Mostrando postagens com marcador barbárie. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador barbárie. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Os sobreviventes de Hiroshima

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 Documento de identidade de John Hersey emitido pelo Consulado do Japão

Documento de identidade de John Hersey emitido pelo Consulado do Japão (Biblioteca de livros e manuscritos raros de Beinecke, Universidade de Yale)

*Artigo de Lev Chaim, 

jornalista e colunista

 

‘Nos dias 6 e 9 de agosto, foram comemorados os 75 anos das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, que colocaram um fim simbólico e factual à Segunda Guerra Mundial. O livro sobre o assunto do jornalista John Hersey, avant-guarde, foi publicado novamente, após ter sido lançado em agosto de 1946, como contos para a The New Yorker, como uma coisa única na história daquela revista literária. Não só porque se trata de uma história de pessoas que sobreviveram apesar de terem sido atingidas pelas bombas norte-americanas, como também pela forma de abordagem dos fatos, com toques de contos literários.  

A conceituada editora holandesa Meulenhof lançou o livro novamente, que você lê como se fosse um romance sobre seis personagens, mas baseado em testemunhas do bombardeamento, numa espécie de entrevistas realizadas. John Hersey torna-se assim um dos pais do novo jornalismo, que deixou de ser aquele que apenas relata descrevendo os fatos, mas também aquele que mergulha fundo atrás desses fatos e suas histórias. Podemos citar aqui mais nomes de outros autores-jornalistas que desenvolveram a mesma técnica de entrevistas ou a aperfeiçoaram, tais como : Norman Mailer, Truman Capote, Hunter Thompson, Tom Wolfe etc.

Muitos talvez teriam a tendência de denominar esta forma de narrativa como totalmente subjetiva. Eu, que corri e comprei o livro, não a achei nada subjetiva, pelo contrário, a vi como uma narrativa um tanto quanto fria tecnicamente, mas que consegue transmitir ao leitor toda a tragédia do bombardeamento, seus mortos e suas trágicas consequências. São seis contos subjetivos, que mostram a diversidade íntima da percepção da realidade pelos seis sobreviventes. Isto advém do registro calmo de todas as emoções dos personagens, mas de uma forma um tanto quanto distanciada, porém não menos impressionante. Trata-se de uma técnica que melhor se adapta ao caráter da população japonesa, mais contido, mesmo em suas manifestações emocionais.

Entre os retratados deste livro de John Hersey, norte-americano e filho de um missionário enviado à guerra para confortar os soldados, estão também dois religiosos. O autor mostra um profundo conhecimento do país e em algumas passagens também retrata os perecidos naquele fatídico dia da explosão da bomba atômica.  Ele escreve : ‘eles morreram em silêncio, sem ressentimento e espremeram os dentes para poder aguentar toda aquela tragédia. Tudo em honra da pátria’.

Os outros jornalistas, norte-americanos ou não, que também relataram a tragédia de Hiroshima e Nagasaki, estavam ainda sob o choque da guerra, cheios de emoções negativas que os japoneses lhes deixaram por serem o inimigo, tal qual os nazistas.

Hersey, pelo contrário, se posicionou no lugar das vítimas e escreveu as suas histórias, sem qualquer sinal de nacionalismo exacerbado ou sentimento de vingança. Um dos frutos retirados das histórias de Hersey é que você pode ver um lado escondido da sociedade japonesa : o lado da ultra disciplinada sociedade e da total submissão para com o seu destino como um povo, em nome da pátria. Um sentimento que era expressado na realidade pelo seu próprio imperador.

Ele ainda nos conta sobre a total falta de percepção, por parte dos moradores de Hiroshima, dos fatos ocorridos ali com eles, o porquê deles terem sido feridos com aquelas absurdas queimaduras e por todas as outras consequências da radiação atômica, cujos efeitos ainda duraram muito mais tempo, até as próximas gerações, quando começaram a nascer crianças com microcefalia, anos depois da tragédia.

