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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A mulher e a autoridade como representadas nos sarcófagos do séc. IV

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Sarcófago do século IV 

(Foto do autor no Museu Pio Cristão no Vaticano. Todos os direitos reservados)

*Artigo da Irmã Christine Schenk, CSJ


Uma vez que a maior parte da história se baseia em documentos produzidos por homens, a procura de dados históricos fiáveis sobre as mulheres no cristianismo primitivo pode tornar-se um verdadeiro desafio. O cristianismo baseia—se fortemente na palavra escrita como principal meio de conhecer a sua história. Como afirma a Dra. Janet Tulloch num artigo publicado em 2004, as informações recolhidas a partir de artefatos visuais, como afrescos, pinturas e frisos em sarcófagos, têm sido até agora confiadas quase exclusivamente a historiadores de arte e arqueólogos. Embora houvesse muitas mulheres mecenas que apoiavam financeiramente os homens da Igreja primitiva (Maria de Magdala, Febe, Lídia, Paula, Olímpia), a sua presença é pouco mencionada nas fontes literárias. No entanto, desde há algum tempo, os estudiosos aperceberam-se de que a arqueologia é uma fonte importante no que respeita à presença das mulheres no cristianismo primitivo.

Documentação escrita versus documentação arqueológica

Durante os primeiros quatro séculos da história cristã (e até à atualidade), os eclesiásticos justificaram a limitação da autoridade das mulheres referindo-se à admoestação da primeira carta de Paulo a Timóteo, segundo a qual as mulheres deviam permanecer em silêncio nas assembleias e não deviam ensinar ou ‘impor a lei aos homens’ (2, 12). No entanto, a arte funerária cristã do final do século III e início do século V retrata mulheres na atitude de ensinar e pregar. Aqui será possível apenas uma breve dissertação sobre este tema fascinante.

Tanto para os romanos cristãos como para os pagãos, o sarcófago não era apenas o contentor de um cadáver, mas um monumento carregado de significado. A arte funerária romana tinha como objetivo tornar visível a identidade da pessoa falecida e comemorar os seus valores e virtudes. Só as pessoas ricas podiam pagar um monumento funerário tão caro; o projeto da representação, ou seja, a forma como queriam ser recordados, era também um processo importante. Ser representado com um pergaminho, uma capsa (recipiente de pergaminho) ou um codex (livro) era um indicador imediato da educação, do status e da riqueza da pessoa falecida.

Tanto os homens como as mulheres cristãs eram recordados e idealizados como pessoas de um certo status, com uma certa autoridade, erudição e devoção religiosa. Se a pessoa falecida era representada com um pergaminho ou capsa e imersa em cenas bíblicas, isso indicava a sua erudição nas Escrituras hebraicas e cristãs.

Durante três anos, analisei 2.119 imagens e descritores de sarcófagos e fragmentos datados do século III até ao início do século V, incluindo todas as imagens disponíveis de sarcófagos cristãos. Uma investigação aprofundada dos motivos iconográficos selecionados revelou que muitas mulheres do cristianismo primitivo eram recordadas como pessoas de um certo status social, influentes e com autoridade nas suas comunidades. Uma descoberta verdadeiramente significativa é o fato de existirem, em comparação com os retratos funerários de homens cristãos, pelo menos três vezes mais retratos de mulheres cristãs, e a probabilidade de estas descobertas se deverem apenas ao acaso é inferior a 1 em 1.000.

Muitos dos relevos dos sarcófagos representam mulheres no meio de cenas bíblicas, no gesto do orador ou segurando pergaminhos ou códices nas mãos. Este é um testemunho efetivo do facto de as mulheres do século IV não aderirem à disposição de permanecerem em silêncio. A sua difusão sugere a emergência de uma nova identidade feminina de erudição bíblica e de autoridade pedagógica. Outra verificação interessante é o fato de os retratos femininos terem o dobro da probabilidade de estarem ladeados por figuras de apóstolos (frequentemente Pedro e Paulo), provavelmente para validar a sua autoridade religiosa.

