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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Irmã de Santa Teresinha poderá ser beatificada

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


‘Deus escreve certo em linhas tortas. Este ditado popular é confirmado pela história de Leônia Martin, a irmã ‘difícil’ de Santa Teresa de Lisieux, que inicia seu caminho em direção dos altares. O Bispo de Bayeux-Lisieux (França), Dom Jean-Claude Boulanger, anunciou dias atrás a sua intenção de iniciar a causa de beatificação e canonização de Leônia.


Terceira filha

Leônia era a terceira filha dos beatos Louis e Zelia Martin, o casal beatificado em 19 de outubro de 2008 por Bento XVI. Além disso, era irmã de Santa Teresinha do Menino Jesus, uma das santas mais queridas pelo Papa Francisco, Doutora da Igreja Universal, e padroeira das missões. Religiosa da Ordem da Visitação, Leônia foi uma menina frágil, insegura, e introvertida, que deu muita dor de cabeça aos seus pais e que também lutou para viver a sua vocação à vida religiosa.

Em declarações ao Grupo ACI, o carmelita descalço Padre Antonio Sangalli, postulador da causa, explicou que Leônia ‘embora tenha sido expulsa até três vezes do convento, alcançou o seu objetivo de ser religiosa. Isso demonstra que com perseverança é possível alcançar a vontade de Deus’. ‘As dificuldades de Leônia eram devidas principalmente à rigidez da regra de sua ordem, muito difícil de seguir naqueles tempos, porém, isso não sepultou o único talento recebido, mas empregado de modo frutífero, realizando plenamente a sua vocação’, assinalou.

Atualmente a causa se encontra em seu processo histórico – o recolhimento de todos os textos relacionados com a sua vida –, e antes de iniciar oficialmente, o Bispo de Bayeus-Lisieux deve receber o ‘nihil obstat’, a aprovação oficial da Igreja Católica do ponto de vista moral e doutrinal que outorga a Congregação para as Causas dos Santos.


Certo da santidade

Leônia adolescente
O trem partiu e está caminhando… para Roma’, afirmou o Padre Sangalli. O postulador está certo de que Leônia goza já de grande fama de santidade, e recorda que o seu túmulo, na cripta do Mosteiro da Visitação em Caen, França, está sempre cheio de fiéis de todo o mundo que chegam para venerá-la. ‘Vêm para rezar. Pedem-lhe favores, e encontram nela ajuda espiritual. Sua fé se vê reforçada pelo exemplo desta humilde religiosa visitandina e, além disso, recebemos muitas cartas de pessoas que asseguram ter recebido graças’.

Leônia, de nome religioso Irmã Francisca Teresa, sofreu problemas físicos na infância. ‘Não tinha as qualidades humanas de suas outras irmãs, mas soube abandonar-se em Deus, que chama a todos independentemente de nossas qualidades, ninguém fica excluído no chamado à santidade’. A terceira filha de Louis e Zelia também teve uma relação muito próxima com Santa Teresinha, com quem se comunicava com frequência através de cartas. Depois da morte da doutora da Igreja, Leônia decidiu tentar entrar de novo ao mosteiro, seguindo a ‘pequena via’ traçada por Santa Teresinha, com confiança e abandono em Deus.


O fim da vida

O Padre Sangalli disse também que Leônia conseguiu entrar definitivamente no mosteiro, o que ‘demonstra que a doutrina de Teresinha não serve somente para os carmelitas, mas para todos… com a pequena via, Leônia se tornou mais visitandina, permanecendo sempre na espiritualidade de São Francisco de Sales e Santa Francesca de Chantal, os fundadores da Ordem da Visitação’. Leônia morreu em 17 de junho de 1941 com 78 anos de idade no mosteiro onde vivia. Atualmente, seu sepulcro se converteu em um refúgio para os pais preocupados com a educação dos filhos que encontram nela um exemplo e um apoio.

