do corpo e da sexualidade, um altíssimo, sagrado valor – e da vida humana em si mesma.

Aqui vale também, ainda que rapidamente, um aceno à tendência da ‘nova era’ de afirmar uma espiritualidade desinstitucionalizada, destacada da religião : em primeiro lugar porque, do ponto de vista cristão, é bíblica e fundamental a indissociabilidade entre Cristo e a Sua Igreja, que é sacramento de Sua presença viva na terra; em segundo lugar, porque aquela, da nova era, é uma espiritualidade rebelde, e a rebeldia é o oposto da frutificação virtuosa do espírito, que só pode reencontrar a árvore da vida na obediência ao Criador autorrevelado. Deus quer fazer uma aliança com as almas; enquanto isso, o demônio quer, de um lado torná-las materialistas, de outro apenas ‘espiritualiza-las’, sustentando um discurso anti-religioso que deve seriamente nos preocupar, já que, assim, tantas almas ficam em terreno turvo e vulnerável, presas nas ilusões do Satanás que se transfigura em anjo de luz. ‘Eu, ser batizado por um homem pecador? Eu, me confessar para um homem, pecador? Deus se manifesta em todas as religiões, ou basta que eu converse com Deus, diretamente’. Essa é a mentalidade moderna e pós-moderna, para a qual se tornou inaceitável a verdade de um Deus que, intencionalmente, fundou uma instituição, que instituiu, Ele mesmo, uma economia sacramental, ministrada por homens, a qual devemos humildemente recorrer. Afinal, o próprio testemunho de Cristo, não apenas em palavras mas em ações, é aquele da humildade inigualável do Deus que se fez Homem e que antes disso se fez Menino, em tudo dependente de uma Mãe – mostrando-nos que a humildade, aos homens, é o caminho para se aproximar de Deus – e que vai, Ele mesmo, aquele que a todos batiza, ser batizado por um homem. ‘João recusava-se : Eu devo ser batizado por ti e tu vens a mim! Mas Jesus lhe respondeu : Deixa por agora, pois convém cumpramos a justiça completa’ (Mt 3,14-15).’


Fonte :

sábado, 1 de abril de 2017

Amor Abissal a Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Inácio José do Vale


‘O primeiro e maior mandamento ensinado por Nosso Senhor Jesus Cristo, é amar o Senhor Deus, Pai eterno e todo-poderoso de todo o nosso coração, de toda nossa alma, de toda nossa mente e de toda nossa força (Mc 12,30).

Se soubéssemos o suficiente sobre Quem Deus é e o que Ele pode ser para nós, estaríamos prostrados, suplicando que nos desse o privilégio de amá-Lo no abissal máximo da nossa capacidade. Quando somos divinamente iluminados, amar ao Bom Deus de todo o nosso coração é o mais sublime prazer da nossa existência.

Viver sem amar é não viver. Ninguém pode viver uma vida de paz, e alegria e de felicidade sem amar a Deus de toda sua alma.Disse Sigmund Freud : «O que se precisa para ser feliz? Trabalho e amor».

O amor é o sentimento mais poderoso do universo. É o sentimento da vitória. Dele afirmou o Padre José Kentenich : «Permaneçamos fielmente unidos e não esqueçamos que o amor vence tudo».

Há duas palavras no Novo Testamento grego que significam amor. A palavra philos se refere a todo afeto humano natural, algo que todos os seres humanos possuem. A outra palavra é ágape, fala do amor de Deus e seus atributos para humanidade. A maior expressão desse amor está em João 3,16. «Deus amou o mundo de tal maneira que deu o único filho, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna».

O Papa Bento XVI, na sua Carta Encíclica Deus Caritas Est, no final da introdução exorta : «O meu desejo é insistir sobre alguns elementos fundamentais, para desse modo suscitar no mundo um renomado dinamismo de empenhamento na resposta ao amor divino».

Ninguém melhor respondeu ao amor divino do que a bendita Virgem Maria. Está escrito em Lucas 1,38 : «Disse então Maria : 'Eis aqui a serva do Senhor : cumpra-se em mim segundo a tua palavra'». No versículo 37 está escrito : «E o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador».

Maria é o mais belo exemplo do amor abissal ao nosso Deus. O amor de Maria é o amor que faz cumprir a gloriosa palavra de Deus em sua vida. Todo esse amor está imbuído de gratidão, alegria, pureza, submissão e sofrimento. Essa manifestação do amor por Deus nos mostra mais claramente a ilusão, o engano, o valor passageiro de tudo que parece ser bom neste mundo. A revelação desse poderoso amor é a arma que «dissipou os soberbos no pensamento de seus corações. Depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos». (Lc 1, 51-53).