O que nos diz a arqueologia

A iconografia do cristianismo primitivo diz-nos que as mulheres cristãs eram cultas, piedosas e abastadas. A julgar pelo número de sarcófagos que representam apenas mulheres, isso indica que eram também mulheres solteiras ou viúvas, o que faz lembrar as primeiras comunidades de viúvas ou virgens de que falámos no primeiro artigo desta série. Tendo em conta que muitas delas são representadas com rolos de pergaminho e em atitude de pregação numa cena bíblica, podemos deduzir que eram eruditas nas Escrituras e queriam ser representadas como mulheres que confiavam no poder salvador de Deus e eram especialistas na vida de Jesus e nos seus milagres de cura. As suas comunidades idealizaram-nas como figuras eruditas com autoridade, no mínimo, para proclamar e ensinar as Escrituras.

É plausível que as posteriores ‘madres da Igreja’, como Marcela, Paula, Melânia, a Anciã, e Proba, tenham admirado estes modelos femininos primitivos que as inspiraram a amar e a estudar as Escrituras. As fontes literárias sobre as ‘madres da Igreja’ coincidem com os achados arqueológicos, confirmando o que os estudiosos contemporâneos — incluindo o Papa Bento XVI — já tinham teorizado, nomeadamente que as mulheres tiveram uma influência muito maior no cristianismo primitivo de quanto é geralmente reconhecido. Enquanto na documentação literária são as figuras masculinas que predominam, os retratos funerários no campo da arqueologia mostram, pelo contrário, que as mulheres cristãs são predominantemente recordadas por terem exercido substancialmente a autoridade eclesial nas suas comunidades. E, como veremos, as mulheres que se reuniam em torno das nossas ‘madres da igreja’ evoluíram mais tarde para algumas das nossas primeiras comunidades — intencionais — de religiosas.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-02/sisters-project-historia-vida-consagrada-segunda-parte-igreja.html

domingo, 14 de agosto de 2022

A exigente paternidade dos dias de hoje

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Francisco Borba Ribeiro Neto


‘O sr. Francisco Vieira Coelho foi um comerciante com uma vida simples, igual a de tantos outros imigrantes que vieram para São Paulo. Eu o conheci porque era pai de um amigo, professor universitário com pós-graduação na Europa. Em certo aspecto, ele representava bem o choque cultural e generacional que marcou e continua marcando tantas famílias no Brasil e no mundo contemporâneo.

Seu’ Francisco, contudo, tinha um diferencial, razão pela qual começo com ele esse artigo. Quando o conheci e à sua família, pareceu-me ver, em sua simplicidade acolhedora, simultaneamente um demiurgo (divindade criadora do mundo). De alguma forma, tudo que o circundava parecia remeter a uma força criadora e a uma paternidade que se ocultava nas ninharias da vida cotidiana. Por isso, nenhum outro homem me remeteu tanto à figura de Deus Pai criador quanto ele.

A dificuldade em ser um bom pai

O grande problema é que pouquíssimos homens têm o dom de viver como ele. Por outro lado, pais excepcionais tendem a se tornar modelos aparentemente inalcançáveis para seus filhos, criando um outro tipo de problema. Os jovens sentem-se incapazes de construir uma vida como a de seus pais e isso os desestimula a tentar seguir uma vida como a dos genitores.

Não se trata aqui de culpar pais ou filhos, seja pelo excesso, seja pela falta, mas apenas de constatar o quanto a paternidade é difícil na sociedade atual. Se é difícil, também é particularmente necessária. Diante da pluralidade cultural de hoje em dia, a pessoa necessita de um primeiro modelo com o qual comparar as novas opções com as quais se defronta. Sem uma base de comparação, por mais inteligente e bem informada que seja, não consegue fazer uma opção livre e consciente sobre quais caminhos seguir.