    
Fonte :
* Artigo na íntegra de
http ://www.news.va/pt/news/irma-de-santa-teresinha-podera-se-beatificada

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Santa Teresa de Lisieux

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Bento XVI, Papa Emérito


‘Gostaria de vos falar hoje de Santa Teresa de Lisieux. Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face, que viveu neste mundo só 24 anos, no final do século XIX, levando uma vida muito simples e no escondimento, mas que, depois da morte e da publicação dos seus escritos, se tornou uma das santas mais conhecidas e amadas. A ‘pequena Teresa’ nunca deixou de ajudar as almas mais simples, os pequeninos, os pobres e os sofredores que lhe rezam, mas iluminou também toda a Igreja com a sua profunda doutrina espiritual, a ponto que o Venerável Papa João Paulo II, em 1997, quis atribuir-lhe o título de Doutora da Igreja, além do de Padroeira das Missões, que já lhe tinha sido atribuído por Pio XI em 1927. O meu amado Predecessor definiu-a ‘perita da scientia amoris’ (Novo millennio ineunte, 27). Esta ciência, que vê resplandecer no amor toda a verdade da fé, Teresa expressa-a principalmente na narração da sua vida, publicada um ano depois da sua morte com o título de História de uma alma. Trata-se de um livro que teve imediatamente um grande sucesso, foi traduzido em muitas línguas e difundido em todo o mundo. Gostaria de vos convidar a redescobrir este pequeno-grande tesouro, este comentário luminoso ao Evangelho plenamente vivido! De facto, a História de uma alma é uma história maravilhosa de Amor, narrada com tanta autenticidade, simplicidade e vigor que o leitor não pode deixar de se admirar! Mas qual é este Amor que encheu toda a vida de Teresa, desde a infância até à morte? Queridos amigos, este Amor tem um Rosto, tem um Nome, é Jesus! A Santa fala continuamente de Jesus. Repercorramos então as grandes etapas da sua vida, para entrar no coração da sua doutrina.

Teresa nasceu a 2 de Janeiro de 1873 em Alençon, uma cidade da Normandia, na França. É a última filha de Luís e Zélia Martin, esposos e pais exemplares, beatificados juntamente a 19 de Outubro de 2008. Tiveram nove filhos; quatro morreram em tenra idade. Permaneceram as cinco filhas, que se tornaram todas religiosas. Teresa, com 4 anos, ficou profundamente abalada com a morte da mãe (Ms A, 13r). Então, o pai transferiu-se com as filhas para a cidade de Lisieux, onde se desenvolverá toda a vida da Santa. Mais tarde Teresa, atingida por uma grave doença nervosa, sarou por graça divina, que ela própria define o ‘sorriso de Nossa Senhora’ (ibid., 29v-30v). Recebeu depois a Primeira Comunhão, intensamente vivida (ibid., 35r), e pôs Jesus Eucaristia no centro da sua existência.

A ‘Graça do Natal’ de 1886 assinala a grande mudança, por ela chamada a sua ‘total conversão’ (ibid., 44v-45r). De facto, ficou totalmente curada da sua hipersensibilidade infantil e começou uma ‘corrida de gigante’. Aos 14 anos Teresa aproxima-se cada vez mais, com grande fé, de Jesus Crucificado, e começa a ocupar-se de um criminoso, aparentemente desesperado, condenado à morte e impenitente (ibid., 45v-46v). ‘Quis impedir-lhe de todas as formas de cair no inferno’, escreve a Santa, com a certeza de que a sua oração o teria posto em contacto com o Sangue redentor de Jesus. É a sua primeira experiência fundamental de maternidade espiritual : ‘Eu tinha tanta confiança na Misericórdia Infinita de Jesus’, escreve. Com Maria Santíssima, a jovem Teresa ama, crê e espera com ‘um coração de mãe’ (cf. pr 6/10r).