O amor abissal ignora tudo que queira ser intruso no nosso coração para tomar o santo lugar de Deus ou que, no menor sentido possível, tenta dividir com ele o nosso coração. É com a revelação desse amor que escolhemos o Deus da vida e rejeitamos todos os deuses da morte, todos os falsos profetas, todos os ídolos e toda pregação enganosa da teologia da prosperidade. Nossos corações ardem com indignação contra tudo que tenta tomar o santíssimo espaço do Bom Deus ou tenta ocupar a menor parte que seja da honra, da glória, do louvor e da adoração devidos somente a Deus Pai Todo-Poderoso.

Com a graça do amor, exaltamos a soberania de Deus. Com a fé e o amor, temos poder para orar. Com a esperança temos confiança no amor de Deus para vida eterna. Com a bênção do amor, deixamos de lado tudo que possa competir com a nossa salvação. Com amor temos Jesus Cristo como Senhor de tudo. Com o amor de Deus que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo (Rm 5, 5), ficamos desprovidos das coisas negativos do mundo e do inferno.

Temos certeza absoluta do amor de Deus para a nossa alma. Chegaremos ao paraíso, com o perdão dos nossos pecados, por meio da caridade divina (Pr 10,12; I Pd 4,8).

O amor abissal nos leva a ter sede e fome de Deus. O rei Davi tinha esse amor, quando escreveu : «A minha alma tem sede de Deus do Deus vivo» (Sl 42,1,2). Lindo é o seu clamor descrito no Salmo 63,1,2 : «Ó Deus , Tu és o meu Deus; de madrugada Te buscarei. A minha alma tem sede de Ti; a minha carne Te deseja muito em uma terra seca e cansada, onde não há água; para ver a Tua fortaleza e a tua glória, como Te vi no santuário».

Ninguém pode servir a Deus, sem amá-Lo ardentemente. Ninguém pode amar o próximo, sem amar a Deus. Ninguém pode amar a Deus, sem amar a humanidade. Ninguém pode fazer a obra do Senhor, sem ter fome e sede de Deus.

É o amor divino que atrai o ser humano para conhecer e relacionar com a Santíssima Trindade. Através do amor, temos comunhão com as três Pessoas Divinas. A nossa comunhão eclesial, parte da comunhão trinitária. Nada em toda a nossa vida, poderá satisfazer nossos desejos, a não ser o amor, faz-nos negligenciar tudo que é terreno, relativo e insignificante, a fim de alcançar algo maior e eterno.

Diz o padre Vitor Galdino Feller : «Deus é amor (1 Jo 4,8.16). Nesse sentido, Ele basta-se a Si mesmo, na inter-relação infinita de transbordamento de amor entre as três Pessoas Divinas. Por ser assim, Deus-Amor quer que compartilhemos de sua vida, criou-nos para a comunhão consigo e chama-nos do egoísmo e de toda forma de pecado para a reconciliação com Ele e com os nossos irmãos. O ser humano não se cansa de acreditar no amor e na comunhão. Essa esperança se fundamenta em Deus que é amor e no amor de Deus por nós».

Com categoria afirmava o Doutor da Graça, Santo Agostinho : «Se vês a caridade, vês a Trindade».

É a dimensão desse trinitário amor, que arde em nossos corações pelo Senhor Deus, pelo semelhante e que arrebenta o mero espírito religioso rotineiro e o atrai para uma vida de ardor, ousadia e poder. Com atração desse amor, as pessoas insistem pelo valor da vida. Tem forças para lutar contra as injustiças e a cultura de morte. Atravessam terra, mar, montanhas, vales, desertos, barreiras, caminhos solitários, espinhosos e pontes.

Todas as coisas sem o amor de Deus, mais cedo ou tarde acabam nos enfadando. Sem amor, nada é feito para durar. Somente é renovado a cada dia, quando o coração apaixonado, descobre o novo a cada momento, uma nova visão para aquecer o amor.

São Paulo Apóstolo afirma que o amor de Cristo nos constrange e que somos edificados em amor (II Cor 5,14; Ef 4,16).

«Se quiséssemos compendiar a mensagem cristã em poucas palavras, encontraríamos a formulação exata em São João Apóstolo : «Ele primeiro nos amou» (1 Jo 4,19). Mas não somente Ele ama. Há Mais : Ele amou PRIMEIRO, isto é, teve a iniciativa de amar não somente ao criar o homem, mas também ao recriá-lo; na verdade, o homem disse NÃO a Deus pelo pecado dos primeiros pais; nessas condições o Pai enviou seu próprio Filho feito novo Adão para redimir o primeiro Adão e sua linhagem. Deus Pai revelou assim a grandeza do seu amor tal que jamais o homem a imaginaria», escreveu Dom Estevão Bettencourt, OSB.