A figura paterna continua fundamental

Ainda hoje, apesar das muitas transformações pelas quais nossa sociedade tem passado, a figura paterna representa como que um arquétipo da vida pública, das normas, dos desafios e dos sentidos que os filhos encontrarão no mundo, enquanto a mãe representa mais um arquétipo de intimidade, afeto e acolhida. Esses dois modelos não estão obrigatoriamente ligados ao sexo biológico. Com as mudanças no mundo trabalho e a maior divisão de tarefas no lar, as diferenças entre os dois papéis tendem a não ser tão nítidas. Mães e pais que tiveram que criar sozinhos seus filhos, por viuvez ou qualquer outro fator, frequentemente incorporam essas duas dimensões na mesma pessoa. 

Constatar um certo esquematismo na construção da figura paterna tradicional e o autoritarismo patriarcal não implica em negar a importância do pai para o desenvolvimento adequado da pessoa – apenas nos mostra o quão mais difícil é essa tarefa no contexto atual.

Não faltam artigos com indicações e conselhos referentes à paternidade em Aleteia. Como sempre saliento em meus artigos, meu foco é mostrar como nossa cultura molda nossa mentalidade e como podemos afirmar nossa identidade católica num contexto cultural que, no mínimo, não nos é favorável.

O risco de educar

Dom Luigi Giussani (1922-2005) foi um grande educador católico. Percebeu, na Itália dos anos 50, que o catolicismo ainda era hegemônico na organização da sociedade, mas não era mais comunicado de forma convincente aos jovens. Dedicou toda a sua vida a superar essa situação. Um de seus livros mais significativos chama-se, emblematicamente, Educar é um risco (São Paulo: Companhia Ilimitada).

No livro, ele constata que, numa sociedade plural, todo educador tem que enfrentar o risco de não ser aceito pelo educando. Diante de tantos caminhos e modelos apresentados nas escolas, nas mídias, nos grupos de amigo ou entre os colegas de trabalho, nada garante que os filhos abraçarão o modo de ser recebido na educação familiar. Os pais têm que estar preparados para isso, saber que são eles próprios ‘hipóteses’ de realização humana que são oferecidas a seus filhos – hipóteses que serão verificadas tanto na observação da vida paterna quanto pela prática dos ensinamentos recebidos ao longo da própria vida dos filhos. Mesmo já velhos, com os pais já falecidos, ainda estamos ‘verificando’ alguns ensinamentos familiares, concordando com uns e revisando outros…

Três pontos de atenção

Para a compreensão da paternidade no mundo, em todas as épocas, mas particularmente nessa, a visão educativa de Dom Giussani traz três contribuições significativas :

1) Como todos os educadores, os pais, mais que propor ideias ou normas morais, propõem a si mesmos a seus filhos. As ideias e as normas são apreendidas na medida em que fazem sentido a partir do modo de ser do pai, em sua totalidade. Evidentemente é importante encontrar as melhores formas de propor um modo de vida sadio aos filhos, mas essas formas não são eficazes se não condizem com o modo de ser dos pais. Não se trata de uma simples questão de coerência moral, de fazer aquilo que se diz. Todo ser humano tem algum grau de incoerência e contradição, pelo simples fato de ser pecador. Até a incoerência é educativa se inserida num modo de ser que, ao mesmo tempo, é realizado e busca o bem, sem apegar-se a si mesmo. Ser feliz e dedicado ao bem dos filhos não resolve todos os desafios educativos que um pai enfrenta, mas são duas condições necessárias para que ele possa ser realmente um fundamento para a educação dos filhos.

2) A autoridade paterna é fundamental nesse processo. Deve ser entendida não como o poder de ordenar, de comandar; mas sim como a capacidade de ajudar a crescer. Autoridade deriva do latim auctus, particípio de augere, verbo que pode ser traduzido como aumentar, aprimorar ou crescer. A autoridade é aquela liderança que ajuda a crescer, não tanto aquela que tem o poder. A criança pequena e mesmo o jovem precisam de indicações claras para se orientarem na vida e poderem crescer, mas essas indicações não podem se tornar imposições sem sentido. O filho percebe o valor da obediência na medida que reconhece que as indicações paternas o ajudam a crescer. O pai não pode se omitir, mas deve sempre estar procurando a forma mais adequada de ajudar o crescimento dos filhos – o que nem sempre acontece pelos caminhos mais óbvios.