Em Novembro de 1887, Teresa vai em peregrinação a Roma juntamente com o Pai e a irmã Celina (ibid., 55v-67r). Para ela, o momento culminante é a Audiência do Papa Leão XIII, ao qual pede a autorização para entrar, apenas com 15 anos, no Carmelo de Lisieux. Um ano depois, o seu desejo realiza-se : torna-se Carmelita, ‘para salvar as almas e rezar pelos sacerdotes’ (ibid., 69v). Contemporaneamente, começa também a dolorosa e humilhante doença mental do seu pai. É um grande sofrimento que leva Teresa à contemplação da Face de Jesus na sua Paixão (ibid., 71rv). Assim, o seu nome de Religiosa — irmã Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face — expressa o programa de toda a sua vida, em comunhão com os Mistérios centrais da Encarnação e da Redenção. A sua profissão religiosa, na festa da Natividade de Maria, a 8 de Setembro de 1890, é para ela um verdadeiro matrimónio espiritual na ‘pequenez’ evangélica, caracterizada pelo símbolo da flor : ‘Que festa bonita a Natividade de Maria para se tornar esposa de Jesus — escreve — Era a pequena Virgem Santa de um dia que apresentava a sua pequena flor ao pequeno Jesus’ (ibid., 77r). Para Teresa ser religiosa significa ser esposa de Jesus e mãe das almas (cf. Ms B, 2v). No mesmo dia, a Santa escreve uma oração que indica toda a orientação da sua vida : pede a Jesus o dom do seu Amor infinito, para ser a mais pequena, e sobretudo pede a salvação de todos os homens : ‘Que nenhuma alma seja danada hoje’ (Pr 2). De grande importância é a sua Oferta ao Amor Misericordioso, feita na festa da Santíssima Trindade de 1895 (Ms A, 83v-84r; Pr 6) : uma oferenda que Teresa partilha imediatamente com as suas irmãs de hábito, sendo já vice-mestra das noviças.
  
Dez anos depois da ‘Graça de Natal’, em 1896, vem a ‘Graça de Páscoa’, que abre a última fase da vida de Teresa com o início da sua paixão em profunda união com a Paixão de Jesus; trata-se da paixão do corpo, com a doença que a levará à morte através de grandes sofrimentos, mas sobretudo trata-se da paixão da alma, com uma dolorosíssima prova da fé (Ms C, 4v-7v). Com Maria ao lado da Cruz de Jesus, Teresa vive então a fé mais heróica, como luz nas trevas que lhe invadem a alma. A Carmelita tem a consciência de viver esta grande prova para a salvação de todos os ateus do mundo moderno, por ela chamados ‘irmãos’. Vive então ainda mais intensamente o amor fraterno (8r-33v) : para com as irmãs da sua comunidade, para com os seus dois irmãos espirituais missionários, para com os sacerdotes e todos os homens, sobretudo os mais distantes. Torna-se deveras uma ‘irmã universal’! A sua caridade amável e sorridente é a expressão da alegria profunda da qual nos revela o segredo : ‘Jesus, a minha alegria é amar-Te’ (P 45/7). Neste contexto de sofrimento, vivendo o maior amor nas mais pequenas coisas da vida quotidiana, a Santa realiza a sua vocação de ser o Amor no coração da Igreja (cf. Ms B, 3v).

Teresa faleceu na noite de 30 de Setembro de 1897, pronunciando as simples palavras ‘Meu Deus, amo-Te!’, olhando para o Crucifixo que estreitava nas suas mãos. Estas últimas palavras da Santa são a chave de toda a sua doutrina, da sua interpretação do Evangelho. O acto de amor, expresso no seu último suspiro, era como que o contínuo respiro da sua alma, como o pulsar do seu coração. As simples palavras ‘Jesus, amo-Te’ estão no centro de todos os seus escritos. O acto de amor a Jesus imerge-a na Santíssima Trindade. Ela escreve : ‘Ah, tu sabes, amo-te Menino Jesus, / O Espírito de Amor inflama-me com o seu fogo. / É amando-Te que eu atraio o Pai’ (P 17/2).