O amor abissal para com Deus é uma oblação radical, é uma atitude de se dar sem reservas ao bondoso Pai Celestial.’


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terça-feira, 4 de outubro de 2016

Francisco de Assis - Uma vida sob o signo da travessia pascal

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Francisco assume a morte, com uma intensidade tal, a ponto de desarmá-la.
 *Artigo de Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor em Teologia Sistemática
pela Pontificia Università Antonianum, Roma.
  
‘Celebramos, hoje, em comunhão com a Igreja universal, a festa de São Francisco, o Poverello de Assis. A pluralidade das narrativas acerca da conversão de Francisco nos remete à peculiaridade de sua experiência e, portanto, à singularidade de sua pessoa. Quanto mais intensa, de fato, uma experiência, tanto mais ela fomenta uma variedade incontida de expressões. Surpreende-nos, todavia, o Poverello, ao eleger, no ocaso de sua vida, o abraço solidário e acolhedor do leproso como experiência crucial de sua conversão.

No imaginário judeu-cristão, a lepra ocupa bem mais do que outras doenças uma posição de relevo. No Primeiro e no Segundo Testamentos descortinam-se, diante de nossos olhos, variadas cenas envolvendo pessoas acometidas por esta doença. A lepra que acomete Naamã, o Sírio, é a mesma que atinge tantas pessoas que Jesus encontra no curso de seu ministério público. Lepra que corrói a carne e desfigura as feições, tornando-se estigma da exclusão e da morte.

Como é sabido, o tempo de Francisco é caracterizado por profundas e significativas mudanças e noto, portanto, como um período de grande instabilidade. A causar esta situação de instabilidade não são apenas as contínuas guerras; são também as doenças antigas e novas ocasionadas pelo fluxo contínuo de pessoas. O emergente comércio que vai se impondo graças ao progressivo esfacelamento do feudalismo provoca um significativo movimento migratório. E com ele, além das tão apreciadas especiarias, infestam a Europa, entre outros, ratos com suas pulgas hospedeiras dos germes da Peste Negra. Também as Cruzadas contribuem para o crescimento do fenômeno da migração. Os gloriosos cruzados partem para o Oriente investidos de uma incumbência messiânica : defender os lugares santos e, assim, propagarem a Cristandade. No entanto, por onde passam, espalham lepra, sífilis e outras doenças.

Em um estudo acurado sobre o surto de lepra na Idade Média, a pesquisadora e sanitarista estadunidense Jeanette Farrell, no seu A assustadora história das pestes e epidemias, lembra que, enquanto para os judeus a lepra implicava em impureza ritual, para os cristãos, ela se torna o estigma do pecado e da morte que pesa com gravidade sobre os ombros de seu portador. A tal propósito, ela menciona alguns exemplos que testemunham a existência de um ritual religioso de morte social destinado aos acometidos por esta enfermidade, ainda que não tivessem ainda morrido de fato. Segundo esse mesmo ritual, os leprosos eram queimados ou, em certos casos, enterrados vivos. Tais fatos se davam freqüentemente durante os reinados de Henrique II da Inglaterra (1154-1189), Filipe V da França (1285-1314) e de Eduardo I da Inglaterra (1272-1327).

 Como se pode ver, no tempo de Francisco, além de ser vítima do sofrimento físico e moral, o leproso encarna a expressão cabal do pecado e, portanto, da condenação divina. Por esta razão, a atitude de acolhida e de solidariedade que Francisco assume para com ele deve ser interpretada não apenas como expressão de sua compaixão humanitária. Ela encarna uma distinta maneira de se relacionar com o excluído e, conseqüentemente, com o mal e sua estigmatização religiosa, mediante o pecado.

Em seu Testamento, Francisco não deixa dúvidas de que o encontro com o leproso constitui uma autêntica ruptura em sua vida. E esta ruptura foi radical a ponto de assinalar de maneira indelével sua vida a partir de então. Esta experiência crucial é por ele mesmo descrita como ‘aquilo que parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo’ (Testamento, 3a). O que nos deixa, contudo, perplexos não é tanto que ele tenha abraçado o leproso e, mediante este gesto, se solidarizado com o pecador e o excluído, quando praticamente todos ostentavam razões, pretensamente legítimas, para justificar o rechaço e a exclusão.

