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segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Ucrânia: preparar-se ao sacerdócio na escola da guerra

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Svitlana Dukhovych 

 

‘Estamos tentando fazer com que os nossos seminaristas entendam que enquanto esta guerra continuar, ou mesmo quando terminar, eles terão que exercer a sua missão pastoral entre as pessoas feridas pela guerra’. Padre Ihor Boyko, reitor do seminário greco-católico de Lviv, em entrevista aos meios de comunicação do Vaticano, fala sobre as atividades que os seminaristas já estão realizando para apoiar aqueles que sofreram traumas e lutos, preparando-se assim para o futuro ministério sacerdotal.

‘Como posso voltar à vida normal’ 

‘Infelizmente a guerra continua - diz Pe. Boyko com amargura - mas embora seja uma situação realmente difícil, também vemos muitas iniciativas positivas. No início, a Igreja concentrou-se muito no apoio às pessoas deslocadas. Com o tempo vimos que deste ponto de vista a situação foi melhorando e muitas pessoas conseguiram regressar às suas casas. Hoje, porém, temos muitas situações de pessoas feridas quer no corpo – há muitos feridos entre os militares, mas também entre civis – e na alma. A Igreja procura ajudar a todos. Por exemplo, os seminaristas dos últimos anos do nosso seminário vão aos hospitais para visitar os militares, para falar com eles ou simplesmente para estar perto deles. Porque os médicos podem prestar cuidados médicos - hoje, com o desenvolvimento da medicina, podemos ter próteses modernas - mas muitos jovens, homens e mulheres, que sofreram ferimentos graves ou mutilações, trazem muitos questionamentos em seus corações : ‘Como posso continuar a viver? Qual é o significado de tudo isso que aconteceu comigo? Como posso voltar à vida normal, à minha família?’.

Pe. Ihor observa que em situações assim difíceis, o desespero pode levar ao abuso de álcool ou a algum outro comportamento autodestrutivo, ou até mesmo a pensamentos suicidas. Por isso a presença da Igreja, do clero e dos seminaristas é extremamente necessária neste período.

O tempo de estar próximos 

O reitor do seminário greco-católico de Lviv também fala de outra iniciativa que envolve seminaristas. Às vezes, durante a semana, vão ao cemitério militar de Lviv, onde sempre há algum familiar dos soldados que morreram na guerra. ‘Por exemplo - relata padre Bayko - ali encontrei recentemente uma mãe que junto com seus quatro filhos estava ao lado do túmulo de seu marido. Quando começamos a conversar, ela me disse : ‘Eu também tenho uma quinta filha, ela já é adulta e tem família própria’. Em momentos como esse, te dás conta que a tua presença como sacerdote, e também como homem, ao lado desta mãe e de seus filhos é muito importante. Porque as crianças ficam felizes em compartilhar tudo o que, talvez, gostariam de contar ao papai : os seus sucessos na escola, os primeiros passos na universidade, os seus sonhos, as suas esperanças. E então esse tempo que passamos juntos, estar próximos, ouvindo, acredito que seja muito necessário hoje.’

O sacerdote acrescenta que cada história que ouvem sobre os sepultados naquele cemitério fica gravada nas suas mentes e nos seus corações. ‘Porque ali - explica - estão sepultados muitos jovens que eram personalidades brilhantes. Muitos deles não eram militares antes da guerra. Alguns trabalhavam no exterior e quando começou a invasão russa deixaram tudo e regressaram à Ucrânia para defender a sua terra dizendo : ‘Se eu não defender a minha família, os meus filhos, quem o fará?’. Nenhum deles queria morrer, mas queriam voltar para casa para continuar vivendo felizes em seu país. Aqui, hoje temos estes novos heróis que dão a vida pela verdade, pela dignidade, com grande amor e dedicação ao seu povo’.

Curar as feridas 

Muitas vezes sacerdotes, capelães e até mesmo bispos ucranianos afirmam nas entrevistas : ‘Ninguém nos ensinou em como realizar a pastoral durante a guerra’. Eles recebem esta formação pelas experiências difíceis e muitas vezes dolorosas que vivem, quer como pastores, quer como habitantes de um país em guerra.