Como disseram muitos que leram o livro, inclusive eu, você acompanha todo esse episódio como um dos pontos mais baixos de nossa civilização e como uma espécie de purificação do ser humano, uma história de resiliência e continuação por parte daquele povo, sem que Hersey nos inunde com os reais momentos de náusea pelo ocorrido e todas as suas consequências.  

Portanto, meus caros leitores, sugiro que partam rumo à livraria mais próxima e perguntem se já existe uma versão em português deste impressionante livro, Hiroshima, que, sem sombra de dúvidas, nos dá um exemplo definitivo e marcante de um jornalismo que atinge as aureolas da literatura. Leiam e julguem por si próprios.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1464679/2020/08/os-sobreviventes-de-hiroshima/

terça-feira, 19 de maio de 2020

Geração 26

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 ---
*Artigo de Judit Figueras

  


Ruanda : Os órfãos do genocídio são o símbolo da reconstrução

‘Ainda há um vazio por pintar, mas no seu olhar já se vislumbra a esperança daquele menino sonhador. Com um rolo mergulhado na tinta branca e ao ritmo de tambores, Emmanuel, além de continuar o seu trabalho, ajuda a que apareça uma trintena de sorrisos. Pertencem a um grupo de crianças que espreitam por detrás da janela. Os miúdos, ocultos no seu rubor, observam com espanto os primeiros esboços da que será a sua nova biblioteca.

Há poucos meses, Emmanuel começou a construção de um espaço didático para os órfãos que vivem numa das zonas rurais de Gisenyi, uma cidade no Noroeste do Ruanda. «Muitas destas crianças não podem frequentar a escola e ficam na rua durante o dia. Os pais adotivos viajam para o Congo para trocar produtos e não regressam senão ao anoitecer», explica o jovem.

Em 2014, Emmanuel começou a ajudar estes menores. Juntamente com alguns amigos, o jovem estabeleceu um espaço reduzido onde dava aulas de inglês e de leitura a vinte crianças. Agora são mais de 200 as crianças que apoia com instrução e comida.

Neste bairro, todos conhecem Emmanuel. Todos sabem o que faz pelos seus filhos. É por isso que, quando o jovem passeia pela zona, todos reconhecem o seu trabalho com um gesto gratificante. Atrás dele, uma multidão de miúdos desarranjados – e a maioria descalços – segue-o como se de um messias se tratasse. Dançam ao seu ritmo, cantam as suas melodias e acompanham cada um dos seus passos.

Os órfãos do genocídio

Em 2012, o Governo do Ruanda anunciou o fecho de todos os orfanatos do país e fixou 2020 como data-limite para se tornar a primeira nação de África que prescinde destes hospícios. Desde que empreendeu este plano, o Executivo de Paul Kagamé encerrou mais de uma vintena dos 39 orfanatos que havia no País das Mil Colinas. Entre eles, o Orfanato Noel de Nyundo, uma das instituições que mais órfãos acolheu após o genocídio de 1994, que foi a casa de Emmanuel.

Este jovem foi um dos 95 mil órfãos que, segundo a UNICEF, deixou o episódio mais sangrento da História do Ruanda. Uma tragédia que, depois de décadas de conflito entre as duas principais etnias do país, hutus e tutsis, rebentou no dia 6 de Abril de 1994 com o assassínio do então presidente ruandês Juvenal Habyarimana, que viajava de avião com o seu homólogo burundiano, Cyprien Ntaryamira. Durante cerca de 100 dias, mais de 800 mil ruandeses morreram por golpes de machete às mãos dos vizinhos, conhecidos e até familiares.

«Nunca conheci os meus pais. Um soldado encontrou-me na rua quando tinha apenas duas semanas de vida», assegura. Emmanuel nasceu em 1994, os seus pais foram assassinados durante o genocídio e cresceu na companhia de mais de 600 crianças que o Orfanato Noel de Nyundo acolheu, e aos quais chama agora «irmãos».