Queridos amigos, também nós com Santa Teresa do Menino Jesus deveríamos poder repetir todos os dias ao Senhor que queremos viver de amor a Ele e aos outros, aprender na escola dos santos a amar de modo autêntico e total. Teresa é um dos ‘pequeninos’ do Evangelho que se deixam conduzir por Deus às profundezas do seu Mistério. Uma guia para todos, sobretudo para aqueles que, no Povo de Deus, desempenham o ministério de teólogos. Com a humildade e a caridade, a fé e a esperança, Teresa entra continuamente no coração da Sagrada Escritura que encerra o Mistério de Cristo. E esta leitura da Bíblia, alimentada pela ciência do amor, não se opõe à ciência académica. De facto, a ciência dos santos, da qual ela mesma fala na última página da História de uma alma, é a ciência mais nobre : ‘Todos os santos o compreenderam e de modo mais particular talvez os que encheram o universo com a irradiação da doutrina evangélica. Não é porventura da oração que os Santos Paulo, Agostinho, João da Cruz, Tomás de Aquino, Francisco, Domingos e muitos outros ilustres Amigos de Deus se inspiraram nesta ciência divina que fascina os maiores génios?’ (Ms C, 36r). Inseparável do Evangelho, a Eucaristia é para Teresa o Sacramento do Amor Divino que se abaixa ao extremo para se elevar até Ele. Na sua última Carta, sobre uma imagem que representa o Menino Jesus na Hóstia consagrada, a Santa escreve estas palavras simples : ‘Não posso temer um Deus que para mim se fez tão pequenino! (...) Eu amo-O! De facto, Ele mais não é do que Amor e Misericórdia!’ (LT 266).

No Evangelho, Teresa descobre sobretudo a Misericórdia de Jesus, a ponto de afirmar : ‘A mim Ele deu a sua Misericórdia infinita, através dela contemplo e adoro as outras perfeições divinas! (...) Então todas me parecem resplandecentes de amor, a própria Justiça (e talvez ainda mais do que qualquer outra) me parece revestida de amor’ (Ms A, 84r). Assim se expressa também nas últimas linhas da História de uma alma : ‘Um só olhar ao Santo Evangelho, imediatamente respiro os perfumes da vida de Jesus e sei para onde correr... Não é para o primeiro lugar, mas para o último que me oriento... Sim, sinto-o, mesmo se tivesse na consciência todos os pecados que se podem cometer, iria, com o coração despedaçado pelo arrependimento, lançar-me entre os braços de Jesus, porque sei quanto ama o filho pródigo que volta a Ele’ (Ms C, 36v-37r). ‘Confiança e Amor’ são portanto o ponto final da narração da sua vida, duas palavras que como faróis iluminaram todo o seu caminho de santidade, para poder guiar os outros pela sua mesma ‘pequena via de confiança e de amor’ da infância espiritual (cf. Ms C, 2v-3r; LT 226). Confiança como a do menino que se abandona nas mãos de Deus, inseparável do compromisso forte e radical do verdadeiro amor, que é dom total de si, para sempre, como diz a Santa contemplando Maria : ‘Amar é dar tudo, e dar-se a si mesmo’ (Porque te amo, ó Maria, P 54/22). Assim Teresa indica a todos nós que a vida cristã consiste em viver plenamente a graça do Baptismo na doação total de si ao Amor do Pai, para viver como Cristo, no fogo do Espírito Santo, o seu mesmo amor por todos os outros.’