‘Notamos – observa Don Boyko – que os jovens que agora estudam no seminário às vezes manifestam ansiedade, medo, alguns até mesmo ataques de pânico, porque muitos têm parentes, amigos, pais, irmãos ou irmãs que estão na guerra. Recentemente houve o funeral do pai de um dos nossos seminaristas, morto na guerra. Toda a comunidade do seminário está tentando apoiar ele e sua família durante este período de luto. Neste contexto, procuramos, em primeiro lugar, fazer compreender aos nossos seminaristas que, enquanto esta guerra continuar, ou mesmo quando terminar, eles deverão exercer a sua missão pastoral entre as pessoas feridas pela guerra. Porque as pessoas vão falar sobre isso em confissões e em conversas individuais. Muitas vezes encontrarão algum soldado que lutou no front e os seminaristas terão que saber como falar com ele, o que perguntar e o que não perguntar. Terão que celebrar os funerais e também aí terão que saber comportar-se em conformidade, sabendo que temas abordar e quando, por outro, permanecer em silêncio’.

Prontos para tudo 

A Igreja na Ucrânia tornou-se um verdadeiro ‘hospital de campanha’ que tenta curar as feridas das pessoas. Uma dessas feridas é sofrida pelos pequenos, as crianças órfãs que perderam um ou os dois pais na guerra. Padre Ihor diz que seus seminaristas também estão empenhados neste campo, visitando orfanatos e organizando acampamentos de verão para crianças e adolescentes que ficaram sem mãe e pai.

Os seminaristas greco-católicos, afirma o reitor, organizam frequentemente encontros com os militares para lhes ensinar catequese, rezar juntos ou simplesmente para conversar. ‘O que mais motiva os seminaristas – sublinha Pe. Boyko – é o exemplo dos outros. Quando veem o exemplo dos sacerdotes que vão para áreas próximas da frente para servir como capelães, muitas vezes vêm até nós e dizem que também gostariam de fazê-lo. No início pensamos que poderia ser perigoso, mas hoje lhes dizemos : ‘Vocês são adultos, podem fazer suas próprias escolhas’. E há muitos seminaristas que estão felizes em exercer tal ministério para dar apoio espiritual aos nossos militares, para estar perto deles, para apoiar também os nossos capelães militares’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-12/ucrania-preparacao-sacerdocio-guerra-ihor-boyko.html

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Rovert e Moïse: duas tragédias semelhantes

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Maria Clara Bingemer,

teóloga

 

O que o Papa Francisco denuncia desde o início de seu pontificado, como globalização da indiferença, acontece diariamente em várias latitudes e de diversas formas. São tão frequentes que já não chamam tanta atenção e não provocam a mobilização que deveriam.  Às vezes se dão como cegueira total diante do outro que sofre, tornado invisível pelo individualismo reinante.  Outras acontecem como violência inadmissível e revoltante.  Ambas constituem verdadeiras tragédias humanitárias.

René Robert, suíço, casado, tinha 84 anos, era fotógrafo.  Especializou-se em captar a beleza e o feitiço fascinante do flamenco contemporâneo.  Morava em Paris.  Aparentemente poucas vidas poderiam ser mais charmosas do que a deste homem já idoso, é verdade, mas vivia em uma das cidades mais belas e cosmopolitas do mundo. Tinha uma profissão igualmente atraente e criativa.  No entanto, ei-lo que engrossa as estatísticas das 500 pessoas que morrem anualmente nas ruas das cidades francesas.  Seu perfil, porém, se destaca dos demais que, em geral, são mendigos, migrantes, sem-teto, moradores de rua.  Robert não fazia parte desta triste condição de vida que existe até mesmo no mundo desenvolvido.  

Não se tratava de um sem-teto, mas de alguém com uma carreira profissional reconhecida.  Graças a isso hoje sabemos as circunstâncias em que morreu. Todos os dias esse artista da imagem fazia sua caminhada noturna por seu bairro – na Place de la République - e no dia 19 de janeiro não foi diferente. Passando pela rue Turbigo, por algum motivo que se desconhece, caiu ao chão desacordado. E ali ficou por horas. Veio a noite, a rua ficou vazia, mas Robert continuava ali, caído e sendo lentamente assassinado pelo frio do inverno parisiense, sem que absolutamente ninguém parasse para socorrê-lo.  As pessoas tinham pressa, voltavam do trabalho, não havia atenção nem tempo sobrando para socorrer alguém que se encontra caído no chão.