Todas as tardes, quando acaba o seu trabalho com as crianças, Emmanuel calça as suas meias azuis até os joelhos, calça as chuteiras e veste o dorsal 7 à frente da sua equipe de futebol. Chama-se Kunda Village Team e tem o nome do bairro onde cresceu. Grande parte dos seus companheiros também são órfãos do genocídio que passaram a infância no Noel de Nyundo. «Mantemo-nos unidos porque queremos seguir caminhando juntos», diz o jovem. São seus companheiros de equipa, mas, sobretudo, são seus companheiros de vida.

Quando o orfanato fechou, muitos deles já eram maiores de idade e não foram atribuídos a nenhuma família. Ficaram sem lar. «O Emmanuel tirou-me da rua, ofereceu-me um trabalho e um teto onde dormir», explica Richard, um dos melhores amigos de Emmanuel. «Ainda hoje me dá comida e roupa para vestir. Em troca, eu ajudo-o com o seu projeto para as crianças», afirma o jovem. A cada semana, Richard e outros amigos de Emmanuel revezam-se para dar aulas de Inglês, Matemática e leitura aos pequenos e, nos fins-de-semana, lavam-lhes a roupa e oferecem-lhes alguma comida.

Pobreza, apesar de tudo

O orfanato que acolheu Emmanuel fechou as suas portas em 2012, e os menores que aí residiam foram entregues a familiares afastados ou a famílias de acolhimento. Contudo, a maioria destas famílias não dispunha de recursos suficientes para poder pagar o custo da educação das crianças.

Ruanda é um dos países africanos que mais progrediu economicamente desde o início do século – com uma influência direta da ajuda econômica exterior, multiplicada depois do genocídio. Concretamente, a sua economia cresceu a uma média anual de 7,1% nos últimos cinco anos. Não obstante, segundo o Banco Mundial, o índice de pobreza neste país, localizado na região dos Grandes Lagos, continua sem baixar dos 38%. Muitas são as famílias que não podem assumir gastos escolares como os livros, o uniforme ou a matrícula, que ronda entre os oito e os 20 euros anuais. Tal como estima o Fórum Económico Mundial, 60% da população ruandesa aufere menos de 1,15 euros diários. Uma situação que levou a um nível de abandono escolar no país que rondou os 42% em 2015, de acordo com o Programa de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (PNUD).

Graças ao seu esforço e à sua visão empreendedora, Emmanuel conseguiu obter financiamento e subvenções para custear a educação e a cobertura sanitária de muitas destas crianças. Além disso, conseguiu edificar uma nova biblioteca onde os que não frequentam a escola podem continuar a aprender, e os que recebem educação podem passar o tempo extra-escolar.

Sorrisos nas margens do Kivu

A poucos quilômetros, Davide, Ellie e Musa entregam-se ao jogo de realizar movimentos de ancas e saltos mortais impossíveis. As suas gargalhadas invadem a calma que transborda nas margens do Kivu, um dos grandes lagos de África. Ao pôr do Sol, os três caminham sem rumo, com o olhar perdido, procurando aquela que será a sua cama esta noite. Como cada tarde, Davide, Ellie e Musa voltaram a ser crianças outra vez, mas, ao anoitecer, os seus pesadelos voltam para lhes arrebatar a infância. Há já alguns anos que os rapazes se reúnem na praia do lago para fazer aquilo de que mais gostam. Ali, o seu professor espera-os, impaciente. Michael também aprendeu acrobacias nesta margem quando tinha a sua idade. Agora, é um ginasta consolidado com habilidades extraordinárias e, sobretudo, com um desejo comovedor de instruir os seus alunos nesta disciplina.

Pag44A
Dois professores e dois alunos de soul of Rwanda fazem uma acrobacia 

Tal como aos miúdos que treina, Michael viveu nas ruas de Gisenyi. A sua vida começou marcada pelo acontecimento mais terrível que jamais viveu Ruanda. Nasceu a 10 de Outubro de 1994 num dos campos de refugiados que acolheu mais ruandeses após o genocídio, o campo de Masisi, no antigo Zaire, actual RDC. Depois de um ano no campo, Michael, a sua mãe e o seu irmão mais velho, John, voltaram a Gisenyi. Todavia, nada restava do que fora a sua casa, apenas ruínas. Tão pouco encontraram os seus familiares mais chegados, todos tinham morrido.