 (6 de abril de 2011)

Fonte :
Bento XVISantos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.  


sábado, 22 de fevereiro de 2014

Mulheres Doutoras da Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Santa Teresa de Lisieux
* Artigo de Dom Guy Gaucher

** Santa Hildegarda de Bingen,
posteriormente a este artigo, tornou-se a quarta Doutora


E mulheres doutoras não são do meu gosto. Admito que uma mulher seja perspicaz, mas não lhe desejo absolutamente a paixão chocante de se tornar sábia a fim de ser sábia’. (MOLIÉRE, As Mulheres sábias, I, III)


Santa Catarina de Sena
Quando o Papa Paulo VI, em 1970, declarou duas mulheres Doutoras da Igreja, a espanhola Santa Teresa de Ávila (1515-1582) e a italiana Santa Catarina de Sena, foi um verdadeiro estrondo. Esperamos quase 2000 anos para que mulheres fossem reconhecidas como Doutoras da Igreja universal. Até àquela data, só trinta homens tinham sido declarados Doutores da Igreja.

Subitamente os critérios de uma declaração de doutorado foram abalados, pois Teresa de Ávila sublinhou várias vezes sua ignorância em teologia – ela se dizia, ‘uma fraca mulher’(!). Quanto a Catarina de Sena, era quase analfabeta. Ao mesmo tempo, esse verdadeiro estrondo não foi mais ouvido (1).

No entanto, em Notre-Dame de Paris, no centenário do nascimento de Santa Teresa de Lisieux, em 1973, um eminente teólogo havia dito :

É significativo que, desde a Idade Média até a época moderna, todo um cortejo de santas mulheres tenha silenciosamente protestado contra essa teologia masculina, e fortes, com a audácia de seu coração e por um acesso direto ao mistério da salvação, elas tenham experimentado uma esperança sem limites. Para nos restringirmos aos maiores nomes, mencionemos apenas, Hildegardes, Gertudes, Mectildes de Hackborn, Mectildes de Magdeburg, Juliana de Norwich, Catarina de Gênova, Maria da Encarnação e mesmo Madame Guyon. Mas a teologia das mulheres jamais foi levada a sério nem integrada pela sociedade. Entretanto, depois da mensagem de Lisieux, seria preciso considerá-la na reconstrução atual da dogmática (2).

Relativamente à jovem carmelita de Lisieux, que deixou a escola aos treze anos e meio, seu Doutorado tinha sido pedido, desde 1932, pelo Padre Desbuquois, jesuíta da ação popular, durante o Congresso, quando da inauguração da cripta da basílica de Lisieux. Mas o Papa Pio XI, teresiano sem qualquer dúvida (tinha beatificado Teresa em 1923, canonizado em 1925 e declarado Padroeira Universal das Missões em 1927), recusou firmemente : ‘Sexus obstat’.

Não lhe parecia possível, em 1932, dar um passo tão ousado. Entretanto, acrescentou : ‘Meus sucessores verão’. Foi preciso esperar trinta e oito anos para que Paulo VI desse esse passo.

Quando, em 1987, Dom Pierre Pican, bispo de Bayeux e Lisieux, me confiou a missão de retomar a questão do Doutorado de Santa Teresa de Lisieux, tive de demonstrar que uma mulher podia ser Doutora da Igreja, como já o havia feito, – em vão – o Padre Desbuquois. O obstáculo fora levantado por Paulo VI.

Era preciso mostrar que esta jovem santa propunha uma ‘doutrina eminente’ (‘eminens doctrina’), útil à Igreja universal. Eu podia me apoiar nos trabalhos teológicos dos Padres Petitot OP, Philipon OP, Combes, Bro OP, Congar OP, Daniélou SJ, Bouyer, Durwell, Molinié OP, Le Guillou, Urs von Balthasar, Rideau SJ, Léthel OCD, etc.

Em seguida, em 1996, cinquenta Conferências Episcopais fizeram a João Paulo II o pedido do Doutorado para a santa de Lisieux.

É claro que a aprovação de João Paulo II foi decisiva. Geralmente, com raríssimas exceções (Santo Afonso Maria de Ligório), era preciso esperar quatro séculos após a morte para que um santo fosse proclamado Doutor. Para Teresa de Lisieux, cem anos bastaram (1897-1997). Como sublinhou o Papa em sua Carta Apostólica de 19 de outubro de 1997, Divini Amoris Scientia, Teresa é ‘uma mulher, uma jovem, uma contemplativa’, a mais jovem Doutora da Igreja.