As seis da manhã, uma pessoa – essa, sim, sem-teto e que não quis ter seu nome divulgado – reparou nele e chamou por socorro.  Robert foi levado a um hospital, mas já era tarde.  Após nove horas ao relento, morreu de hipotermia grave, ou seja, de frio. Um de seus amigos declarou a respeito de sua morte, fazendo ao mesmo tempo um exame de consciência : ‘Não poder ter certeza de que não me afastaria de alguém deitado na rua é uma dor que me persegue.  Mas estamos com pressa, estamos com pressa, temos nossas vidas e desviamos o olhar.’

Moise Mugenyi Kagabambe nasceu na República Democrática do Congo e chegou ao Brasil 11 anos atrás, com 14 anos de idade. Hoje, tinha 24.  Deixou seu país fugindo de conflitos que faziam de sua terra um lugar de violência, corrupção e criminalidade.  As milícias eram ativas e Moise veio buscar a paz no Brasil, país onde acreditou encontrar um povo pacífico e cordial. Sua mãe, Ivana Lay, veio três anos depois do filho.  Moise trabalhava no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca. Contribuía assim para o sustento de sua família.  No dia 24 de janeiro, o jovem foi ao Tropicália reivindicar o recebimento do dinheiro correspondente ao trabalho que ali realizara.

Moise foi atacado e linchado por cinco homens nas dependências do quiosque.  Os que o agrediram usaram um taco de baseball e amarraram suas mãos aos pés. Um sentou-se sobre sua cabeça até que ele não mais respirasse.  O vídeo que uma testemunha fez do acontecimento mostra esse mesmo homem tentando reanimar Moise, sem conseguir. O jovem recebeu mais de 30 pauladas. As câmeras de segurança também filmaram a agressão.

Por que o fato de um jovem trabalhador ir ao local de trabalho e reivindicar receber o que lhe era devido provoca essa reação de violência?  Entre várias razões emerge o fato de que Moise era negro e migrante.  O racismo estrutural que divide a sociedade brasileira, bem como a xenofobia velada ou explícita que circula como veneno em nossas veias, fez com que a tragédia de Moise acontecesse de forma tão brutal e cruel.

O assassinato mobilizou a opinião pública, pelo menos alguns grupos.  A mãe de Moise, inconsolável com a perda do filho, deixa perceber nas redes sua perplexidade.  Vieram ao Brasil buscando paz e seu filho aqui encontrou a morte de forma violenta como acontece em seu país.

Ambas as tragédias humanitárias e suas vítimas nos interpelam.  Uma, pela indiferença que se apossou de nós que não nos deixa enxergar o outro ainda que em situação infra-humana, caído ao nosso lado.  Outra, pela violência brutal e exponencial que faz atacar covardemente um jovem e acabar com sua vida por não considerá-lo um sujeito com direitos e dignidade.  Precisamos – e como! – examinar-nos, e meditar constante e continuamente na parábola do Bom Samaritano que o Papa Francisco propõe ao centro de sua encíclica Fratelli Tutti : ‘Havia um ferido à beira do caminho... Havia, há, um ancião caído na rua em meio ao inverno glacial.  Havia, há, um jovem que necessita receber os proventos que lhe são devidos.  Havia, há, seres humanos que necessitam justiça e atenção.  O que está acontecendo com a humanidade?

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/artigo/9859/2022/02/rovert-e-moise-duas-tragedias-semelhantes/

quinta-feira, 7 de maio de 2015

O apelo do extremismo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  *Artigo de Padre José Rebelo,
Missionário Comboniano


Muito mais terá que ser feito por parte do Estado e da sociedade em geral para evitar que os mais jovens abracem uma utopia mortífera. 

O êxito com que o Estado Islâmico da Síria e do Iraque (ISIS) atrai e recruta adolescentes e jovens ocidentais para as suas fileiras é verdadeiramente desconcertante. O que é que levará milhares de jovens a trocarem o seu relativo bem-estar por uma aventura em zonas de alto risco e mesmo a aceitarem fazer-se explodir por uma causa heróica ou romântica?

Um dos segredos terá que ver com os meios usados. Segundo Matthew Olsen, diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo Americano, ‘o ISIS tem a máquina de propaganda mais sofisticada de todas as organizações terroristas’, e ‘dissemina oportunamente conteúdos de alta qualidade em várias plataformas, inclusivamente nas redes sociais’. Usa plataformas como o Twitter, o Facebook e o WhatsApp para atingir o seu público-alvo – a ‘geração da Net’, habituada à comunicação digital – numa linguagem que este entende. Os vídeos produzidos para celebrar a sua brutalidade são feitos com técnicas tão sofisticadas que mais parecem trailers de filmes de ação rodados em Hollywood.