A mãe dos miúdos caiu numa depressão que a bloqueou por completo. Deixou de tomar conta deles, pelo que John e Michael começaram a mendigar na rua. Desta maneira, pelo menos, podiam conseguir alguma comida. Tinham apenas 6 e 2 anos. «Quando fiz 8 anos, descobri um grupo de miúdos que praticavam acrobacias no lago», explica Michael. Pouco a pouco, tanto ele como o seu irmão foram-se introduzindo no grupo até os integrarem. A maioria destes menores tinha perdido as suas famílias durante o genocídio. «A acrobacia ajudava-me a esquecer e, por algumas horas, permitia-me ser uma criança alegre e feliz», acrescenta o jovem.

Em 2012, Michael, o seu irmão e Gato, um dos seus amigos, juntaram um grupo de rapazes que viviam na rua e começaram a ensinar-lhes as técnicas básicas desta modalidade artística. Em poucos anos, o grupo de crianças que instruem foi crescendo e as suas aptidões também progrediram. «Estas crianças vivem o que um dia eu vivi, por isso quero que, por meio da acrobacia, sintam a mesma paz e alegria que eu sentia

Crianças sem lar

Muitas das crianças que perderam os pais durante o genocídio não foram encaminhadas para orfanatos. Segundo afirmava a Unicef no seu relatório «Lutando para sobreviver», no ano 2001, cerca de 300 mil crianças viviam em lares sem nenhum adulto responsável à sua frente. Em 2019, um relatório da Human Rights Watch estimava em 2882 os menores que viviam na rua. A problemática, portanto, ainda não tinha sido erradicada. As ruas de Gisenyi são testemunhas disso. Ao passear pelo mercado central de Rubavu, à volta de 50 crianças pedem esmola aos condutores. Outras jazem abandonadas em caixas de cartão sujo esperando que as horas, os dias passem. De repente, um deles desperta e sai disparado com um sorriso de orelha a orelha para abraçar o seu amigo John, o irmão de Michael. Em menos de cinco minutos, uma multidão de cabeças rodeia-o para o tocar e beijar. John e Michael são, certamente, as únicas pessoas que os tratam como são : crianças.

«Muitas vezes, temos de suprir o papel que os seus pais deveriam ter exercido», comenta John. «Vivo perto do mercado e cada dia vejo mais crianças na rua. No total são para aí 300. Mais de 50 assistem cada tarde às nossas lições», acrescenta o miúdo. Soul of Rwanda é o nome que dá vida ao projeto de dança, acrobacia e ioga que empreenderam os dois irmãos. Em Fevereiro de 2019, formalizaram a organização com a qual querem ajudar estes menores para que possam frequentar a escola. Soul of Rwanda é uma escola de acrobacia, mas, sobretudo, é uma escola de companheirismo, amizade e amor.

Uma luta diária

Nos arredores de Rwamagana, uma cidade no Leste do país, Adeline tenta relaxar uns minutos. Sentada num banco, tem nas mãos um copo de leite fresco. Entre cada sorvo, desvia o olhar para a porta. São os primeiros minutos da tarde em que não entra ninguém no restaurante. São os primeiros minutos do dia em que pode descansar um pouco e a pensar em si mesma. Em Julho de 2019, a jovem abriu este negócio em que oferece bananas verdes, leite e mandazi, um doce tradicional ruandês, aos vizinhos da zona. «Os meus clientes pedem-me mais variedade no menu, mas não tenho muitos recursos, apenas os alimentos que cultivo na minha horta», explica.

Às sete da tarde, Adeline fecha o negócio e volta à sua casa. Nos dias de sorte pode apanhar um táxi para chegar antes que escureça. «Espero que no futuro possa arrendar um local mais próximo da minha casa. O gasto em transporte podia destiná-lo a adquirir mais produtos como arroz, açúcar e óleo», lamenta-se. Uma vez em casa, começa o seu trabalho real. Tem de preparar o jantar para alimentar as suas duas filhas, de 11 e 8 anos de idade, dar-lhes banho e ajudá-las a fazerem os TPC. As meninas vão à escola todos os dias. A mãe encarrega-se de que tenham o uniforme e o material escolar pronto para poderem frequentar as aulas. «Vivo por e para as minhas filhas. Tudo o que ganho no meu negócio destino-o aos seus estudos, para que, contrariamente a mim, elas possam alcançar o seu sonho algum dia», explica a jovem.