Ele insistiu na ‘mulher’, em conformidade com seus escritos nos quais sempre sublinhou ‘o gênero feminino’ (3).

Em primeiro lugar Teresa é uma mulher que, ao abordar o Evangelho, soube discernir as riquezas escondidas com um sentido do que é real, uma profundidade de assimilação na vida e uma sabedoria que são próprias do gênio feminino. Sua universalidade lhe confere um grande lugar entre as santas mulheres que brilham por sua sabedoria evangélica.

 Notemos que, durante seu pontificado de vinte e sete anos, João Paulo II – que beatificou e canonizou mil oitocentas e vinte pessoas – proclamou somente um Doutor, sublinhando que a mulher pode ter um lugar eminente na Igreja universal como doutrinante.

Até 1970, considerava-se que o Doutorado implicava um ensinamento fundado certamente sobre a santidade (condição primeira), mas principalmente na elaboração de conceitos formais, daí os Tratados, as Sumas.

Isso evidentemente afastava toda contribuição feminina, pois durante séculos, com raras exceções e até ao século XX, as mulheres foram excluídas do ensino e com mais forte razão, das Universidades. Quando se trata porém de falar sobre Deus, de dizer uma palavra sobre Deus (theo-logos), dever-se-ia excluir aquelas que tiveram uma experiência de Deus e que o exprimiram, conforme seus meios não conceituais, mas com uma linguagem imaginativa, simbólica, narrativa, tão ‘teológica’ quanto a linguagem dos homens formados nas universidades?

Santa Teresa de Ávila
Sobre o conhecimento de Deus, não era Santa Teresa de Ávila mais douta que as dezenas de teólogos que consultou e que deveriam decidir se ela era inspirada por Deus ou pelo diabo? Ela esteve `a beira de ser atingida pelos raios da Inquisição.

Além disso, as mulheres deviam enfrentar a desconfiança dos teólogos que suspeitavam das ‘místicas’ que se metiam a falar sobre Deus.

Catarina de Sena foi felizmente protegida por Raimundo de Cápua, OP. Mas Joana d’Arc não teve defensor algum diante do tribunal.

Ainda hoje esses Doutorados femininos não foram reconhecidos como palavras decisivas em teologia. Mas se nós fomos criados ‘à imagem e semelhança de Deus’, homens e mulheres, uma palavra exclusivamente masculina sobre Deus não pode exprimir todo o seu Mistério. Uma palavra feminina é necessária. Já se demonstrou que essas mulheres santas foram mais longe do que os homens na reflexão sobre o mistério da misericórdia divina, por exemplo (4).

Uma mulher sintetizou bem o papel de suas co-irmãs na teologia :

O reconhecimento dessas mulheres, por diferentes que sejam, prova que em momentos diferentes da História e em lugares diferentes, a Igreja institucional sabia aceitar o risco de uma reviravolta hermenêutica. Tanto no século XIX bem como no século XVI isso não é possível, senão pela conjunção da espiritualidade e da lúcida sabedoria : por um lado, mulheres desprovidas de ciência filosófica e teológica, mas humildes e obedientes, e por outro, homens lúcidos e dotados de discernimento que, ao controlar os dogmas e o saber na Igreja, conhecem a necessidade do risco e da abertura múltipla do sentido.

A teologia tradicional, sistema por demais irrefutável, pode se degradar em ideologia : as mulheres, por não terem acesso ao saber teológico, são capazes de acrescentar a razão teológica à sua idade hermenêutica : não apenas conhecimento, mas interpretação viva (5).

Certamente, hoje em dia as mulheres são professoras de teologia, decanas de faculdades teológicas.

Edith Stein era doutora em filosofia antes de ser carmelita e mártir. Mas estamos ainda muito longe da igualdade em teologia. Ninguém duvida que o longo combate pela igualdade entre homens e mulheres em nossa sociedade e em nossa Igreja vai continuar ainda por muito tempo. Santa Teresa de Lisieux sofreu essa injustiça.