Dinheiro não falta ao Estado Islâmico : é o grupo terrorista mais rico, com reservas estimadas em milhões de dólares. Segundo a CNN, faz entre um a dois milhões de dólares por dia com o contrabando de petróleo no Sul da Turquia. O resto é obtido através da extorsão de ‘taxas’ aos cerca de seis milhões que vivem nas áreas que domina, o pagamento de resgates pelos sequestros que realiza, o tráfico de antiguidades, as doações de simpatizantes e o assalto a bancos.


O que leva os jovens a cair no engodo do ISIS não depende apenas dos meios de que dispõe. Os especialistas dizem que o ISIS consegue apelar ao seu idealismo religioso e ao desejo de escapar às frustrações que enfrentam numa sociedade de tipo ocidental. De acordo com o antropólogo Scott Atran, citado pelo The Guardian, muitas vezes são ‘imigrantes, estudantes, entre empregos ou namoradas... à procura de novas famílias, de amigos e companheiros de viagem; na maior parte dos casos não têm nenhuma educação religiosa tradicional e ‘nascem’ para uma vocação religiosa radical através do apelo à jihad militante’. Entre os atrativos que encontram num grupo extremista podem contar-se o sentimento de pertença, uma nova identidade, aventura ou dinheiro : como recompensa pela sua lealdade, os jovens recebem presentes de Alá, incluindo uma casa fornecida pelo califado, com eletricidade e água grátis.

O ISIS tem uma rede de recrutamento difusa e tão eficiente que tem iludido os esforços dos serviços de segurança ocidentais. Acredita-se que seja operada a partir da Turquia, Síria e Iraque. Os recrutadores on line fornecem informações a quem se sente inclinado a viajar para se juntar ao grupo. O desafio é progredir no domínio das novas tecnologias e rebater adequadamente a sua propaganda. Certamente muito mais terá de ser feito por parte do Estado e da sociedade em geral para evitar que os mais jovens abracem uma utopia mortífera. A barbárie não conhece limites. Da decapitação de reféns, os extremistas passaram à destruição do patrimonio cultural e arqueológico da humanidade nas regiões que controlam, quiçá na tentativa de exacerbar a ira ocidental. Tal radicalismo tende a suscitar respostas não menos irracionais. Esperemos que as vozes sensatas e moderadas prevaleçam e os Estados Unidos e seus aliados não se deixem arrastar para mais uma guerra de consequências imprevisíveis.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuFpZFZkpVBvyUDcQK

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Ruanda : Memória e luto de um genocídio

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  *Artigo de Maria Tatsos e Fernando Félix


Vinte anos depois do genocídio no Ruanda, um romance de uma escritora ruandesa conta a história de um grupo de jovens estudantes das etnias tutsi e hutu que frequentavam um liceu de elite vinte anos antes dos trágicos acontecimentos. Através das histórias dos jovens e de várias personagens, o livro faz os leitores respirar a atmosfera de ódio e desconfiança que marcava aqueles tempos e que culminou na chacina.


‘Um milhão de mortos em cerca de três meses. De 7 de Abril a meados de Julho de 1994, na chacina que ficou registada na História como genocídio do Ruanda, famílias inteiras tutsis e muitos hutus moderados, que se recusaram a colaborar na carnificina, sucumbiram no extermínio.

Em 2014, no vigésimo aniversário deste acontecimento sangrento, o Ruanda – terra verdejante de colinas e planaltos, no coração de África – fez contas com o seu passado. Os tribunais populares, criados em cada povoação – os gacacas, na língua kinyarwanda – julgaram mais de dois milhões de arguidos. Os sobreviventes foram capazes de falar e testemunhar o horror. Mas, e acima de tudo, procuraram fechar para sempre o capítulo de ódio interétnico, cujas raízes estão na época colonial, quando, primeiro, os Alemães e, depois de 1918, os Belgas alimentaram a divisão na população, fomentando uma suposta superioridade dos Tutsis sobre os Hutus. Estas teorias basearam-se em ideias racistas em voga no início do século XX na Europa.

Os Tutsis, que são minoria no Ruanda, são pastores altos, magros e de fisionomia mais fina. Os colonizadores favoreceram-nos, em detrimento dos Hutus, em maioria, a quem classificaram como camponeses ‘menos evoluídos’.