O que mais chama a atenção é que, abraçando o leproso, ele se sente testemunha de um visceral processo de transformação : o que antes lhe parecia amargo, lhe se converte em doçura de alma e de corpo. Aqui se encontra propriamente o âmago da experiência de Francisco que a torna um evento singular : a ousadia de abraçar a morte, disposto a acordar nela as mais genuínas sementes de vida. Ou ainda, abraçar a expressão personificada da exclusão e do pecado como único caminho possível de salvação. Pois assim como a autêntica vida só pode brotar de uma generosa aceitação da morte, assim também só o pecado acolhido com amor pode transmutar-se em salvação. E esta experiência se torna decisiva, uma vez que ele mesmo atesta : ‘e, depois, demorei só um pouco, e abandonei o mundo’ (Testamento, 3b).

 Para nós que manifestamos tamanha habilidade em dissecar as realidades, individuando-as uma a uma, para depois separá-las chegando ao paroxismo de contrapô-las, esta lição se nos revela demasiadamente indigesta, posto ser paradoxal e absurda. Julgamos que morte e vida se encontram nos extremos de nossa existência a ponto de não se tocarem senão no derradeiro e inevitável instante. Qual impostora, a morte estaria sempre à espreita, para seqüestrar de maneira sorrateira, embora agressiva, nossa vida. Por esta razão é que buscamos construir nossa vida numa distância cada vez maior de toda e qualquer sombra de morte. Julgamos que a vida só pode vicejar desde que se afugente sempre mais a morte, esta figura assustadora com seus inúmeros e ameaçadores tentáculos.

O mesmo se diga com respeito à relação entre salvação e pecado. Quanto mais longe do pecado, mais próximo da salvação. Donde a compreensão de salvação como uma espécie de condição paradisíaca, ou de uma pureza asséptica e isenta de toda e qualquer contaminação, legitimadora de tantas ideologias discriminatórias. Pois, imbuídos, muitas vezes, da necessidade de se ter que fugir do pecado, nós nos surpreendemos justificando as mais sutis exclusões daqueles que julgamos acometidos pelo pecado e, portanto, disseminadores do mesmo.

Abraçando a instabilidade de seu tempo até suas últimas conseqüências, Francisco alcança uma peculiar intensidade em sua relação para com cada pessoa, cada criatura e cada instante de vida. E a motivação e força suficientes para não soçobrar em meio a esta árdua travessia, Francisco busca-as numa inserção cada vez profunda no mistério da vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo. Deixando-se inspirar pelo Espírito do Senhor Ressuscitado, Francisco persegue até o fim os passos de Jesus, estreitando cada vez mais seus laços de comunhão e de solidariedade para com Ele, numa fidelidade inaudita à vontade do Pai.

Segundo a expressão do apóstolo, ‘Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, fazendo-se maldição por nós’ (Gl 3,13). A salvação que Jesus nos procurou mediante o mistério de sua vida, paixão, morte e ressurreição não se resume a alguma coisa que Ele nos tenha trazido de fora de nossa existência conturbada e assinalada pelo pecado. Ele viveu em tudo nossa condição, reconstituindo os fios da trama de nossa existência, a partir de suas fibras mais íntimas, reconciliando-nos mediante uma eficácia sem precedentes, porque inusitada. Sorvendo até a última gota nossa existência intrinsecamente contraditória e ambígua, Ele a sanou eficazmente, por amor e com amor, transformando o veneno de nossa perversidade em antídoto contra o pecado.

É essa a razão pela qual o Apocalipse, que é um autêntico grito de esperança em meio a situações de perseguição e de morte, atribui a Cristo um dos títulos mais significativos do inteiro corpo literário do Segundo Testamento : ‘o Vivente’. Cristo não morre mais, porque a morte não representa mais ameaça alguma Àquele que a assumiu com amor, virando-a pelo avesso, para dela poder extrair vida e vida plena para todos. De fato, só emergindo, de forma paradoxal, dos escombros mais ameaçadores da morte é que a vida pode se considerar como tal.
Seguindo, portanto, as pegadas de Cristo para permanecer em comunhão com Ele, Francisco assume a morte, com uma intensidade tal, a ponto de desarmá-la. Ele alcança esta proeza – transformar o que antes lhe parecia amargo em autêntica doçura de alma e de corpo – graças a seu amor singelo e puro, autêntico e solidário, como o de Cristo. A peculiar ousadia com que o Poverello opera esta autêntica reconversão da morte em vida e do pecado em graça é, sem sombra de dúvida, a marca distintiva de seu processo de conversão e, ao fim e ao cabo, o diferencial de sua singularíssima experiência.’


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