Adeline acaba de fazer 25 anos, mas os seus sonhos e esperança esfumaram-se há já muito tempo. Os pais eram tutsis e foram assassinados pelos seus próprios vizinhos durante o genocídio de 1994, apenas uns dias depois de ela ter nascido. Depois do trágico acontecimento, uns familiares afastados acolheram a menina. Ainda assim, a sua vida não iria ser um caminho fácil.

Marcada pela rejeição

«Essa família nunca me quis», assegura Adeline. Depois das aulas, a rapariga tinha de trabalhar no negócio dos seus pais adotivos. Muitos dias tinha de trabalhar durante o horário escolar, o que afetava as suas notas. Aos 13 anos, Adeline ficou grávida e a mulher com quem vivia expulsou-a de casa. «Era uma rapariga muito estudiosa, queria ser engenheira informática. Mas quando chegou a gravidez, a minha vida acabou», sentencia a jovem enquanto limpa as lágrimas.

Pag44B
Davide, uma criança que vive nas ruas de Gisenyi 

Depois de meses a viver na rua, uma vizinha deu-lhe abrigo em sua casa. Adeline teve a sua primeira filha e três anos mais tarde voltou a engravidar. A partir desse momento, a mulher que a acolhera pediu-lhe que saísse de casa. Adeline deu à luz a sua segunda filha na rua. Com apenas 16 anos, encontrava-se só, desamparada e com duas criaturas para manter. Num ato de desespero, procurou refúgio no único lugar onde se sentia segura : o terreno no qual os seus pais tinham vivido. Nada restava do que fora a sua casa, mas a terra continuava a ser fértil. Começou a cultivar frutas e verduras para poder alimentar as suas filhas. Com barro e água foi fabricando tijolos e, pouco a pouco, construindo o seu novo lar.

Além do mais, agora Adeline tem uma vaca. A ONG local Msaada, destinada a ajudar viúvas e órfãos do genocídio, entregou-lhe um destes animais. Com o leite que a vaca produz, a rapariga pode dar de comer às suas meninas e, ao mesmo tempo, vendê-lo no seu restaurante. «Adeline começou uma nova vida depois de se instalar na parcela dos seus pais, mas continua a lutar diariamente para sobreviver», assegura o diretor da Msaada, Damascene Ntambara.

O jantar está pronto, mas Adeline prefere continuar a escutar enquanto as suas filhas cantam e brincam à volta da fogueira que reúne esta família. Não está muito orgulhosa de como decorreu a sua vida, mas ao olhar para as suas filhas, sabe que está a fazer algo de bom.

Vinte e seis anos do episódio mais cruel

Este ano Ruanda comemora o 26.º aniversário do genocídio. No ano passado, por ocasião dos vinte e cinco anos daquela barbárie, o Governo ruandês organizou uma série de eventos nacionais e internacionais, marchas solenes e atos comemorativos. Um conjunto de acontecimentos conhecidos como Kwibuka, uma palavra que significa «recordar».

Ao contrário do Governo, Emmanuel, Michael e Adeline preferem não recordar. «Não sei o que aconteceu aos meus pais e realmente não quero saber. Apenas quero concentrar-me no futuro das crianças», assegura Emmanuel.

Estes três sobreviventes fazem 26 anos em 2020. Emmanuel não sabe exatamente em que dia nasceu, mas como cada ano, vai celebrá-lo no Natal com os seus amigos do orfanato. Desta vez, na recém-inaugurada biblioteca. Michael vai festejá-lo em Outubro com o seu irmão, os seus companheiros de acrobacia e com as crianças que fazem parte da sua já formalizada escola, Soul of Rwanda. Adeline abriu o seu negócio em Julho do ano passado, o mês do seu aniversário, e com ele chegou mais esperança para as suas duas filhas.