Quando os Europeus deram a independência ao Ruanda, em 1962, o fogo do ódio já estava em ignição. E um dos legados dos colonizadores seria usado na caça às vítimas durante o genocídio : a colonia belga deixou ao recém-nascido Ruanda um bilhete de identidade onde constava a indicação da etnia.

Vinte anos depois, os Ruandeses de hoje não querem ouvir falar de grupos étnicos. Nos documentos, os cidadãos são ruandeses.


Escrever para testemunhar

Scholastique Mukasonga, de 57 anos, nascida em Nyamata, no Ruanda, foi viver para França em 1992. Em 2004, tomou consciência do dever da memória. ‘A memória deve ser preservada, para testemunhar em nome daqueles que já não existem’, afirma.

Assistente social, casada com um etnólogo francês e mãe de dois filhos, trabalhava num tribunal em Caen, na Normandia. ‘Esperei dez anos. Ganhei coragem para voltar ao Ruanda só em 2004.’ Voltou à sua terra natal. ‘E foi depois desta estada que decidi começar a escrever’, conta.


Uma forma de fazer luto

No genocídio de 1994 perdeu 37 membros da sua família. Os seus dois primeiros livros foram autobiográficos. Inyenzi ou les cafards (‘Inyenzi ou as baratas’), Éditions Gallimard, 2006, dá, desde logo, ênfase à designação depreciativa com que foram designados os Tutsis. ‘É a história da minha infância em Nyamata’, revela.

La femme aux pieds nus (‘A mulher com os pés descalços’), Éditions Gallimard, 2008, é uma homenagem à sua mãe e à coragem de todas as mulheres de Nyamata que se esforçaram para sobreviver e salvar as crianças de morte. Este livro ganhou o Premio Seligman contra o racismo e a intolerância, em França.

O genocídio dos tutsis do Ruanda, em 1994, fez de mim escritora. A escrita tem sido uma forma de fazer luto. Com os meus livros, teço uma mortalha para aqueles cujos corpos, enterrados em valas comuns ou espalhados em ossários, estão perdidos para sempre’, revela Scholastique.


A metáfora das vítimas e dos maus

A seguir vieram obras de ficção, porque lhe davam a distância de que precisava para dizer coisas que não poderiam ser expressas em autobiografia. L’Iguifou – nouvelles rwandaises (‘O Igifu – notícias do Ruanda’), Éditions Gallimard, 2010. Esta é uma obra tão assombrada pelas memórias como as anteriores. O Igifu é uma metáfora de uma boca insaciável. No livro, pessoas e animais são engolidos, macerados pelo medo, pela dor, pela morte e pelo luto.

O seu quarto livro, Notre Dame du Nil (‘Nossa Senhora do Nilo’), Éditions Gallimard, 2012, é o seu primeiro romance. Com ele, foi distinguida com o Premio Théophraste Renaudot, uma das distinções literárias mais importantes de França. Embora esta seja uma história de ficção, descreve como se foi esboçando o genocídio. ‘O romance toma o nome de um liceu que imaginei implantado na montanha, a 2500 metros de altitude, não muito longe de uma suposta fonte do Nilo’, diz Scholastique. ‘É uma escola frequentada pelas filhas da elite do poder. Às estudantes tutsis apenas é concedida uma quota de dez por cento. Neste lugar fechado, as rivalidades étnicas exacerbam-se de tal modo que conduzem, vinte anos mais tarde, ao genocídio.’

Scholastique não deixa, porém, de expor algo da sua vida pessoal neste livro. ‘O liceu Nossa Senhora do Nilo assemelha-se ao liceu Notre Dame de Cîteaux, em Kigali, em que estudei. A segregação das estudantes tutsis que eu sofri em 1973 forçou-me ao exílio no Burundi.’

O romance conta a vida diária das estudantes : os livros escolares, os primeiros amores, rituais mágicos, a vigilância rigorosa das freiras que administram o liceu. Seriam histórias da adolescência comum a todas as pessoas, não fosse a exceção do ódio étnico que atravessou os muros da instituição. Virgínia e Veronica, alunas tutsis, encarnam as vítimas. O papel de má é atribuído a Gloriosa, jovem sedenta de poder, racista e politizada, que encontra no padre hutu Herménégilde o seu aliado contra as colegas tutsis. ‘E lembremo-nos que é uma escola que formava as mulheres de elite do Ruanda.’’



Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EukZAZFylZtuCwYdcK