3) Surge um momento que todo jovem precisa verificar a veracidade daquele modo de ser que recebeu de seus pais. Isso implica em experimentação, confronto de ideias, busca de outros modelos. Proteger os filhos desse confronto com o mundo não os tornará mais seguros. Pelo contrário, eles serão mais inseguros e retraídos, com medo dos questionamentos dos outros, incertos diante da aparente felicidade de outros (mesmo que ela seja apenas ilusória). Nesse confronto, o que garante o futuro dos jovens é a própria graça de Deus, a força do testemunho de felicidade e bondade recebido dos pais e um acompanhamento, forçosamente discreto e respeitoso,  feito não só pelos pais, mas também pela comunidade – pois é sempre muito difícil educar os jovens sem uma comunidade que acompanha tanto os pais quanto os filhos em seu caminho rumo a Cristo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2022/08/14/a-exigente-paternidade-dos-dias-de-hoje/

terça-feira, 7 de março de 2017

O pastor visto a partir das Arábias

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Olmes Milani,
Missionário Scalabriniano


‘Vejamos a definição que Cristo deu a si mesmo : ‘Eu sou o bom pastor.’ Na sua época, causou polêmica entre seus ouvintes porque pastor era um termo exclusivo para Deus, reis e líderes religiosos. Dizendo-se pastor, ele estava usurpando um título divino para atribui-lo a um ser humano.  Isso não era aceitável.

 A cultura bíblica e do Oriente Médio entram em colisão com a prática da ação de pastorear do Ocidente. Nessas duas partes do mundo, a ação do pastor tem pouca coisa em comum. Por isso, os cristãos ocidentais, carecem de muitas partes do mosaico da imagem do pastor, quando leem as escrituras. O motivo é a falta de conhecimento da cultura dos países do Golfo Pérsico. Aqui, o panorama, o cheiro, o ‘humorismo’ diário mudou pouco desde os tempos de Cristo.

No Ocidente, o proprietário mantém suas ovelhas em cercados. Para recolhê-las, ele pode ter dois ou mais cachorros que conciliados por assobios ou voz, correm juntando as ovelhas espalhadas latindo, ameaçando-as, ou até mesmo, mordendo-as levemente para que caminhem na direção certa. Elas se dirigem a um lugar sob a pressão e o medo. No ocidente, o pastor é alguém que usa os cachorros para juntar as ovelhas, ou, em tempos atuais, ziguezagueia com ruidosas motos para reuni-las em algum lugar.

O reverendo anglicano, Andrew Thompson, relata duas experiências. Enquanto caminhava numa estrada de terra na Jordânia, ouviu o cantarolar de alguém. Olhou na direção de onde vinha voz. Era um jovem caminhado à frente de um rebanho de ovelhas soltas. Quando alguma ficava para trás, ele a chamava pelo nome. Em outra ocasião, uma ovelha adulta entrou no jardim de sua moradia e se deliciava comendo as flores. Sob o olhar da esposa e dos filhos, por mais que tentasse enxotá-la, ela não se afastava por não entender aquela linguagem e tratamento. Nisso apareceu um jovem que a chamou pelo nome. Sob o olhar atônito do reverendo e sua família, a ovelha imediatamente saiu do jardim trotando atrás dele a pé.

Vejam as diferenças. Na cultura ocidental, as ovelhas se juntam sob a pressão dos gritos, assobios do proprietário e latidos dos cachorros. Prevalece o medo.  No Oriente Médio, o pastor caminha cantarolando na frente delas. No Ocidente, o pastor exerce autoridade sobre as ovelhas, enquanto no Oriente Médio elas são familiarizadas com sua voz que as chama pelo nome, indicando intimidade, companheirismo.

O Bom Pastor, ao invés de assustar, reprimir e forçar suas ovelhas para se reunir, caminha na frente e elas o seguem com alegria.’


Fonte :