Emmanuel quer ajudar os órfãos, Michael as crianças que vivem na rua e Adeline luta cada dia pelas suas filhas. Os três nasceram durante o genocídio e, depois de superarem muitos obstáculos, agora caminham na mesma direção e partilham a mesma meta : oferecer uma vida melhor à geração seguinte.’


Fonte :
*Artigo na íntegra

sábado, 12 de janeiro de 2019

No combate às barbáries

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 O ponto de partida é tomar consciência da dinâmica que envolve o mundo na contemporaneidade.
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG



Superar a indiferença deve ser o ponto de partida para enfrentar este ‘vale tudo’ que se vive na atualidade, em que se age segundo os próprios interesses, desconsiderando nobres valores.  Sacrificam-se vidas, subjetivismos são impostos como hegemonia. Patrimônios inegociáveis são trocados pelo dinheiro. O desrespeito ao bem comum se torna regra, com apropriações indébitas do erário, arquitetadas por diabólicos esquemas de corrupção e favorecimentos. A trágica violência, que compromete o direito de ir e vir, levando segmentos da população ao extermínio, é uma das mais graves consequências da indiferença. A sociedade precisa acordar. Cada cidadão assuma o desafio de investir em uma nova civilização, marcada por qualificados modos de relacionamento.

Sem esse investimento não adianta mudar a composição de instituições políticas, pois a governabilidade estará sempre comprometida. Faltará a lucidez imprescindível aos entendimentos, fundamentais para conduzir o Brasil rumo a uma realidade promissora. Não basta apenas investir em segurança pública ou defender propostas inconsistentes, a exemplo da concessão do direito legal ao porte de arma. O fundamental para a sociedade brasileira é que haja profunda revolução cultural no sentido de recuperar valores e princípios que sustentam o altruísmo, a solidariedade e o compromisso com o bem comum.

Todos têm responsabilidade na construção de rumos novos, pois a tarefa é grande, requer empenho diário e tempo - a transformação almejada demandará décadas para se efetivar. Mas sem buscar essa profunda mudança, continuarão a se multiplicar situações de barbárie, a exemplo dos feminicídios e do extermínio de índios, abominação motivada por interesses gananciosos, além das muitas outras tragédias diárias. Ocorrências que revelam o descompasso moral e emocional dos cidadãos não só pela crueldade que as envolvem, mas pela indiferença com que são percebidas pela sociedade. Com urgência, é preciso reconhecer : há uma infinidade de barbáries que vão moldando a sociedade. Um fenômeno cruel que configura a interioridade de crianças e jovens, deseducando-os no sentido de desqualificar valores e princípios imprescindíveis ao exercício da cidadania.

As reações frente a esse cenário são urgentes e demandam amplo envolvimento que vão além de ideologias partidárias, de interesses particulares, para tornarem-se força efetiva de mudança. Mas, o que fazer? Por onde começar? O ponto de partida é tomar consciência da dinâmica que envolve o mundo na contemporaneidade. Convive-se com uma avalanche de informações irrelevantes e, ao mesmo tempo, falta lucidez às pessoas. Consequentemente, gastam-se energias e investimentos com processos que contam pouco e não deveriam ser prioridade.

A avalanche de informações muitas vezes gera confusão e acaba causando o que pode ser chamado de ditadura da opinião própria. Esse fenômeno, que se generaliza, é caracterizado por pessoas e grupos que emitem juízos precipitadamente, a partir de interpretações equivocadas, perpetuando o caos e alimentando a barbárie. Para reverter esse quadro, deve-se cultivar a humildade : sabe-se menos do que se pensa que sabe.

Não se pode mais impor perspectivas sob o efeito de um saber ilusório, em um mundo que se torna cada vez mais complexo. Perceber essa indomável complexidade permite enxergar as próprias limitações, com humildade, o que favorece o diálogo e, consequentemente, novos passos civilizatórios.