Depois de sua grande peregrinação a Roma, sendo Papa Leão XIII, ela escreveu :

Não posso ainda compreender porque as mulheres são tão facilmente excomungadas na Itália; a cada instante nos diziam : ‘Não entrem aqui... Não entrem lá, vocês seriam excomungadas!...’ Ah! As pobres mulheres, como são desprezadas!... No entanto elas amam o Bom Deus em número bem maior do que o dos homens, e durante a Paixão de Nosso Senhor, as mulheres tiveram mais coragem do que os apóstolos, uma vez que desafiaram os insultos dos soldados e ousaram enxugar a Face adorável de Jesus... É sem dúvida por isso que Ele permite que o desprezo seja a sua parte na terra, uma vez que Ele o escolheu para si mesmo... No céu, Ele mostrará que seus pensamentos não são iguais aos dos homens, pois então, as últimas serão as primeiras... (Manuscrito A, 66).

Ela não podia imaginar que nesta mesma Praça de São Pedro, no domingo das Missões, 19 de outubro de 1997, um outro papa a proclamaria Doutora da Igreja, diante de sessenta mil pessoas, dizendo :

Com razão, portanto, pode-se reconhecer na Santa de Lisieux o carisma de Doutora da Igreja, quer pelo dom do Espírito Santo que ela recebeu para viver e exprimir a sua experiência de fé, quer pela particular inteligência do mistério de Cristo. Nela convergem os dons da lei nova, isto é, a graça do Espírito Santo que Se manifesta na fé viva e operante por meio da caridade (cf. Santo Tomás de Aquino, I-II, q. 106, art 1; q. 108, art. 1). Podemos aplicar a Teresa de Lisieux quanto teve a ocasião de dizer o meu Predecessor Paulo VI a respeito de outra jovem santa, Doutora da Igreja, Catarina de Sena : ‘O que mais impressiona na Santa é a sabedoria infusa, isto é, a lúcida, profunda e inebriante assimilação das verdades divinas e dos mistérios da fé (...) : uma assimilação favorecida, sim, por dotes naturais singularíssimos, mas evidentemente prodigiosa, devida a um carisma de sabedoria do Espírito Santo’ (AAS 62 (1979), p. 675).

Certamente, esta declaração foi um avanço considerável. Fazemos votos que não seja necessário ‘esperar o Céu’ para que outras mulheres santas digam o que sabem sobre o mistério que é Deus, com uma ‘doutrina eminente’.


Fonte : 
* Dom Guy Gaucher, é Bispo auxiliar emérito de Bayeux e Lisieux.
  Artigo publicado em ‘La vie spirituelle’, 790 – setembro 2010.
  Traduzido do francês pelo Mosteiro da Santa Cruz, Juiz de Fora/Minas Gerais.

Revista Beneditina nrº 40, Outubro/Novembro de 2010, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais.

** Em outubro de 2012, numa Carta Apostólica, Bento XVI proclama Santa Hildegarda de Bingen, Monja Professa da Ordem de São Bento, como Doutora da Igreja universal

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Notas : 

(1)   Uma obra coletiva de 875 páginas sobre Paulo VI e a modernidade na Igreja (1984) ignora esta proclamação!
(2) Hans Urs von BALTHASAR, Atualidade de Teresa, conferências do Centenário (1873-1973), Instituto Católico de Paris, p. 120-121.
(3) Divini Amoris, Scientia, nr. 30. Ver Mulieres dignitatem, nr. 30, 1988, Carta às Mulheres, 1995.
(4) Ver François LÉTHEL, Théologie de l’Amour de Jésus. Écrits sur la théologie des saints. Éd. Du Carmel, 1996.
(5) Dominique DE COURCELLES, La Vie spirituelle, nr. 718, março 1996, p. 43.