A força do diálogo e o inegociável respeito às pessoas são fundamentais para enfrentar as barbáries. Qualificar-se para dialogar e interagir, percebendo os próprios limites, é conduta indispensável e coerente com a moralidade, a espiritualidade e autênticas relações fraternas.’


Fonte :  

quinta-feira, 7 de maio de 2015

O apelo do extremismo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  *Artigo de Padre José Rebelo,
Missionário Comboniano


Muito mais terá que ser feito por parte do Estado e da sociedade em geral para evitar que os mais jovens abracem uma utopia mortífera. 

O êxito com que o Estado Islâmico da Síria e do Iraque (ISIS) atrai e recruta adolescentes e jovens ocidentais para as suas fileiras é verdadeiramente desconcertante. O que é que levará milhares de jovens a trocarem o seu relativo bem-estar por uma aventura em zonas de alto risco e mesmo a aceitarem fazer-se explodir por uma causa heróica ou romântica?

Um dos segredos terá que ver com os meios usados. Segundo Matthew Olsen, diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo Americano, ‘o ISIS tem a máquina de propaganda mais sofisticada de todas as organizações terroristas’, e ‘dissemina oportunamente conteúdos de alta qualidade em várias plataformas, inclusivamente nas redes sociais’. Usa plataformas como o Twitter, o Facebook e o WhatsApp para atingir o seu público-alvo – a ‘geração da Net’, habituada à comunicação digital – numa linguagem que este entende. Os vídeos produzidos para celebrar a sua brutalidade são feitos com técnicas tão sofisticadas que mais parecem trailers de filmes de ação rodados em Hollywood.

Dinheiro não falta ao Estado Islâmico : é o grupo terrorista mais rico, com reservas estimadas em milhões de dólares. Segundo a CNN, faz entre um a dois milhões de dólares por dia com o contrabando de petróleo no Sul da Turquia. O resto é obtido através da extorsão de ‘taxas’ aos cerca de seis milhões que vivem nas áreas que domina, o pagamento de resgates pelos sequestros que realiza, o tráfico de antiguidades, as doações de simpatizantes e o assalto a bancos.


O que leva os jovens a cair no engodo do ISIS não depende apenas dos meios de que dispõe. Os especialistas dizem que o ISIS consegue apelar ao seu idealismo religioso e ao desejo de escapar às frustrações que enfrentam numa sociedade de tipo ocidental. De acordo com o antropólogo Scott Atran, citado pelo The Guardian, muitas vezes são ‘imigrantes, estudantes, entre empregos ou namoradas... à procura de novas famílias, de amigos e companheiros de viagem; na maior parte dos casos não têm nenhuma educação religiosa tradicional e ‘nascem’ para uma vocação religiosa radical através do apelo à jihad militante’. Entre os atrativos que encontram num grupo extremista podem contar-se o sentimento de pertença, uma nova identidade, aventura ou dinheiro : como recompensa pela sua lealdade, os jovens recebem presentes de Alá, incluindo uma casa fornecida pelo califado, com eletricidade e água grátis.

O ISIS tem uma rede de recrutamento difusa e tão eficiente que tem iludido os esforços dos serviços de segurança ocidentais. Acredita-se que seja operada a partir da Turquia, Síria e Iraque. Os recrutadores on line fornecem informações a quem se sente inclinado a viajar para se juntar ao grupo. O desafio é progredir no domínio das novas tecnologias e rebater adequadamente a sua propaganda. Certamente muito mais terá de ser feito por parte do Estado e da sociedade em geral para evitar que os mais jovens abracem uma utopia mortífera. A barbárie não conhece limites. Da decapitação de reféns, os extremistas passaram à destruição do patrimonio cultural e arqueológico da humanidade nas regiões que controlam, quiçá na tentativa de exacerbar a ira ocidental. Tal radicalismo tende a suscitar respostas não menos irracionais. Esperemos que as vozes sensatas e moderadas prevaleçam e os Estados Unidos e seus aliados não se deixem arrastar para mais uma guerra de consequências imprevisíveis.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuFpZFZkpVBvyUDcQK